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Processo nº 830/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, instaurados ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que são recorrente A., e recorridos o Ministério Público e outros, foi proferida, em 3 de Abril de 2003, decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo
78º-A daquele diploma legal, com o seguinte teor:
“1. - A., com sede em ---------------, comarca de ----------------------, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de Novembro de 2002, proferido na pendência de acção de recuperação de empresa, nos termos do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência – CPEREF – aprovado pelo Decreto-Lei nº
132/93, de 23 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 315/98, de 20 de Outubro, na qual é requerente. Suscitou atempadamente o problema da inconstitucionalidade material da norma constante do nº 2 do artigo 62º do Código – nos termos do qual “[o] Estado, os institutos públicos sem a natureza de empresas públicas e as instituições de segurança social, titulares de créditos privilegiados sobre a empresa, podem dar o seu acordo à adopção das providências referidas no número anterior [envolvendo a extinção ou modificação dos créditos sobre a empresa], desde que o membro do Governo competente o autorize” – por violação do disposto nos artigos 1º, 53º,
58º, nº 2, alínea a), 67º, nº 1, alínea a), 86º, nº 1, e 100º, alínea d), todos da Constituição da República CR), quando aplicada aquela norma sem a precedência de um estudo do qual resulte a demonstração de que existiu uma estreita cooperação com os demais órgãos intervenientes no processo de recuperação, concluindo de forma expressa e clara a razão que o levou a autorizar ou a rejeitar a aprovação em causa.
2. - Notificado, ao abrigo do disposto nos nºs. 1, 2, 6 e 7 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, no sentido de uma identificação inequívoca da dimensão interpretativa da norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, expôs o que, em seu entender, deverá ser “a interpretação jurídico-constitucional” daquele nº 2 do artigo 62º do CPEREF:
“O Estado, os institutos públicos sem a natureza de empresas públicas e as instituições da segurança social, titulares de créditos privilegiados sobre a empresa, podem dar o seu acordo à adopção das providências referidas no número anterior, desde que o membro do Governo competente o autorize, não podendo considerar-se recusada tal autorização quando o membro do Governo se limita a proferir despacho meramente aleatório; ou não fundamenta a sua decisão de forma clara e precisa, de modo a evidenciar razões sustentáveis que demonstrem inequivocamente a inviabilidade económica da empresa recuperanda, em ordem a estabelecer-se, objectivamente, os concretos motivos pelos quais o Estado e o seus entes públicos não podem colocar-se ao lado dos demais credores que pretendem apoiar a recuperação de uma empresa que integra a economia nacional, é potencial geradora de riqueza e de criação de postos de trabalho, sob pena de se estarem a violar os artigos 86º, nº 1, 100º, alínea d), 53º e 58º, nº 2, alínea a), todos da Constituição, respectivamente, por falta de incentivo e de apoio à actividade empresarial, particularmente às pequenas empresas, desrespeito pela garantia do pleno emprego e ausência de rigor na governação para assegurar o direito ao trabalho.”
3. - A recorrente suscitou, nas alegações da apelação, o problema da constitucionalidade da norma impugnada, no que entendeu constituir uma aplicação acrítica, do ponto de vista jurídico-constitucional, sintetizando nas respectivas conclusões:
“10ª Não se pode aceitar que o disposto no nº 2 do artigo 62º do CPEREF seja aplicado de forma acrítica, do ponto de vista constitucional.
11ª A aplicação do citado preceito deve ser precedida de um despacho do membro do Governo, devidamente fundamentado e sustentado em estudo prévio, do qual resulte a demonstração de que existiu uma estreita cooperação com os demais órgãos intervenientes no processo de recuperação, concluindo de forma expressa e clara a razão que o levou a autorizar ou a rejeitar a aprovação em causa.
12ª Interpretação contrária viola o disposto no nº 1 do artigo 277º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que se estão a infringir algumas normas e princípios constitucionais, designadamente: a) o princípio da justiça e da solidariedade social – artigo 1º; b) a garantia do pleno emprego aos trabalhadores – artigos 53º e 58º, nº 2, a); c) a independência social e económica dos agregados familiares – artigo 67º, nº
1, alínea a); d) a falta de incentivo e de apoio à actividade empresarial, particularmente às pequenas empresas – artigo 86º, nº 1 e 100º, alínea d).
13ª Tendo presente o disposto no artigo 690º do CPC, entende-se que foram inobservadas as seguintes normas jurídicas:
- artigo 104º, nº 1 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência;
- artigo 204º da Constituição da República Portuguesa;
[...].”
A matéria conclusiva descrita apoia-se no quadro fáctico que a recorrente traça: a) na assembleia definitiva de credores estavam representados 81, 673 % dos créditos; b) a proposta de recuperação foi aprovada mediante voto favorável de 69,063% de todos os créditos aprovados; c) o Estado e o Centro Regional de Segurança Social, que conjuntamente detêm apenas 7,95% dos créditos, votaram contra; d) o voto desfavorável destes dois entes públicos deveu-se, implicitamente, ao facto do membro do Governo competente não ter dado o seu acordo à adopção da providência.
4. - A decisão recorrida teve presente o disposto no nº 2 do artigo 62º e a consagração da regra de igualdade de tratamento dos credores afectados que nela se fez, de modo a que, salvo o seu próprio acordo, não possam ver os seus créditos atingidos em proporção superior aos demais. Como, então, se ponderou, “as providências que impliquem redução ou modificação dos créditos sobre a empresa, apenas se podem tornar extensíveis aos credores que gozem de garantia real no tocante aos respectivos créditos, desde que os mesmos concedam, a tal respeito, a sua anuência. Não se verificando esta manifestação de vontade, ou ao arrepio dela, não podem, pois, essas medidas de extinção ou modificação de créditos ser aprovadas e impostas, a esses titulares privilegiados, pelos demais credores votantes”. E, mais adiante:
“Forçoso se torna concluir, pois, que contra a vontade de credores munidos de garantia real em relação aos respectivos créditos, jamais podem ser aprovadas, seja em que condições for, medidas recuperatórias que impliquem modificação ou extinção desses mesmos créditos, que assim, no caso dessa oposição, têm de permanecer intocados [...]”.
Debruçando-se sobre o caso vertente, constata-se que a assembleia definitiva de credores aprovou uma medida de recuperação a implicar, relativamente aos créditos reconhecidamente existentes a favor do CRSS de Lisboa e Vale do Tejo e da Fazenda Nacional – dotados de privilégio creditório, na medida em que promanam de contribuições para a Segurança Social e de IRC –, a extinção dos respectivos juros moratórios vencidos e a modificação desses créditos, na medida que fixa o seu pagamento em prestações, ao longo de 120 meses, após um período de carência de 2 anos, e estabelece a taxa anual de 3,5% para os juros moratórios vincendos. Ora, escreveu-se ainda, “na assembleia definitiva de credores o CRSS de Lisboa e Vale do Tejo e a Fazenda Nacional manifestaram a sua oposição à proposta aprovada, pelo que inviável era aos demais credores, e independentemente da importância por eles representada em relação à cifra de créditos a considerar, dar seguimento a essa proposta e, no intuito de a fazer consagrar, conferir-lhe a respectiva aprovação. Estas razões, só por si, justificavam, sem mais, a recusa de homologação dessa proposta, a qual se tivesse sido homologada, em toda a sua extensão, consolidar-se-ia, de acordo com as regras do caso julgado e aqueles créditos ver-se-iam inevitavelmente atingidos (cfr., a este propósito, Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada [CPEREF Anotado, 3ª ed.] pág. 202). Acresce que, contrariamente ao que sustenta a recorrente, não se vê que a circunstância da negação da autorização do membro do Governo não se encontrar fundamentada isso implique qualquer inconstitucionalidade. É que o CRSS de Lisboa e Vale do Tejo e a Fazenda Nacional, ao oporem-se à medida proposta, limitaram-se a exercer o respectivo direito de credor privilegiado visando apenas a defesa dos respectivos créditos afectados pela mesma, caso viesse a ser homologada em toda a sua extensão. Agiram dentro do quadro legal e no exercício de um direito conferido a qualquer um outro credor privilegiado. Se a respectiva tutela não lhes concedeu autorização para aprovarem tal medida e não fundamentou devidamente essa sua posição é problema que extravasa da apreciação do tribunal, quando tem que analisar e homologar a deliberação da assembleia de credores. Só do ponto de vista político se poderá censurar essa atitude da governação e é, nesse campo, que se insere tudo o que, a propósito da pretensa inconstitucionalidade do nº 2 do artº 62° CPEREF, a recorrente explana e conclui na sua alegação recursiva”.
5. - A oportunidade concedida à recorrente para melhor clarificar a questão de constitucionalidade cifrou-se na manifestação do seu desacordo quanto ao postulado no nº 2 do artigo 62º: não está sequer um processo interpretativo em causa – de resto, a norma foi aplicada no sentido estrito da sua literalidade, como as transcrições feitas revelam –, mas sim um juízo crítico quanto à opção do legislador, quando se pretende que a decisão administrativa não seja meramente aleatória mas sim fundamentada “de forma clara e precisa, de modo a evidenciar razões sustentáveis que demonstrem inequivocamente a inviabilidade económica da empresa recuperanda”. Ora, essa é uma matéria que respeita à fundamentação do acto da Administração, ao dispor sobre determinada situação jurídica, que se não quadra nos parâmetros de um conceito funcional de norma para efeitos de controlo de constitucionalidade. Não assistem, por conseguinte, no concreto caso, os pressupostos de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade que, como constitui jurisprudência impressiva e constante do Tribunal Constitucional, não abrange as decisões judiciais nem os actos administrativos sem carácter normativo, os actos políticos ou os actos de governo, em sentido estrito considerados.
6. - Em face do exposto e nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 unidades de conta.”
2. - Notificada, veio a recorrente reclamar, de acordo com o nº 3 do artigo 78º-A, citado, defendendo que se tome conhecimento do objecto do recurso.
Em síntese, considera a reclamante que a norma em sindicância tem um conteúdo “que se pode definir como de ordem pública, que coloca em crise a viabilidade económica das empresas, com todas as consequências daí resultantes [...]”, não se compadecendo com mera interpretação literal, sob pena de “manifesta violação do princípio da separação de poderes”, com assento no artigo 111º, nº 1, da Constituição: o juiz limitar-se-á “a obedecer às instruções do membro do Governo, sem curar de saber qual a fundamentação do respectivo despacho”.
Na perspectiva da reclamante, a norma em causa não pode ser aplicada “sem que o juiz disponha de elementos que lhe permitam conhecer da posição fundamentada do membro do Governo, sob pena de se estar a subverter a ordem pública constitucional e os princípios democráticos que a enfermam”.
3. - O Ministério Público, notificado da reclamação, veio aos autos pronunciar-se no sentido da sua improcedência.
Assim, observou:
“1.- A questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente é, a nosso ver, claramente improcedente.
2.- Na verdade – e se bem entendemos a sua linha argumentativa – pretende o ora reclamante transpor para o domínio do processo de recuperação da empresa e de falência as exigências de fundamentação do acto administrativo, a propósito do acto de vontade do credor privilegiado – entidade pública – que não dá a sua anuência à redução ou modificação dos respectivos créditos, dotados de garantia real, como condição de homologação judicial da medida de recuperação da empresa proposta.
3.- É, porém, manifesto que tal regime não traduz nem implica a prática de qualquer acto administrativo, movendo-se as entidades públicas, titulares do direito real, no âmbito de uma relação jurídica, objecto de um processo de natureza cível, a dependendo a redução do seu crédito privilegiado de uma pura manifestação de vontade do credor, idêntica à que ocorre a propósito de qualquer outro negócio jurídico processual.
4.- Não sendo a situação dos autos substancialmente diferente da que ocorre a propósito da prática de outros negócios jurídicos processuais, como sejam a transação, a confissão ou a desistência do pedido – em que nunca se exigiu que a manifestação da vontade da parte (mesmo que se trate de ente público) seja
“fundamentada” ou motivada.
5.- Por outro lado, a eventual autorização (ou recusa dela) por parte do membro do Governo competente, relativamente à celebração do dito negócio jurídico processual, situa-se no plano das relações internas entre tais entidades públicas, não carecendo, a nosso ver, de serem trazidas sequer ao processo as razões ou a motivação que ditaram a opção de vontade dos órgãos de tais entes.”
Os demais interessados não se manifestaram.
4. - Não se vê, na verdade, que a norma sindicanda, na aplicação estrita e literal que lhe foi dada, seja susceptível de se afirmar como inconstitucional, “por falta de incentivo e de apoio à actividade empresarial, particularmente às pequenas empresas, desrespeito pela garantia do pleno emprego e ausência de rigor na governação para assegurar o direito ao trabalho”.
Não se vê, nomeadamente – para além da evidente carga retórica da anterior fundamentação – que, como se pretende, estejamos em face de uma “manifesta violação do princípio da separação de poderes”, constitucionalmente garantido.
Desde logo porque não está em causa a exigência de fundamentação do acto administrativo.
A norma, vinda do artigo 4º do Decreto-Lei nº 177/86, de
2 de Junho, respeita à competência para autorizar a adesão ou aprovação de uma medida de extinção ou modificação de créditos do Estado, considerando a natureza privilegiada que estes podem ter, enquanto tituladas nas entidades enunciadas no preceito, e é, como tal, que se perfila, seja perante o detentor dessa competência, seja perante o operador judiciário, cuja intervenção nesta área se limita a um controlo de pressupostos, como ocorre quando homologa uma transacção, a confissão ou a desistência do pedido, tendo em conta a autorização emanada pela entidade de tutela: lavrado o termo ou junto o documento (por exemplo) “examinar-se-á se, pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a confissão, desistência ou transacção é válida, e, no caso afirmativo, assim será declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos” (cfr. o nº 3 do artigo 300º do Código de Processo Civil).
A semelhante luz deve ser encarada a intervenção do julgador no caso concreto.
5. - Em face do exposto decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa, 7 de Julho de 2003 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida