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Procº nº 692/2003.
3ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Por sentença proferida em 31 de Dezembro de 1999 pelo Juiz Presidente do Tribunal de Círculo de Almada foram os réus A., B. e C. absolvidos do pedido que foi deduzido na acção declarativa de condenação que contra os mesmos foi instaurada pelos autores D., E., F., G., H., I. e J..
Não se conformando com o assim decidido apelaram daquela sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa os autores G., D., E., H. e a J., que pretenderam que esse recurso tivesse por objecto a reapreciação da prova gravada.
Com a alegação adrede produzida, a autora G. fez juntar a transcrição de determinados depoimentos que foram gravados na audiência de julgamento.
Por acórdão lavrado pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26 de Fevereiro de 2002, foram negadas as apelações.
Aquele Tribunal de 2ª instância, no que ora releva, porque entendeu - no que concerne à impugnação da matéria de facto atinente à apelação interposta pela autora G. - que, contrariamente ao que lhe era imposto pelo nº 2 do artº 690º-A do Código de Processo Civil, a mesma não indicou os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida quanto aos específicos pontos da matéria de facto que considerava incorrectamente julgados, já que se limitou a remeter para a transcrição dos depoimentos gravados, sem indicar concretamente quais os depoimentos em que fundava a sua posição, rejeitou o recurso no que toca à referida impugnação.
Não obstante essa consideração, o Tribunal da Relação de Lisboa veio a fazer um exame crítico da prova testemunhal produzida em audiência, referentemente às transcrições dos depoimentos juntos às alegações e concernentes às respostas aos quesitos 6º, 15º, 18º e 19º.
Do citado aresto pediu a autora G. revista para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, na alegação adrede produzida, não suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 29 de Abril de 2003, negou a revista.
Pode ler-se, a dado passo, nesse acórdão:
“......................................................................................................................................................................................................................................
Como se vê das conclusões, são várias as questões aí suscitadas, designadamente questões relacionadas com a reapreciação da prova, por parte da
2ª instância, questões estas que passamos a considerar em primeiro lugar
* Cláusulas 4ª e 9ª
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Pretende a recorrente que o Tribunal da Relação reaprecie a prova gravada, visto que isso levaria a que se respondesse diferentemente e de forma positiva aos quesitos 6º, 15º, 18º e 19º, o que, na sua perspectiva aquele Tribunal não terá feito, sem que se saiba porquê, isto, após se tecer[em] algumas considerações pelo menos deselegantes e completamente desnecessárias, ao longo da sua simplificada alegação.
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Não lhe assiste razão nenhuma.
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Vejamos porquê.
Na apelação da sentença final, foi posta em causa a apreciação da prova no que se refere às respostas aos quesitos 6º, 15º, 18º e 19º, que, por errada interpretação da prova, não foram positivas, como deviam ser.
Para o efeito, lançou mão do disposto do Art 690-A do C.P.C.
(redacção anterior ao D.L. 183/2000 de 10/8, que ainda não fora, sequer, publicado) transcrevendo o depoimento de 5 testemunhas.
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Como é evidente, não vai este Tribunal reapreciar a prova, sindicando a apreciação feita pela 1ª instância ou pela Relação, visto que estamos perante um Tribunal de revista que, salvo as excepções previstas nos Art
722 nº 2 e 729 nº 3 do C.P.C., que aqui se não verificam, se tem de limitar à aplicação do direito aos factos fixados pelas instâncias.
Aqui e agora, apenas caberá saber se a Relação violou o disposto no Art 690-A do C.P.C. e em consequência se deverá o processo baixar para reapreciação da prova gravada, como parece ser a opinião da recorrente.
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Dispunha o Art 690-A do C.P.C., na redacção aqui aplicável que, quando se impugnasse a decisão sobre a matéria de facto, devia o recorrente especificar, sob pena de rejeição:
- quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e
- quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou da gravação que impunham decisão diferente sobre os pontos da matéria de facto impugnada.
Sendo certo que, quando tenha ocorrido gravação, ‘incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda’, incumbindo à parte contrária ‘sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, nas contra-alegações que apresente, a transcrição dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente’.
Em tal situação, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido ... como diz o Art 712 do C.P.C., podendo, se for caso disso, alterar então a decisão da matéria de facto.
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Ora, no caso concreto, embora a recorrente tenha indicado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e tenha transcrito a gravação de 5 depoimentos prestados em audiência, o certo é que remeteu em globo para esses depoimentos transcritos, sem indicação concreta das passagens deles em que fundava a sus impugnação.
Por isso, no douto acórdão se disse que essa omissão ‘só por si implica a rejeição do recurso no que tange à alteração da matéria de facto’ o que, convenhamos, seria, salvo o devido respeito, uma posição demasiado formal em prejuízo da substância.
Afinal, ao transcrever os 5 depoimentos gravados, parece dever entender-se que é nesses depoimentos concretos, seleccionados entre todos os outros, que a parte funda a sua divergência.
Considera-se, pois, que a recorrente cumpriu substancialmente a imposição legal prevista no Art 690.º-A nº 1 e 2 do C.P.C. pelo que não havia razão para rejeitar o recurso, no que toca à impugnação da matéria de facto.
Só que, não obstante aquela referência contida no acórdão, o Tribunal da Relação não deixou de apreciar o recurso, mesmo no que dizia respeito à matéria de facto impugnada, como inequivocamente se vê da sequência do acórdão onde se apreciam os depoimentos transcritos apresentados pela recorrente, mas também os apresentados pela parte contrária (cfr. fls. 712, ponto 11) e pelos outros apelantes (cfr. 764), concluindo pela improcedência da pretensão de ver alterada a matéria de facto constante das respostas impugnadas, dando como provados os factos que o Tribunal recorrido considerou provados.
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Por conseguinte, foi reapreciada pela Relação a matéria de facto impugnada com base nos depoimentos transcritos que, para o efeito, se consideraram relevantes, e encontram-se fundamentadas as opções tomadas face à prova transcrita apreciada, pelo que não foi rejeitado o recurso na parte respeitante à matéria de facto, como é bom de ver.
..........................................................................................................................................................................................................................................”
Do acórdão de que parte se encontra extractada recorreu a autora G. para o Tribunal Constitucional, com esse recurso visando, segundo escreveu no requerimento consubstanciador da sua interposição, a “interpretação dada às normas dos arts. 690-A/1/2/ e 712º/1/a do CPC, na redacção aqui aplicável e transcrita no Acórdão recorrido, na medida em que abusivamente impõem ao recorrente a transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda o recurso, são nitidamente inconstitucionais”.
O Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 1 de Julho de 2003, não admitiu o recurso, já que, em síntese, entendeu, por um lado, que a questão de inconstitucionalidade agora pretendida pôr à consideração do Tribunal Constitucional não foi suscitada durante o processo, podendo tê-lo sido e, por outro, que o acórdão intentado recorrer não conferiu às normas vertidas nos artigos 690º-A, números 1 e 2, e 712º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil a interpretação agora questionada, já que aqueles preceitos foram convocados, mas atendendo a um sentido interpretativo, aliás favorável à impugnante, que nada tem a ver aquela interpretação.
É deste despacho, que a autora G. designa por “Acórdão”, que vem deduzida a presente reclamação.
Na peça processual consubstanciadora da reclamação diz a reclamante:
“..........................................................................................................................................................................................................................................
Os Juízes dos Tribunais Superiores são obrigados a ouvir as gravações ou a mandarem oficiosamente transcrever a totalidade das gravações, não podendo ‘escravizar’ ainda mais as partes com ónus absurdos que incumbem aos funcionários do ESTADO, pois as partes já pagam para isso e mais alguma coisa.
O processo, com as referidas condições desrazoáveis e escravizantes,
é desajustado ao espírito democrático e não é equitativo: é um processo
‘colonizador’ e anti-democrático, em que o Estado tem uma atitude desproporcionalmente patronal, no mau sentido, e as partes são espezinhadas no seu direito de intervenção, porque a Lei ao exigir-lhes tudo e mais alguma coisa, impede o funcionamento equitativo do sistema processual: há uma disfunção no balanceamento dos ónus públicos e particulares, com prejuízo para os cidadãos, que não gozam de efectivo direito de intervenção processual (artº 20º da Constituição).
A partir do momento em que o Venerando STJ Lx reconheceu que não havia razão para rejeitar o recurso no que toca à impugnação da matéria de facto, por se tratar de uma posição demasiado formal em prejuízo da substância
-- e porque tal situação é nitidamente inconstitucional, diz a recorrente --, então o Acórdão devia fazer, de imediato, ‘marcha atrás’ e não entrar em mais considerações, de todo em todo, inúteis (artº 137º do CPC), uma vez que essa rejeição formal tinha assumido carácter radical, irreversível e qualquer filosofia subjacente já não conseguiria sair desse círculo fechado.
Esta posição/interpretação inconstitucional do Venerando STJ Lx era completamente inesperada, constituindo uma autêntica surpresa que tenha dado razão e não razão, em simultâneo, e sobre a mesma questão processual à recorrente, que ficou deveras baralhada com essa tese e anti-tese do mais Alto Tribunal Português, cujo esplendor de raciocínio não permite estas tergiversações.
Devido a esta inesperada contradição judicial é admissível recurso para o Tribunal Constitucional do referido Acórdão do Venerando STJ Lx.
A recorrente e ora reclamante ao transcrever alguns depoimentos fê-lo a título exemplificativo, incumbindo ao Tribunal da Relação de Lisboa mandar transcrever toda a matéria de facto e analisá-la criteriosamente para atingir a verdade material, sendo vedado constitucionalmente aos Tribunais Superiores limitarem-se a uma opção analítica meramente formal!!!
Por isso, o Acórdão de 1.7.03, de fls. devia ter determinado a obrigatoriedade da transcrição dactilográfica dos depoimentos gravados e não permitir um ‘faz de conta’ meramente processual, alheado absolutamente da substância factual.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................”
Ouvido sobre a reclamação, o Representante do Ministério Público pronunciou-se no sentido do respectivo indeferimento.
Cumpre decidir.
2. É por demais óbvia a sem razão da presente reclamação.
Na verdade, o acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 29 de Abril de 2003 (que é, afinal, aquele a que se reportou o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, não se compreendendo, por isso, a menção constante da reclamação ao “Acórdão de
1.7.03”) não sustentou a sua decisão numa qualquer dimensão interpretativa dos artigos 690º-A, números 1 e 2, e 712º, nº 1, alínea a), ambos do diploma adjectivo civil, da qual resultasse que incumbia às «partes» a transcrição da totalidade dos depoimentos prestados em audiência de julgamento.
Antes aquele aresto limitou-se a entender que o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão então impugnado - não obstante a asserção que utilizara anteriormente no sentido de que a impugnação respeitante à matéria de facto deduzida pela ora reclamante dever ser rejeitada pela circunstância de a mesma não ter especificado em concreto quais os depoimentos que serviam de base
à impugnação que efectuara -, acabou por tomar conhecimento do recurso, na vertente da impugnação da matéria fáctica. E, para assim concluir, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou o conjunto normativo constituído pelos números 1 e 2 do artº 690º-A e pela alínea a) do nº 1 do artº 712º no sentido de que, ainda que um recorrente não tenha especificado os concretos meios probatórios constantes da gravação que impunham decisão sobre a matéria de facto diversa da recorrida, limitando-se a apresentar uma transcrição de depoimentos, se não deve rejeitar o recurso atinente a tal matéria.
Convir-se-á, desta sorte, que a dimensão normativa que a ora reclamante deseja submeter à apreciação pelo Tribunal Constitucional não foi, minimamente, utilizada como ratio decidendi do acórdão de 29 de Abril de
2003.
Isto é quanto basta para que se conclua que, in casu, falece um dos requisitos do recurso a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso esse que, muito embora esta disposição legal não tenha sido citada pela reclamante, contrariamente ao que se comanda no nº 1 do artº 75º-A da mesma Lei, é o único que se vislumbra como ancorando a impugnação desejada exercer pela mesma reclamante.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 24 de Outubro de 2003 Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida