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Proc. nº 218/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figura como recorrente A. e como recorridos o Ministério Público e B., a Relatora proferiu Decisão Sumária ao abrigo do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso (cf. fls. 666 e ss.). O recorrente vem agora reclamar para a Conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, afirmando o seguinte:
A. recorrente nos autos acima indicados, notificado em 9 de Maio da Douta Decisão Sumária de 5 de Maio, vem RECLAMAR para a conferência, nos termos do art. 78º nº 3 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com os seguintes fundamentos:
1. Na aliás Douta Decisão Sumária, ora reclamada diz-se a dado passo:
2. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280, n° 1, al. b) da Constituição e 70º nº 1, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
3. O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que se tem por violada e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa inconstitucionalidade a uma decisão ou acto administrativo.
4. Por outro lado o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de inconstitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolacção da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se considera assim suscitada durante o processo a constitucionalidade normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade ou no requerimento de interposiçâo de recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 155/95, DR, 2ª série de 20 de Junho de 1995).
5. Sendo esta a jurisprudência pacífica deste Alto Tribunal, a mesma douta decisão continua:
6. De acordo com o disposto no art. 72º nº 2 da Lei do Tribunal Constitucional o recorrente tinha o ónus de suscitar as questões de constitucionalidade que pretende ver apreciadas nas alegações de recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 551). Contudo, ao contrário do que afirmou na resposta de fls. 663 e 664, o recorrente não suscitou nessa peça processual qualquer questão de constitucionalidade normativa. Com efeito só no requerimento de arguição de nulidade é que foi esboçada uma questão de constitucionalidade reportada aos artºs 364°, 100º, e 101° nºs 1 e 2 e 412º nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal (cf. transcrição supra), o que se afigura manifestamente intempestivo uma vez que a questão relativa à transcrição das gravações de prova já havia sido colocada nos autos, desde o despacho de fls. 542 (também transcrito supra).
7. Ora, só por lapso manifesto é que se pode ter feito tal afirmação ao arrepio de quanto se alegou de fls. 551 a 558, onde designadamente se escreveu:
8. Cumpre-se nestes autos, além do mais o decidido no douto acórdão dessa Veneranda Relação de 24/5/2000 inserto de fls. 438 a 441 segundo o qual, no caso do tribunal a quo possuir os meios técnicos idóneos a reprodução, integral a sua gravação magnetofónica há que proceder à transcrição no mais curto espaço possível nos termos do art. 101º, nº 2 do CPP e ainda a apensação, selagem e numeração consoante dispõe o art° 101º nº 3, do mesmo diploma.
9. Na verdade - continua aquele douto aresto - mesmo a gravação magnetofónica ou audiovisual das declarações prestadas em audiência não dispensa a sua transcrição para o processo em escrita comum no mais curto prazo possível, até porque a acta se destina a fazer prova plena, é um documento autêntico (cfr. arts. 99º, n° 4, 101° n° 2 e 1690 do C.P.P.).
10. O funcionário que redigir o auto - diz ainda o acórdão - faz a sua transcrição no mais curto espaço possível (arts. 100º n° 2 e 101°).
11. Mas o acórdão vai mais longe: como o art. 412º n° 4 do C.P.P./98 exige ao recorrente que pretende impugnar matéria de facto (como é o caso), para além das especificações constantes do n° 3 do mesmo preceito, que faça referência aos suportes técnicos, havendo lugar à transcrição e a falta de cumprimento dessas regras sujeita o recurso à sua rejeição, sem que o vício possa ser atribuído ao recorrente, que assim vê o seu direito ao recurso afectado, com violação do art.
20º da Lei Fundamental.
12. E nessas alegações de recurso (anteriores em cerca de 1 ano ao acórdão recorrido), formularam-se as seguintes conclusões:
13. Não se tendo facultado ao recorrente os elementos exigidos na lei e no douto acórdão dessa veneranda Relação de 29/5/2000, inserto de fls. 438 a 441 dos presentes autos, cometeu-se a mesma irregularidade processual que no anterior julgamento, afectando o novo, nos termos do art. 123° n° 2 do C.P.P., o que conduz à invalidade deste e origina que se proceda a novo julgamento com as formalidades legais dos arts. 364 nºs 1 e 4, 100º e 101° nºs 2 e 3 do C.P.P./98, que voltaram a ser violados.
14. E porque assim não se cumpriu o ordenado naquele douto acórdão, ofendeu-se o caso julgado, violando-se o art. 672º do C.P.C. ex vi art. 4 do C.P.P. e ainda se colocou o recorrente numa situação de justo impedimento nos termos do art.
146° do C.P.C. e limitando-se a faculdade de recorrer com violação do art. 20 da C.R.P.
15. De tais irregularidades e inconstitucionalidades resulta como corolário o interesse de recorrer dos recursos retidos e interpostos ...
16. Impossibilitado, assim de impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente, não deixa, por cautela, de se pronunciar sobre a matéria de direito.
17. Ora, com o devido respeito, parece resultar muito evidente que muito antes
– um ano antes - da prolação do acórdão recorrido de 12/11/2002, e da alegação de inconstitucionalidade constante da arguição de nulidade do dito acórdão, entrado em 28/12/2002, já o recorrente tinha suscitado de modo processualmente adequado (e antes do trânsito em julgado do despacho de fls. 542), a questão da constitucionalidade normativa consistente na interpretação segundo a qual o não cumprimento do disposto nos arts. 364º, 100º, 101°, nºs 1 e 2 do C.P.P. em conjugação com os artigos 412º nºs 3 e 4 do C.P.P. implica a rejeição do recurso não constitui justo impedimento nos termos do art. 146° do C.P.C. e 107º nº 2 do C.P.P. por violação dos arts. 20º, e 32° n° 1 da Lei Fundamental.
18. Aliás, no sentido propugnado pelo recorrente já decidiu o douto Acórdão
363/2000, no proc. n° 838/98 da 3ª secção deste Venerando Tribunal, relatado pelo Ven. Cons. Dr. Sousa Brito.
19. Mas a douta decisão sumária diz mais:
20. Por outro lado, a decisão rocorrida não apreciou a questão prévia invocada pelo recorrente com fundamento na existência de caso julgado. Desse modo e uma vez que tal questão prévia se refere às inconstitucionalidades invocadas pelo recorrente relativas à transcrição da prova, verifica-se que os preceitos invocados pelo recorrente nos 2° primeiros pontos da resposta ao despacho proferido ao abrigo do art° 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional não foram aplicados pela decisão recorrida.
21. Salvo o devido respeito, o acórdão recorrido, pese embora não ter apreciado directamente os preceitos invocados pelo recorrente com base na existência de caso julgado, pronunciou-se implicitamente sobre este ponto ao considerar que o trânsito em julgado do despacho de fls. 542, um ano e meio mais velho do que o trânsito do douto acórdão de 29/5/2000, se sobrepunha a este, em violação flagrante do artigo 672º do C.P.C. e, consequentemente o art. 675° do C.P.C. ex vi art. 4 do C.P.P. e assim com violação das normas constitucionais dos arts.
20º e 32° n° 1 da C.R.P., com preterição dos direitos e interesses legalmente protegidos, e garantias de defesa, mormente as relativas à certeza do direito e das decisões transitadas em julgado, como invocado foi nas alegações de fls..
551 e segs. velhas de um ano em relação ao acórdão recorrido.
22. Finalmente a douta decisão sumária refere:
23. Por último, a questão identificada em 3° lugar na resposta ao despacho proferido ao abrigo do art. 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional não demonstra invocação perante o tribunal recorrido de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Na verdade, é absolutamente imperceptível como conteúdo normativo o que o recorrente invoca. Com efeito, apenas é referida uma dada “... interpretação”, sem referência explícita ao preceito concreto do qual se retiraria directamente qualquer interpretação, não sendo também identificado e formulado qualquer critério normativo que tenha sido aplicado pelo acórdão recorrido (cf. transcrição supra). A única conclusão a extrair do que o recorrente invoca é que pretende impugnar a decisão recorrida e que foi essa a natureza da questão que suscitou perante o tribunal recorrido.
24. Mais uma vez entendemos, e sempre ressalvado o devido respeito que é muito, que esta última questão invocada pelo recorrente é corolário da interpretação normativa do que acima ficou escrito a propósito do caso julgado.
25. Ou seja, a interpretação dada pelo acórdão recorrido no sentido de se ter de recorrer do despacho de fls. 542 acaba por dar prevalência ao trânsito em julgado deste último em relação ao trânsito em julgado do douto acórdão de
29/5/2000 é violadora do art. 672° e 675º do C.P.C. ex vi art. 4º do C.P.P. e por via dessa interpretação dos artigos 13° 20º e 32º n° 1 da C.R.P. como aliás oportunamente se referiu, nas alegações de recurso e requerimento de arguição de nulidade, na medida em que se favoreceram os interesses do arguido, em flagrante desigualdade aos do recorrente; se violou a defesa dos direitos e interesses legitimamente protegidos do recorrente pelo douto acórdão de 29/5/2000; e se desprezaram as garantias de defesa do recorrente - princípios constitucionais estes consignados nos referidos artigos 13º 20º e 32° nº 1 da C.R.P. Nestes termos e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento à presente reclamação, ordenando-se o prosseguimento desta e mandando-se notificar o recorrente para apresentar alegações.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar.
2. O reclamante afirma que suscitou a questão que pretende ver apreciada nas alegações de recurso apresentadas perante o Tribunal da Relação de Lisboa. Para o demonstrar, procede à transcrição de parte dessas alegações (transcrição que foi expressamente ponderada na Decisão Sumária reclamada), concluindo “resultar muito evidente” que suscitou durante o processo uma questão de constitucionalidade. Ora, da transcrição feita não consta a suscitação de qualquer questão de constitucionalidade normativa. Com efeito, não basta invocar a afectação do direito ao recurso, com violação do artigo 20º da lei fundamental”, para se considerar suscitada uma questão com essa natureza. O reclamante nesse momento apenas se refere ao alegado não cumprimento do ordenado, à ofensa de caso julgado e à colocação do recorrente numa situação de justo impedimento pela decisão. Não imputa a uma norma ou dimensão normativa inconstitucional aqueles
“vícios”. Em suma, não refere qualquer critério normativo que tenha fundamentado, explicitando-o, aquelas consequências. O facto de o reclamante afirmar na presente reclamação que a questão que pretende ver apreciada é a “consistente na interpretação segundo a qual o não cumprimento do disposto nos artigos 364º, 100º, 101º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 412º, nºs 3 e 4, do mesmo Código, implica a rejeição do recurso não constitui justo impedimento [sic] nos termos dos artigos 146º do Código de Processo Civil e 107º, nº 2, do Código de Processo Penal por violação dos artigos 20º e 32º, nº 1 da Lei Fundamental” não pode suprir a falta dos pressupostos processuais do recurso de constitucionalidade apontado. Assim, a afirmação citada, para além de surgir pela primeira vez durante o processo no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, não coincide com o que se sustentou nas alegações do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nessa medida, não se pode considerar tempestivamente suscitada a questão (como se entendeu na Decisão Sumária reclamada).
3. O reclamante afirma ainda que o acórdão recorrido fez apreciação da questão suscitada, procurando desse modo impugnar o ponto 6 da Decisão Sumária, o qual, note-se, constitui apenas um reforço da fundamentação da decisão impugnada. No entanto, o próprio reclamante reconhece que o acórdão não apreciou “directamente os preceitos invocados”. Mas, decisivamente, a transcrição feita na Decisão Sumária do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa demonstra que o tribunal recorrido assumiu expressamente o não conhecimento da questão suscitada pelo então recorrente, não sendo os preceitos invocados pelo recorrente, obviamente, ratio decidendi. O reclamante parece pretender suscitar agora, no âmbito da presente reclamação, uma eventual questão de constitucionalidade reportada aos artigos relativos ao caso julgado. Contudo, para além de não ter sido verdadeiramente suscitada qualquer questão normativa, como foi referido, também a suscitação neste momento seria de todo intempestiva.
4. O reclamante pretende, por último, impugnar o ponto 7 da Decisão Sumária, no qual se considera que a questão identificada em terceiro lugar na resposta ao Despacho proferido ao abrigo do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional não demonstra a invocação perante o tribunal recorrido de uma questão de constitucionalidade normativa. O que o reclamante afirma nos pontos 22, 24 e 25 da presente reclamação é particularmente elucidativo do que se considerou na Decisão Sumária impugnada. Com efeito, o próprio reclamante não identifica qualquer questão de constitucionalidade na presente reclamação (o que sempre seria intempestivo), apenas afirmando, mais uma vez, que uma dada interpretação (que identifica referindo uma decisão dos autos) viola preceitos infraconstitucionais e constitucionais. É, pois, manifesto que não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, como se referiu na Decisão Sumária reclamada.
5. O reclamante invoca, mais uma vez, o Acórdão nº 363/2000. Quanto a esta invocação, remete-se para o que se disse no ponto 8 da Decisão Sumária impugnada.
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 8 de Julho de 2003 Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos