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Proc. n.º 257/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. (ora recorrido), cidadão de nacionalidade russa e arguido em autos de processo criminal pendentes no 2º Juízo Criminal da Comarca de Cascais, requereu, em 5 de Dezembro de 2002, a concessão do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo.
2. O Juiz daquele Tribunal, por decisão de 15 de Janeiro de 2003, decidiu conceder o apoio judiciário na modalidade solicitada, tendo, para o efeito, recusado aplicação ao disposto no artigo 7º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade material. Para decidir desta forma ponderou aquele Tribunal, , o seguinte:
“[...] Ora, concorda-se que a situação do arguido, supra descrita, não se enquadra na previsão do n.º 3 do artigo 7º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, pelo que, de acordo com a lei ordinária, não pode beneficiar de protecção jurídica. Mas, salvo melhor entendimento, que sempre e muito se respeita, são inconstitucionais as restrições constantes do artigo 7º da Lei n.º 30-E/2000, de
20 de Dezembro, e concretamente as restrições constantes do n.º 3 desse preceito. Na verdade, assim se entende, as restrições que se baseiam em questões de reciprocidade violam o princípio da não discriminação (art. 13º, n.º 2, da CRP), o princípio da equiparação (art. 15º, n.º 1, da CRP) e o direito fundamental de acesso aos tribunais (art. 20º, n.ºs 1 e 2 da CRP). Consequentemente, nos termos do artigo 204º da CRP, não aplico o disposto no artigo 7º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
[...]”.
3. É desta decisão que vem interposto pelo representante do Ministério Público naquele Tribunal, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 7º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, a que a decisão recorrida recusou aplicação com fundamento na sua inconstitucionalidade material.
4. Admitido o recurso foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“1 – É materialmente inconstitucional – desde logo por violação do disposto no n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa – a norma constante dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 7º da Lei n.º 30-E/2000, enquanto denega ao arguido estrangeiro, economicamente carenciado, preso preventivamente à ordem do processo penal pendente perante tribunais portugueses, o direito ao apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo.
2 – Na verdade, condicionando a própria lei de processo e de custas o exercício de relevantes meios de defesa do arguido ao prévio pagamento da taxa de justiça respectiva, resultaria de tal restrição no acesso ao apoio judiciário uma verdadeira impossibilidade prática de o arguido se poder defender da acusação que lhe era imputada.
3 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida”.
5. Por sua vez, o recorrido concluiu a sua alegação dizendo:
“I – As normas dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 7º da Lei do Apoio Judiciário, Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, são materialmente inconstitucionais, por violarem o disposto nos artigos 13º, n.º 2, 15º, n.º 1 e 20º, n.º 1 da CRP, porquanto denegam ao arguido estrangeiro, economicamente carenciado, preso preventivamente à ordem de processo penal pendente perante tribunais portugueses, o direito ao apoio judiciário, na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo. II - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida”.
II. Fundamentação.
5. Delimitação do objecto do recurso.
Vem o presente recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação, nos termos do respectivo requerimento de interposição, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 7º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro. Importa, porém, delimitar mais rigorosamente o objecto do recurso assim delineado, já que, dos cinco números que aquele preceito contém, apenas a norma contida no n.º 3 é, em rigor, questionada.
Com efeito, em causa nos presentes autos está apenas o n.º 3 daquele artigo 7º, uma vez que é este que se refere à concessão do direito a protecção jurídica a estrangeiros não residentes em Portugal - situação em que se encontrava o então requerente e ora recorrido -, sendo igualmente este preceito que faz depender a possibilidade dessa concessão da circunstância de esse direito ser igualmente atribuído aos portugueses pelas leis dos respectivos Estados. Ora, é precisamente esta exigência de reciprocidade que, na concreta situação que é objecto dos autos, a decisão recorrida entende que é inconstitucional, na medida em que conduziria a denegar a estrangeiro, economicamente carenciado, arguido em processo penal pendente perante tribunais portugueses, o direito ao apoio judiciário, na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Em suma: a questão de constitucionalidade normativa que vem colocada a este Tribunal Constitucional reporta-se, assim, exclusivamente à norma constante do artigo 7º, n.º 3, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, pelo que apenas dela haverá que cuidar no presente recurso.
6. Julgamento do objecto do recurso
6.1. Entende o Ministério Público, ora recorrente, que há que considerar inconstitucional tal norma, cujo teor se reproduz - “Aos estrangeiros não residentes é reconhecido o direito a protecção jurídica, na medida em que ele seja atribuído aos portugueses pelas leis dos respectivos Estados” -, desde logo, porque ela contraria o disposto no n.º 1 do artigo 32º da Constituição.
Vejamos.
O artigo 32º, nº1, da Constituição, dispõe, actualmente, que “o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Ponderando sobre o sentido e alcance do n.º 1 do artigo 32º da Constituição escrevem, em síntese, Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., I vol., pp. 214, anotação II), que “«todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação”.
Por seu lado, também o Tribunal Constitucional tem, desde sempre, afirmado que a ideia geral que pode, em suma, formular-se acerca do sentido e alcance fundamentais do princípio consagrado no n.º 1 do artigo 32º da Constituição é a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido (assim, designadamente, o Acórdão n.º 337/86, publicado no Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de 1986, bem como muitos outros que se seguiram na sua esteira).
Ora, isto dito, torna-se então evidente que uma leitura do artigo 7º, n.º 3, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, como a que foi efectuada na decisão recorrida e que conduziu à recusa de aplicação da norma, não será compatível com aquele princípio constitucional, na medida em que, ao recusar a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo, a estrangeiro não residente em Portugal, economicamente carenciado e arguido em processo penal pendente perante os tribunais portugueses, essa decisão possa implicar (para utilizarmos as palavras do Acórdão n.º 337/86, já citado) um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido. Com efeito, se, como observa, nas suas alegações, o Ministério Público, “condicionando a lei de processo e de custas o exercício de relevantes meios de defesa ao prévio pagamento da taxa de justiça respectiva, resultar[...] de tal interpretação normativa uma verdadeira impossibilidade prática de o arguido se poder defender da acusação que lhe era imputada”, não restará dúvida de que se encontrarão cerceadas as possibilidades de defesa do arguido, ao menos na medida em que a isenção prevista no artigo
522º do Código de Processo Penal não cubra tais situações.
Será, assim, procedente a conclusão, sustentada nos presentes autos pelo Ministério Público, de que a norma ora em apreciação, interpretada nos termos em que o foi pela decisão recorrida e na medida em que conduza ao resultado que se acaba de referir, viola o princípio de que o processo penal assegurará todas as garantias de defesa consagrado o artigo 32º, n.º 1 da Constituição.
6.2. Na perspectiva da decisão recorrida, porém, as restrições que se baseiam em questões de reciprocidade e, concretamente, a norma ora em apreciação, violam o princípio da não discriminação (art. 13º, n.º 2, da CRP), o princípio da equiparação (art. 15º, n.º 1, da CRP) e o direito fundamental de acesso aos tribunais (art. 20º, n.ºs 1 e 2 da CRP).”
Ora, o artigo 13º, n.º 2 da Constituição, na parte ora relevante, estatui que
”ninguém pode ser (...) prejudicado (...) em razão de (...) situação económica”. Por sua vez, o artigo 15º, n.º 1, dispõe que, “os estrangeiros (...) que se encontrem (...) em Portugal gozam dos direitos (...) do cidadão português. Finalmente, o artigo 20º, n.º 1, refere que: “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
O Tribunal Constitucional, por seu turno, já se pronunciou sobre a articulação destes preceitos constitucionais com a matéria do direito ao apoio judiciário. Assim, no Acórdão n.º 962/96 (Diário da República, I Série-A, de 15 de Outubro de 1996), tirado em Plenário, o Tribunal Constitucional decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, “das normas dos artigos 7º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, e do artigo 1º, n.ºs 1 e
2, do Decreto-Lei n.º 391/88, de 26 de Outubro, na parte em que vedam o apoio judiciário, na forma de patrocínio judiciário, aos estrangeiros e apátridas que pretendem impugnar contenciosamente o acto administrativo que lhes denegou asilo, por violação das normas conjugadas dos artigos 33º, n.º 6, 20º, n.º 1,
268º, n.º 4 e 15º, n.º 1, da Constituição da República”.
Para concluir desta forma ponderou o Tribunal:
“[...] Da centralidade no sistema constitucional da norma do artigo 20º, enquanto momento de defesa e enquanto momento de pretensão a uma actuação positiva do Estado, ou seja, do significado da tutela judicial como direito à garantia dos direitos, resulta que o acesso ao tribunal integra o núcleo irredutível do princípio da equiparação de tratamento entre nacionais e estrangeiros e apátridas, estabelecido no artigo 15º, n.º 1, da Constituição. Esse princípio de equiparação, se bem que susceptível de excepções a ditar pelo legislador (artigo 15º, n.º 2), não pode ser limitado ao ponto de desvirtuar o estatuto dos estrangeiros constitucionalmente fixado (artigo 15º). [...]”
Mais recentemente, no Acórdão n.º 365/2000 (publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Novembro de 2000), o Tribunal decidiu julgar inconstitucional, por violação do disposto conjugadamente nos artigos 13º, n.º 1, 15º, n.º 1, 20º e 268º, n.º 4, da Constituição da República, a norma do n.º. 2 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção dada pela Lei n.º
46/96, de 3 de Setembro, “enquanto nega a possibilidade da concessão de apoio judiciário ao cidadão de nacionalidade angolana que, alegando ter perdido a nacionalidade portuguesa com o processo de descolonização, pretende efectivar jurisdicionalmente em Portugal, onde não reside, o direito à aposentação com o fundamento de ter sido funcionário da antiga Administração Pública ultramarina”.
Esta jurisprudência permite que se conclua, igualmente, pela incompatibilidade da norma ora em apreciação, não só, como se referiu no ponto 6.1. supra, com os preceitos constitucionais que regulam as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso, mas também com os que regem a garantia do acesso ao direito, na medida em que a interpretação dessa norma coloque em causa “a tutela judicial como direito à garantia dos direitos” ou, como se refere no último acórdão citado, um certo número de direitos fundamentais”.
Essa consequência, não deriva, porém, ao contrário do que é afirmado na decisão recorrida, de uma suposta incompatibilidade, em abstracto, da exigência de reciprocidade (a qual, além de constituir um importante instrumento de política externa, pode ser perfeitamente justificável, em certos casos, para que a estrangeiros não residentes sejam reconhecidos determinados direitos) com os princípios da igualdade ou da não discriminação. Ao invés, a referida incompatibilidade com preceitos constitucionais resultará, apenas, do facto de, a não existir tal reciprocidade, ficarem concreta e inadmissivelmente encurtadas
– e na medida em que o fiquem - as possibilidades de defesa de um arguido e, consequentemente, cerceados “a tutela judicial como direito à garantia dos direitos” ou “um certo número de direitos fundamentais”.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se: a) julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 7º da Lei n.º
30-E/2000, por violação do disposto nos artigos 20º, n.ºs 1 e 2 e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, quando interpretada em termos de conduzir
à recusa da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo, a estrangeiro não residente em Portugal, economicamente carenciado e arguido em processo penal pendente perante os tribunais portugueses; b) consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando-se, embora com fundamentação parcialmente diversa, a decisão recorrida.
Lisboa, 29 de Setembro de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Luís Nunes de Almeida