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Proc. n.º 727/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Em processo que corre os seus termos na subdirectoria do serviço de Policia Judiciária Militar, e em que é arguido o Coronel A . .., o M.mo Juiz de Instrução junto da mesma subdirectoria lavrou despacho mandando constituir como arguida Z... (ora recorrente), casada com o primeiro arguido referido.
2. Inconformada com esta decisão a arguida veio aos autos para arguir a nulidade daquele despacho, arguição que veio a ser julgada improcedente.
3. Novamente inconformada a arguida recorreu deste despacho para o Supremo Tribunal Militar. A concluir a sua alegação, ponderou a recorrente:
“I) É nulo o despacho que constituiu a recorrente como arguida; II) A recorrente não é militar – como, claramente, decorre dos autos; III) Ademais, os crimes que serão imputados à ora alegante (e que são aqueles que se indicam no item 4 do corpo destas alegações) exigem, na sua tipicidade, a função ou qualidade de militar; IV) Assim, se vier a ser julgada por actos por si praticados ( e que sejam considerados pela acusação como criminosos), é o tribunal comum o competente para o julgamento; V) Os artigos 28º e 29º do Código Penal não permitem a interpretação nem de que a recorrente possa jamais vir a ser punida por penas previstas no Código de Justiça Militar nem de que a competência para julgar uma civil deixe de ser dos tribunais comuns ou civis. VI) No sentido que se defende, veja-se a doutrina referenciada no item 5 do corpo destas alegações; VII) O entendimento do art. 28º, n.º 1, do Código Penal que está subjacente à constituição da ora requerente como arguida viola o preceituado nos art.º 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9, todos da Constituição da República Portuguesa; VIII) O despacho sub judice violou os preceitos dos artigos 28º e 29º do Código Penal e 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9, estes da Lei Fundamental; IX) Por isso, deve ser julgado procedente o presente recurso, declarando-se nulo o despacho que constituiu arguida a ora alegante”.
4. O Supremo Tribunal Militar, por acórdão de 30 de Outubro de 2002, decidiu negar provimento ao recurso, decisão que fundamentou, para o que agora importa, nos seguintes termos:
“[...] De facto, a recorrente entende que, sendo civil, nunca pode ser julgada por tribunal militar. Não tem, porém, razão. Na vigência do Código de Justiça Militar de 1875 e seguintes, o foro militar conhecia dos crimes essencialmente militares fosse quem fosse o seu autor e ainda dos crimes comuns cometidos por militares. A partir do actual C.J.M. de 1977, os tribunais militares passaram a julgar somente os crimes essencialmente militares, em exclusivo e independentemente da condição de militar ou civil dos seus agentes.
É o que resulta das normas constitucionais (hoje o artigo 213º, n.º 1 da Constituição – versão de 1989 ainda em vigor) e do art. 309º do Código de Justiça Militar. Daí que a recorrente possa ser julgada por Tribunal Militar e ser constituída arguida em processo criminal militar, como qualquer cidadão militar ou civil, desde que seja indiciada pela prática de crime essencialmente militar. Segundo o despacho que mandou constituir a recorrente como arguida, esta terá praticado, em co-autoria, os crimes previstos no art. 193º, n.º 1, al. a); 195º, n.ºs 1 e 2 e 186º, n.º 1, al. a), todos do Código de Justiça Militar. Estes crimes exigem que o seu autor seja pessoa integrada ao serviço das Forças Armadas (artigos 193º, n.º 1 e 186º) e militar (artigo 195º), havendo forte indicação de que a recorrente não é nem uma coisa nem outra. Porém, o art. 28º, n.º 1, do Código Penal, aplicável in casu por força do art.
4º do C.J.M., preceitua: «se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena prevista, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora». Esta foi a norma invocada pelo M.mo Juiz de Instrução recorrido para ordenar a constituição como arguida da recorrente, indiciada pela prática em co-autoria de crimes cometidos por um militar. A recorrente sustenta que este preceito não é aplicável aos crimes essencialmente militares próprios em que se exige, no tipo, a qualidade de militar ou de elemento integrado ou ao serviço das Forças Armadas, sustentando-se na opinião do Conselheiro Maia Gonçalves expressa no Código Penal Anotado. E adita que se interpretação contrária for aceite, ela seria inconstitucional por violação do disposto nos artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da Lei Fundamental. Tem este Supremo Tribunal a maior consideração e respeito pela opinião do Conselheiro Maia Gonçalves, antigo e ilustre Juiz do S.T.M. Todavia, no caso sub judicio, diverge-se da sua aludida opinião, por parecer que a qualidade de militar ou de integrado ou ao serviço das Forças Armadas, não constitui elemento definidor do ilícito como crime essencialmente militar, mesmo no crime militar próprio. Efectivamente, não é pela circunstância de o autor do crime ser militar que o ilícito se transfigura de comum para essencialmente militar. Os crimes essencialmente militares são aqueles que atingem gravemente os bens jurídicos e valores militares, tais como a disciplina, a coesão, a hierarquia, a segurança, etc. ..., independentemente de haver ou não crimes comuns com correspondentes ou semelhantes. Sucede que, pela natureza das coisas, há certos crimes que só podem ser cometidos materialmente por militares (v.g. a deserção, a insubordinação, o abandono de posto, etc. ...) e outros há que o legislador exige a qualidade de militar ou de pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas como característica do seu autor material. Mas, em ambos os casos, o crime existe para proteger os bens jurídicos militares e por isso é crime essencialmente militar. Deste modo, tal como sucede em relação aos médicos, aos juizes ou aos funcionários públicos, em que existem crimes cuja autoria material só a eles pode ser atribuída, mas cuja comparticipação é punível em relação a outros agentes não detentores dessa qualidade, também nos crimes militares próprios a comparticipação é punível, nos termos do art. 28º, n.º 1, do Código Penal, mesmo quando só o seu autor material tenha a qualidade de militar ou de pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas. Assim, a recorrente podia ser, como foi, indiciada como arguida pela co-autoria dos crimes que lhe são imputados. Alega a recorrente que esta interpretação dada ao art. 28º, n.º 1, do Código Penal viola o disposto nos artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da Constituição, mas igualmente, ao que se crê, sem razão. O art. 29º, n.º 1, da CRP estatui o princípio da nula poena sine lege, o que não impede a imputação à recorrente dos crimes cuja previsão e pena estão há muito previstos no C.J.M. O artigo 30º, n.º 3 da Lei Fundamental dispõe que «a responsabilidade penal é insusceptível de transmissão», o que também é inaplicável ao caso dado em que se atribui à recorrente a imputação de factos por ela praticados e que a responsabilizam penalmente. E não constitui transmissão de responsabilidade a circunstância de ser estendida uma qualidade pessoal existente num arguido a todos os comparticipantes do crime. Finalmente, quanto ao art. 32º, n.º 9 da Constituição, que estabelece que o princípio do juiz natural, não existe em execução da norma em causa qualquer subtracção ao foro competente. Pelo contrário, segundo a lei o tribunal competente para o julgamento dos crimes essencialmente militares é e sempre foi o tribunal militar. Desta sorte, não foram infringidas as regras de competência ao ser a recorrente constituída como arguida no foro militar, pelo que não existe nulidade em tal constituição e os despacho recorrido não merece censura”.
5. Foi desta decisão que foi interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade “dos artigos 28º e 29º do Código Penal, tendo em conta a interpretação que lhes foi dada na decisão recorrida”, por alegada violação dos artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da Constituição.
6. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada, nos termos do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, “para indicar a interpretação normativa dos artigos 28º e 29º do Código Penal que considera inconstitucional”.
7. Em resposta a esta solicitação apresentou a recorrente o requerimento de fls.
59 e 60, que dispõe como segue:
“1. O despacho de que inicialmente se recorreu para o Supremo Tribunal Militar e o Acórdão proferido pelo mesmo Tribunal Militar entenderam que os artigos 28º e
29º do Código Penal são aplicáveis ao caso dos autos e que, portanto, a ora-requerente deve responder em Tribunal Militar.
2. Mas, na esteira do Conselheiro Maia Gonçalves (Código Penal Português, Anotado e Comentado e Legislação Complementar, 12ª edição, 1998 páginas 149 e
150) a melhor interpretação daqueles preceitos é de molde a entender-se que ficam excluídas as qualidades que fundamentam a submissão a um ordenamento autónomo de crimes, como é o caso da qualidade de militar.
3. A interpretarem-se os citados artigos do Código Penal, como o fizeram os Tribunal Militares, violar-se-iam os artigos citados no requerimento de interposição do presente recurso (artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da C.R.P.) em termos de sujeitar a requerente a julgamento em Tribunal claramente incompetente já que ela é civil e os crimes de que é acusada exigem, na sua tipicidade, a função ou qualidade de militar.
4. Em suma, o referido entendimento dos artigos 28º e 29º do Código Penal levaria a que, ilegal e inconstitucionalmente, um civil viesse a ser julgado não no Tribunal Comum, como é seu direito, mas num Tribunal Militar, com o gravame que tal geraria e com total desrespeito pelos seus direitos, nomeadamente aqueles que, como se disse, emergem da Constituição da República Portuguesa”.
8. Na sequência foi a recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
“A – O STM, salvo o devido respeito, não enquadrou devidamente a questão que nos presentes autos importava dirimir. Mais precisamente, B – O que aqui está em causa, em primeira linha, não é tanto a questão de saber se podem ou não os civis praticar crimes essencialmente militares, mas antes saber se podem ou não aqueles, por força da extensão operada pelos artigos 28º e
29º do Código Penal, ser julgados em tribunal militar pela prática de crimes para os quais a lei exige, expressamente, a qualidade de militar ou outra equiparável. Deste modo, C – Devia o tribunal recorrido ter começado por determinar, com rigor e suficiente certeza, se a actuação da arguida, ora recorrente, se enquadrava em alguma das situações previstas no artigo 28º do Código Penal, ao invés de a constituir arguida com base num juízo puramente indiciário, já que tal questão sempre seria determinante para aferir o foro competente. Sem embargo de, D – As referências doutrinais disponíveis serem unânimes na exclusão do artigo
28º aos casos em que, como nestes autos sucede, as qualidades fundamentam «(...) a submissão a um ordenamento autónomo de crimes e penas, como o estatuto de
“militar” nos casos em que o Código de Justiça Militar faz depender desse estatuto a aplicação das suas estatuições» (Tereza Pizarro Beleza, ob. cit.; em igual sentido, Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 15ª ed., 2002, pp. 140); Com efeito, E – Não é possível “estender” aos civis a qualidade de “militares” e os atinentes tipos específicos próprios previstos e punidos no CJM; F - Conforme, de resto, e em caso equivalente, já O Conselho Consultivo da P.G.R. havia precisado: «Que os membros das forças militarizadas podem cometer crimes essencialmente militares está fora de questão, como também o podem os civis. Mas daí não se segue que todos os crimes essencialmente militares possam ser cometidos por quem não seja militar propriamente dito» (cfr. Parecer n.º
181/80, de 11/06, BMJ n.º 310, 1981, pp. 141 e segs., realces nossos); G - Assim tendo concluído que «os agentes da Polícia de Segurança Pública só estão sujeitos à jurisdição dos tribunais militares, nos termos gerais, quando arguidos de crimes essencialmente militares que não pressuponham, como elemento típico, a qualidade de militar do respectivo sujeito activo» (cfr. Parecer cit., realces nossos); H - Sendo assim relativamente aos polícias, por maioria de razão não pode deixar de ser relativamente aos demais cidadãos não militares; I - Conforme, aliás, há muito vem defendendo a doutrina mais avisada: «só pode violar um dever militar aquele que tenha a qualidade de militar ou a ele esteja equiparado» (Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, I, 1981, pp. 228); J - O STM cometeu, salvo o devido respeito, dois erros capitais: em primeiro lugar, considerou em abstracto, que a qualidade de militar não é elemento do tipo de crime essencialmente militar, olvidando que manifestamente assim não é relativamente aos crimes, em concreto, imputados à arguida, ora recorrente; em segundo lugar, deu de barato que a recorrente violou bens especificamente tutelados pelo ordenamento jurídico-militar, quando efectivamente assim não sucedeu, por força da própria especificidade dos crimes de falsidade e infidelidades militares Na verdade, L - Dada a natureza dos crimes em causa e os bens jurídicos protegidos, necessário se torna, para que os mesmos assumam verdadeira natureza militar, que sejam praticados por militares ou, ao menos, por elementos ao serviço das forças armadas. De outro modo, como poderia um não militar, em tempo de paz, estar investido ou encarregado de um comando militar cuja direcção, fiscalização, exame ou informação lhe pertença ? (cfr. artigo 195°, n.º 1, do CJM); M - Não é possível, contrariamente ao que no Acórdão recorrido se decidiu, ignorar a delimitação subjectiva operada, em primeira linha, pelo próprio CJM, relativamente a determinado grupo de crimes; N - Tal delimitação foi efectuada em função dos valores que à Justiça Militar compete salvaguardar, pelo que não comporta desvio algum ao punctum saliens dos crimes essencialmente militares, que continua a radicar na natureza dos bens jurídicos violados; O - Os artigos 28° e 29° do Código Penal não podem operar no sentido de determinar o foro competente, o crime e a pena respectiva de forma inovadora e totalmente inesperada. Tal traduz-se numa flagrante violação dos princípios da legalidade e da tipicidade das penas consagrados no artigo 29°, n.º 1, da Constituição da República; P - A não ser assim, o que verdadeiramente estaria em causa seria a criação, sem credencial da Assembleia da República, contra os direitos e legítimas expectativas dos cidadãos, de novos e inusitados tipos; a saber: falsidade e infidelidade militar praticados por civis que não possuam vínculo algum com as forças armadas; Q - Nesta situação, resultaria ainda violado o princípio da pessoalidade da responsabilidade penal, consagrado no artigo 30°, n.º 3, da Constituição da República; Por último, R- Estaria em causa a subtracção da causa ao tribunal competente, com consequente violação do disposto no artigo 32°, n.º 9, da Constituição da República”.
9. Notificado para responder, querendo, às alegações do recorrente, disse o Ministério Público a concluir:
“1 – Para a prática dos crimes previstos e puníveis pelos artigos 186º n.º 1, alínea a), 193º, n.º 1, alínea a) e 195º, n.ºs 1 e 2 do Código de Justiça Militar são exigíveis as qualidade de militar ou de integração ou serviço nas forças armadas.
2 – As normas dos artigos 28º e 29º do Código Penal são inconstitucionais, por violação do artigo 215º da Constituição (revisão de 89) quando interpretadas no sentido de permitirem a sujeição ao foro militar do comparticipante que não possuir determinada qualidade exigível pelo tipo legal de crime previsto no Código de Justiça Militar, por tal determinar uma extensão não conforme à Lei Fundamental de um ordenamento restrito e reduzido a um núcleo essencial de comportamentos criminosos.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso”.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
10. Delimitação do objecto do recurso.
Importa, antes de mais, começar por delimitar com rigor o objecto do recurso, que a recorrente reporta a uma determinada interpretação normativa dos artigos
28º e 29º do Código Penal. É que, como pode ver-se pela decisão recorrida, cuja fundamentação já transcrevemos integralmente, para concluir pela possibilidade de sujeição da ora recorrente ao foro militar o Supremo Tribunal Militar não se apoiou normativamente no artigo 29º do Código Penal, que nunca refere, mas, exclusivamente, numa determinada interpretação normativa do artigo 28º, n.º 1, daquele diploma. Sendo este o único preceito, nesta parte, efectivamente aplicado, como ratio decidendi, pela decisão recorrida, a ele se tem necessariamente que restringir o objecto do recurso.
Isto dito, importa ainda identificar a exacta interpretação normativa deste preceito que vem questionada. É o seguinte o teor do artigo 28º, n.º 1, do Código Penal:
“Artigo 28º
(Ilicitude na comparticipação)
1. Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações especiais se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora.
2. (...)”.
A concluir as alegações que apresentou perante o Supremo Tribunal Militar ponderou, para o que agora importa, a Recorrente:
“[...] V) Os artigos 28º e 29º do Código Penal não permitem a interpretação nem de que a recorrente possa jamais vir a ser punida por penas previstas no Código de Justiça Militar nem de que a competência para julgar uma civil deixe de ser dos tribunais comuns ou civis; VI) No sentido que se defende, veja-se a doutrina referenciada no item 5 do corpo destas alegações; VII) O entendimento do art. 28º, n.º 1, do Código Penal que está subjacente à constituição da ora requerente como arguida viola o preceituado nos art.s 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9, todos da Constituição da República Portuguesa.
[...]”.
Suscitou, pois, a recorrente, durante o processo, a inconstitucionalidade do artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretado em termos de (a) permitir que à recorrente venham a ser aplicadas as penas previstas no Código de Justiça Militar; e (b) conduzir à atribuição ao foro militar da competência - que, na sua perspectiva, seria dos tribunais civis - para o seu julgamento.
Já no Tribunal Constitucional foi a recorrente convidada para identificar a exacta interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada por este Tribunal, tendo dito, para o que agora importa, o seguinte:
“(...)
3. A interpretarem-se os citados artigos do Código Penal, como o fizeram os Tribunal Militares, violar-se-iam os artigos citados no requerimento de interposição do presente recurso (artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3 e 32º, n.º 9 da C.R.P.) em termos de sujeitar a requerente a julgamento em Tribunal claramente incompetente já que ela é civil e os crimes de que é acusada exigem, na sua tipicidade, a função ou qualidade de militar.
4. Em suma, o referido entendimento dos artigos 28º e 29º do Código Penal levaria a que, ilegal e inconstitucionalmente, um civil viesse a ser julgado não no Tribunal Comum, como é seu direito, mas num Tribunal Militar (...)”.
(Sublinhados nossos).
Limitou, pois, a recorrente, o objecto do recurso à segunda das questões supra identificadas: ou seja, a relativa à possibilidade de sujeição ao foro militar, por força do mecanismo de extensão da ilicitude previsto no artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, de um civil que não tenha a qualidade típica exigida pelos crimes previstos no Código de Justiça Militar de que a ora recorrente é acusada. Assim, a questão de constitucionalidade que vem questionada pode, em suma, formular-se nos seguintes termos:
É inconstitucional o artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, designadamente por violação dos artigos 29º, n.º 1, 30º, n.º 3, 32º, n.º 9, [ou 215º (este na redacção de 89), fundamento aduzido pelo Ministério Público] da Constituição, quando interpretado em termos de conduzir à sujeição ao foro militar do comparticipante que não possui a qualidade típica exigida pelos crimes que lhe são imputados e previstos no Código de Justiça Militar ?
11. Julgamento do objecto do recurso.
Para sustentar a sua tese - de que estão excluídas do artigo 28º do Código Penal aquelas qualidades que fundamentem a submissão a uma jurisdição diferente, como seria aqui o caso - começa a recorrente por invocar que essa interpretação do preceito é a que vem sendo sustentada pela doutrina portuguesa que se tem pronunciado expressamente sobre a questão.
Ora, quanto a este ponto, importa sublinhar que não cumpre ao Tribunal Constitucional, como é sabido, decidir qual é a melhor interpretação do artigo
28º do Código Penal. A este Tribunal cumpre apenas decidir se a norma que se extrai desse preceito, na interpretação por que efectivamente optou a decisão recorrida, está ou não de acordo com a Constituição, nomeadamente com as normas e princípios invocados pela recorrente e pelo Ministério Público, embora não necessariamente só com estes, conforme resulta do artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional.
É, pois, o que faremos de seguida.
11.1. Da alegada violação dos princípios da legalidade e da tipicidade consagrados no artigo 29°, n.º 1, da Constituição da República.
Considera a recorrente que o disposto no artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, se interpretado em termos de conduzir à sujeição ao foro militar do comparticipante que não possui a qualidade típica exigida pelos crimes de que é acusado e previstos no Código de Justiça Militar, é inconstitucional, por violação do princípio da tipicidade e da legalidade consagrado no artigo 29º, n.º 1 da Constituição.
A fundamentar esta conclusão alega, designadamente, que à data da prática dos factos que lhe são imputados - como ainda hoje - não lhe eram aplicáveis as disposições do Código de Justiça Militar, “mas sim as correspondentes do Código Penal, nos termos das quais pode, eventualmente, (...) ser julgada nos tribunais comuns. De outro modo, o que verdadeiramente sucederia seria a criação, sem credencial da Assembleia da República, e contra os direitos e expectativas dos cidadãos, de novos e inusitados tipos; a saber: falsidade e infidelidade militar praticados por civis que não possuem vínculo algum às forças armadas”.
Em relação a esta questão o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado que as hipóteses, como a dos autos, em que se questionam certas interpretações normativas por violação do princípio da legalidade penal, não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento, o que coloca a questão fora dos poderes de cognição deste Tribunal. Efectivamente, como se ponderou no acórdão n.º 674/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º Volume, págs. 559 e ss.), bem como em jurisprudência entretanto já por várias vezes reiterada:
“[...] o recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional [...]. O que vem questionado pelo recorrente [...] é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, viola necessariamente o princípio da legalidade penal. [...] Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não
é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido. Ora, tal questão - por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição. De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
«operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão n.º 634/94, bem como o já mencionado Acórdão n.º 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu «sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica. Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa [...]”.
Esta jurisprudência - que, por manter inteira validade e ser aplicável ao caso, agora se reitera - conduz efectivamente a que não possa conhecer-se, com este fundamento, do objecto do recurso, por não estar ali colocada uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa de que o Tribunal deva conhecer.
11.2. Da alegada violação do princípio da pessoalidade da responsabilidade penal, consagrado no artigo 30°, n.º 3, da Constituição da República.
Alega ainda a recorrente que o artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação que vem questionada, viola o princípio da pessoalidade da responsabilidade penal, consagrado no artigo 30°, n.º 3, da Constituição.
Porém, manifestamente, sem razão.
O princípio da pessoalidade das penas implica, nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra
1994, pp.197-198), “(a) extinção da pena e do procedimento criminal com a morte do agente; (b) proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros; (c) impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas”.
Proíbe-se, em suma, que a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento.
Isto dito, evidente se torna que o artigo 28º do Código Penal, na interpretação que vem questionada, em nada colide com aquele princípio constitucional, não implicando a possibilidade de julgamento da ora recorrente em tribunal militar qualquer “transmissão da pena” ou “subrogação no cumprimento da pena”, no sentido proibido pelo artigo 30º, n.º 3, da Constituição. Com efeito, o que manifestamente está em causa é a possibilidade de os tribunais militares julgarem (e, eventualmente, condenarem) a ora recorrente por um “facto próprio”
- ou, dito de outra forma, pela sua própria contribuição para o facto (global) praticado -, e não por um “facto de outro”, pelo que carece ostensivamente de sentido a invocação, neste contexto, do disposto no artigo 30º, n.º 3 da Constituição.
Improcede pois, nesta parte, o objecto do recurso.
11.3. Da alegada violação do princípio do juiz natural, consagrado no artigo
32°, n.º 9, da Constituição da República.
O princípio constitucional do juiz natural, consagrado do artigo 32º, n.º 9 da Constituição, tem, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1994, p.207) as seguintes dimensões:
“a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juizes) chamados a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; b) princípio da fixação da competência, o que obriga à fixação de competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa; c) observância das determinações dos procedimentos referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora a distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial)”.
Ora, a norma do artigo 28º, n.º 1 do Código Penal, quando interpretada em termos de possibilitar a sujeição ao foro militar do comparticipante que não possui a qualidade típica exigida pelos crimes previstos no Código de Justiça Militar, de que é acusado, não viola qualquer das referidas vertentes deste princípio.
Efectivamente, verifica-se que a recorrente incorre, nesta parte, numa clara petição de princípio, pois a sua argumentação presume demonstrado aquilo que, precisamente, seria necessário demonstrar. Com efeito, pressupõe que da lei - concretamente do artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, aqui aplicável por força do art. 4º do Código de Justiça Militar - não resulta a competência do foro militar para julgar o comparticipante que não possua a qualidade típica exigida pelos tipos legais previstos naquele diploma. Ora, em causa estão duas interpretações possíveis do sentido e alcance do artigo 28º, n.º1, do Código Penal. Segundo uma delas - a defendida pela recorrente - deste preceito não resulta a competência dos tribunais militares para julgar os comparticipantes num crime previsto no Código de Justiça Militar, quando não possuam a qualidade típica exigida pelos respectivos tipos legais. Mas, ao adoptar-se, em detrimento desta, outra visão interpretativa do sentido e alcance do artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, não se está retirar competência a um tribunal que seria, antecipadamente, competente para julgar determinado facto; o que se está é, rigorosamente, a afirmar que este é, por força do referido preceito legal - que é lei prévia e geral -, o tribunal competente para efectuar o julgamento em questão.
Em suma: constitui evidente petição de princípio o partir de uma das interpretações possíveis do preceito para, face a uma interpretação diversa, afirmar que se está a alterar a competência dos Tribunais e, consequentemente, a violar o princípio do juiz natural, subjacente ao artigo 32º n.º 9 da Constituição.
Improcede, por isso, a alegação de que a interpretação normativa do art. 28º, n.º 1, do Código Penal ofende o princípio constitucional do juiz natural.
11.4. Da alegada violação do disposto no artigo 215º da Constituição da República (na versão da Lei Constitucional 1/89).
Finalmente, há confrontar a norma ora em apreciação com o disposto no artigo
215º, n.º 1, da Constituição (na versão da Lei Constitucional 1/89), preceito que atribui aos tribunais militares competência para o “julgamento de crimes essencialmente militares”.
Cabe, então, perguntar se a norma contida no artigo 28º, n.º 1, do Código Penal,
é inconstitucional, por violação do artigo 215º, n.º 1, da Constituição
(redacção de 89), quando interpretada em termos de conduzir um comparticipante, que não possua a qualidade típica exigida pelos crimes previstos no Código de Justiça Militar de que a ora recorrente é acusada, à sujeição ao foro militar.
Importa começar por referir que a Constituição de 1976, logo na sua versão inicial, alterou substancialmente a natureza tradicional dos tribunais militares, que deixaram de ser foro pessoal dos militares - como acontecia à data da Constituição - para passarem a ser foro especializado para certas categorias de crimes, independentemente da qualidade do agente que os pratica. Como se escrevia já no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 181/81, de 11 de Junho de 1981 (publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 310, pgs. 141 a 158), “o Código de Justiça Militar [...], interpretando correctamente a directiva constitucional, veio repudiar o critério de submeter à jurisdição castrense todos os militares só pelo facto de o serem e fosse qual fosse a natureza do crime cometido. Assim, o foro militar que, até aí era pessoal, passou a ser um foro material.” E, retomando o que se escrevera no Preâmbulo do Código de Justiça Militar de 1977, continua: “O cidadão, civil ou militar só estará a ele sujeito enquanto violador de interesses especificamente militares. Caso negativo, sobrepõe-se-lhe o foro comum, por força da natural supremacia deste. Daqui que os militares já não respondam por delitos comuns perante o seu antigo foro especial mas perante os tribunais ordinários, como qualquer outro cidadão. Daqui também que o cidadão não militar, ao violar os interesses superiores das forças armadas consagrados na Constituição, fique sujeito à jurisdição destas. Ao foro militar é indiferente a actividade do agente do crime, é a natureza deste que passa a contar, conforme expressamente refere a Constituição no seu artigo 218º ” [redacção original].
Esta constatação tem sido, por inúmeras vezes, reafirmada por este Tribunal
(cfr., designadamente, os Acórdãos n.ºs 47/99 e 48/99, publicados no Diário da República, II Série, de 26 e 29 de Março de 1999, respectivamente). Como se escreveu neste último, “de acordo com o texto constitucional, a jurisdição dos tribunais militares determina-se pela natureza do crime, que se há-de reconduzir ao seu carácter essencialmente militar.”. Ou seja, decisivo para aferir da constitucionalidade de certa incriminação como “crime essencialmente militar” e, logo, da legitimidade dos tribunais militares para o seu julgamento, é a natureza (essencialmente militar) do crime que é descrito pelo tipo penal em causa e não a qualidade (de militar) do agente a quem o facto é imputado.
Já quanto ao significado da expressão “crimes essencialmente militares”, o artigo 215º, n.º 1, da CRP (revisão de 89), porém, nada diz, remetendo assim para a lei ordinária a tarefa de concretização do seu conteúdo. No entanto, como se afirmou no já citado acórdão n.º 47/99 “a liberdade de conformação que é assim deixada ao legislador ordinário não faz com que o juízo de constitucionalidade se baste com a qualificação de crime essencialmente militar que a lei infra-constitucional dê a determinados factos; e nem sequer o próprio conceito legal de “crime essencialmente militar” fica subtraído a esse juízo
[...]”, não podendo o legislador, conforme se afirma no Acórdão n.º 347/86,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8° vol., pp. 585 e segs.) definir, como crimes essencialmente militares, “crimes comuns cujo único elemento de conexão com a instituição militar seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório (como, por exemplo, o lugar da sua prática).”
Ora, este Tribunal já se pronunciou, por diversas vezes, sobre a conformidade com a Constituição da qualificação de determinados crimes como “essencialmente militares”. Na perspectiva do Tribunal Constitucional, afirmada em vários acórdãos (cfr., designadamente, os Acórdãos n.ºs 347/86, 449/89, 680/94, 967/96,
47/99, 48/99, 49/99) é consensual, conforme se refere no Acórdão n.º 271/97
(tirado em fiscalização abstracta sucessiva e publicado no Diário da República, I Série-A, de 15 de Fevereiro de 1997) e, mais recentemente, nos Acórdãos n.ºs
194/02 e 172/03 (disponíveis na página deste Tribunal na Internet, no endereço:
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), “[...] a ideia de que o punctum saliens dos crimes essencialmente militares se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares”. Como se ponderou no acórdão n.º 48/99 (já citado) “[...] a Constituição exige que o legislador se mantenha no âmbito estritamente castrense, só podendo submeter à jurisdição militar aquelas infracções que afectem inequivocamente interesses de carácter militar e que por isso mesmo hão-de ter com a instituição castrense uma qualquer conexão relevante, quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional. Não poderão assim entrar na definição de crimes essencialmente militares os crimes comuns em que a única ligação com a instituição castrense seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório, o que parece postular a existência de uma conexão estrutural entre o fundamento da punibilidade da conduta e os interesses da instituição militar ou da defesa nacional”.
Foi, assim, com base neste critério que, neste último acórdão, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 201º, n.º 1, alínea e), do Código de Justiça Militar, enquanto qualifica como essencialmente militar o crime de furto de objectos pertencentes a militares, quando praticados por outro militar (jurisprudência entretanto reiterada nos Acórdãos n.ºs 49/99 e
432/99, publicados no Diário da República, II Série, de 29 de Março e de 3 de Dezembro de 1999, respectivamente). E fora igualmente com base nesse critério que, na mesma data, no Acórdão n.º 47/99 (já citado) - a que voltaremos mais tarde por ser de especial importância para os presentes autos - o Tribunal Constitucional procedera à apreciação da norma do artigo 201º, n.º 1, alínea d), do Código de Justiça Militar, mas agora enquanto qualifica a subtracção, praticada por militar, de objectos pertencentes à administração militar, como crime essencialmente militar, concluindo pela não inconstitucionalidade de tal qualificação. Tal como fora também com base nesse mesmo critério que o Tribunal Constitucional decidira, no mencionado Acórdão n.º 271/97, declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 207º, n.º
1, alínea b), com referência ao artigo 1º do Código de Justiça Militar, enquanto nele se qualifica como crime essencialmente militar o crime negligente de ofensas corporais cometido por militar em acto de serviço, causado por desrespeito de norma de direito estradal.
Finalmente, nos mais recentes Acórdãos n.ºs 194/02 e 172/03, atrás citados, considerou este Tribunal que não era inconstitucional a qualificação como crime essencialmente militar do crime de peculato, previsto no artigo 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, quando praticado por militares e tendo por objecto dinheiro das Forças Armadas. Para sustentar esta conclusão, ponderou o Tribunal Constitucional, em síntese, que “as considerações constantes do Acórdão n.º
47/99 poderiam ser invocadas no presente processo” em que também “se identifica uma área onde os interesses fundamentais da instituição militar são directamente atingidos”, por se tratar “de um militar que desvia ilegitimamente bens pertencentes às forças armadas, aos quais ele tem acesso por força das suas funções de militar”. Por tudo isso, concluiu o Tribunal Constitucional que
“existe[...] uma conexão estrutural, essencial com a instituição militar, que faz com que o crime praticado atinja também valores fundamentais inerentes à existência e funcionamento dessa instituição”.
Em suma: da anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional resulta, em síntese, que a legitimidade constitucional da qualificação de uma incriminação como essencialmente militar pressupõe a identificação de elementos de uma indissolúvel conexão estrutural entre essa incriminação e os valores da instituição militar, “quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional”, conforme se escreveu no acórdão n.º 48/99.
Isto dito, verificado que a decisão recorrida considerou aplicável o disposto no artigo 28º, n.º 1, do Código Penal para sujeitar a foro militar de pessoa que, embora sem a qualidade típica por eles exigida, foi indiciada pela prática dos crimes previstos nos artigos 186º, n.º 1, alínea a), 193º, n.º 1, alínea a) e
195º, n.ºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar, os quais, em abstracto, qualificou como essencialmente militares, por protegerem bens jurídicos militares, é altura de, escudados naquela jurisprudência, na parte relevante e que mantenha validade, enfrentar a questão que se nos coloca e que, como se viu,
é a de saber se a norma contida no artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, é inconstitucional, por violação do artigo 215º, n.º 1, da Constituição (redacção de 89), quando interpretada em termos de conduzir um comparticipante, que não possua a qualidade típica exigida pelos crimes previstos nos artigos 186º, n.º
1, alínea a), 193º, n.º 1, alínea a) e 195º, n.ºs 1 e 2, do Código de Justiça Militar, à sujeição ao foro militar ?
Decisivo para julgar esta questão será averiguar quais os bens jurídicos tutelados por aqueles tipos legais de crime e, fundamentalmente, verificar se existe a indissolúvel conexão estrutural entre a conduta punível e algum dever militar ou os interesses fundamentais da defesa nacional. Para tal, porém, importa apurar, não estando em causa interesses fundamentais da defesa nacional, se a qualidade típica exigida pelos mesmos - pessoa “integrada ou ao serviço das Forças Armadas”, no caso dos artigos 186º, n.º 1, alínea a) e 193º, n.º 1, alínea a) ou “militar”, no caso do artigo 195º, n.ºs 1 e 2 - constitui ou não um elemento de conexão essencial para que seja possível afirmar que, pelo comportamento aí descrito, resulta afectado um específico bem jurídico militar. Ou, mais simplesmente, decisivo será saber se a qualidade de pessoa “integrada ou ao serviço das Forças Armadas” ou de “militar”, embora, por si só, não possa ser suficiente para a definição de um crime como essencialmente militar, constitui ou não, nos tipos de crime em causa, um elemento essencial de uma indissolúvel conexão estrutural com a instituição militar, que faz com que o crime praticado atinja também valores fundamentais inerentes à existência e funcionamento dessa instituição e possa, por conseguinte, ser considerado crime essencialmente militar.
11.4.1. Quanto ao crime previsto no artigo 186º, n.º 1, al. a), o Tribunal Constitucional decidiu já, nos Acórdãos n.ºs 347/86 (já citado) e 329/97
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36° vol., pgs. 861 e sgs), não julgar inconstitucionais estes preceitos, em hipóteses em que os factos aí descritos haviam sido praticados por quem detinha a qualidade típica exigida. E, para esse juízo de não inconstitucionalidade, no primeiro caso, em que estava em causa falsificação com objectivo de conduzir à subtracção ao cumprimento do serviço militar, o Tribunal considerou haver violação de valores de carácter essencialmente militar, nomeadamente do dever militar, a segurança e a disciplina militar. No segundo caso, foi considerado relevante o facto de o crime poder ser praticado “no exercício (ou a coberto) dos cargos ou funções desempenhadas pelo agente”.
Ora, o dever militar, a segurança e a disciplina militar foram identificados, na perspectiva do Tribunal Constitucional expressa naquele aresto, como valores
(bens jurídicos) de carácter essencialmente militar que permitiram afirmar a conexão estrutural do facto que aí se descreve com a instituição militar e que, nessa medida, justificou a sua qualificação como “crime essencialmente militar”. Na declaração de voto do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, salientou-se, porém, que, tais valores não seriam, porventura suficientes, para justificar tal qualificação, a qual, no caso concreto, resultaria do facto de estar em causa falsidade com objectivo de conduzir à subtracção ao cumprimento do serviço militar, o que acarretaria a existência de “um interesse social autónomo que pode justificar tratamento próprio, em sede de tipificação criminal, para as condutas que o agredirem, não repugnando que estas, considerando a natureza desse interesse, possam constituir crime essencialmente militar, dado que se verificava, no caso, “ uma conexão indissolúvel entre a ilicitude da conduta e a preservação de valores e interesses fundamentais correlacionados com a defesa nacional e merecedores, até, de tratamento específico na Constituição da República”. Do mesmo modo, o exercício de cargos ou funções militares ou ao serviço das forças armadas implica a existência do dever militar.
Mas, dito isto, ressalta que, na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, para que aquele tipo legal de crime possa ser considerado essencialmente militar, é necessário que exista um nexo entre a conduta punível e a violação de algum dever militar, o que tem sido entendido que acontece se a falsificação puser em causa “interesses fundamentais correlacionados com a defesa nacional” ou, ao menos, se for praticada por “pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas”.
Na medida em que assim não aconteça, estará excluída a possibilidade de qualificação de uma tal conduta como “crime essencialmente militar”.
11.4.2. Também quanto ao crime de peculato, previsto no artigo e 193º, n.º 1, al. a), 193º, n.º 1, do Código de Justiça Militar, este Tribunal considerou, nos mais recentes Acórdãos n.ºs 194/02 e 172/03, já citados, que não era inconstitucional a sua qualificação como crime essencialmente militar, quando praticado por militares e tendo por objecto dinheiro das Forças Armadas. E, neste caso, para esse juízo de não inconstitucionalidade foi decisiva a qualidade de “pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas” dos então autores dos factos.
Que é assim resulta, desde logo, do facto de naquelas decisões se afirmar que valem para o crime de peculato militar “as considerações constantes do Acórdão n.º 47/99”, feitas a propósito do crime de furto de bens militares. É que, recorde-se, naquele Acórdão n.º 47/99 afirmou-se expressamente, com especial interesse para os presentes autos, “[...] que o bem jurídico tutelado não é (ou não é apenas) o património militar demonstra-o o facto de a norma [...] incriminar unicamente agentes integrados ou ao serviço das forças armadas; é que a tutela daquele bem, se bastasse para justificar a qualificação do crime como essencialmente militar, imporia, de igual modo, a punição de terceiros”. E, mais
à frente, que “o facto de o agente do crime ser militar funciona aqui com uma carga valorativa própria que permite considerá-lo como elemento essencial de conexão com a instituição militar [...]”.
Ou seja, a qualidade “de pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas” constitui, no crime de peculato militar, um elemento de conexão essencial, e não meramente acidental ou acessório, para que se possa afirmar que, pelo comportamento aí descrito, resultam igualmente afectados específicos bens jurídicos militares que permitem afirmar uma indissolúvel conexão estrutural do facto com a instituição militar.
11.4.3. As considerações acabadas de fazer valem inteiramente para o crime previsto no artigo 195º do Código de Justiça Militar. Também aqui, e pelas mesmas razões, a qualidade de “militar” do autor é essencial à afirmação de uma, já por diversas vezes referida, indissolúvel conexão estrutural do facto com a instituição militar.
E nem se diga, como refere o Promotor de Justiça no Supremo Tribunal Militar, que é suficiente para a qualificação dos factos como “crime essencialmente militar” a circunstância de “os actos delituosos de que a recorrente vem indiciada, como comparticipante, terem sido praticados no interior de uma instituição militar (...) em razão da sua relação com o arguido (...) aproveitando-se da condição de esposa do arguido (...) e do acesso que essa condição permitia ter a todas as instalações do complexo militar”.
É que, como também se ponderou naquele acórdão n.º 47/99, embora o bem jurídico tutelado pelo preceito em causa seja “susceptível de lesão com a violação de deveres gerais (não especificamente militares) por quem serve nas forças armadas; o alargamento do conceito de “crimes essencialmente militares”, inevitável por essa via, seria constitucionalmente repelido, razão por que a mera violação de um dever geral, ainda que remotamente atinja bens jurídicos específicos da instituição militar, não pode constituir critério decisivo para justificar, na matéria, um juízo de constitucionalidade”. (Sublinhado nosso). É que, a não ser assim, bastaria a simples qualidade de militar ou o mero facto de a conduta ter sido praticada num espaço afecto à instituição militar para permitir que a lei qualificasse qualquer crime comum como crime essencialmente militar.
Em suma: como decorre da jurisprudência citada e agora se reafirma por manter inteira validade, na ausência de um nexo com interesses fundamentais da defesa nacional, o facto de o agente do crime ser pessoa integrada ou ao serviço das Forças Armadas ou militar funciona, nos crimes que agora estão concretamente em causa, com uma carga valorativa própria que permite considerá-lo como elemento essencial para a existência de uma indissolúvel conexão com a instituição militar, e, consequentemente, para que exista uma violação de bens jurídicos específicos da instituição militar, justificativa da qualificação como crimes essencialmente militares.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se:
i) julgar inconstitucional, por violação do artigo 215º, n.º 1, da Constituição
(redacção de 89), o artigo 28º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretado em termos de conduzir à sujeição ao foro militar de um comparticipante que não possua a qualidade típica exigida pelos artigos 186º, n.º 1, alínea a), 193º, n.º 1, alínea a), e 195º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Justiça Militar, quando os factos em causa não afectem interesses fundamentais da defesa nacional.
ii) conceder provimento ao recurso e, em consequência, ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 7 de Julho de 2003 Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Luís Nunes de Almeida