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Processo n.º 87/13
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
Relatório
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da LTC, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo (CPA), interpretada no sentido de que «existindo distribuição domiciliária na localidade de residência do notificado, é suficiente o envio de carta, por via postal simples, para notificação da decisão de cancelamento do apoio judiciário, proferida com fundamento no artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho», por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 3, da Constituição.
Invoca o Requerente que a referida dimensão normativa foi já julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.ºs 439/2012, 467/2012 e 545/2012.
Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, aplicáveis por força do artigo 82.º, todos da LTC, o Primeiro-Ministro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
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Fundamentação
Não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento dos requisitos previstos nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição, e 82.º da LTC, tendo o Tribunal Constitucional julgado inconstitucional nas três decisões identificadas pelo requerente – Acórdãos n.º 439/12, 467/12 e 545/12 - a interpretação normativa extraída do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo, no sentido de que, existindo distribuição domiciliária na localidade de residência do notificado, é suficiente o envio de carta, por via postal simples, para notificação da decisão de cancelamento do apoio judiciário, proferida com fundamento no disposto no artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho.
No essencial, é a seguinte a fundamentação do Acórdão n.º 439/2012, para a qual remetem os Acórdãos n.ºs 467/2012 e 545/2012:
“…o Tribunal Constitucional tem mantido uma linha de orientação no sentido de que não são inconstitucionais as normas que prevejam a possibilidade de citação ou notificação de atos processuais por via postal simples e que presumam o seu conhecimento pelo destinatário, desde que tais presunções sejam rodeadas das cautelas necessárias a garantir a possibilidade de conhecimento efetivo do ato por um destinatário normalmente diligente, ou seja, desde que o sistema ofereça suficientes garantias de assegurar que o ato de comunicação foi colocado na área de cognoscibilidade do seu destinatário, em termos de ele poder eficazmente exercer os seus direitos de defesa.
Poderá dizer-se, a exemplo do que acontece no regime da notificação dos atos processuais no âmbito do processo civil, que também em matéria de notificação dos atos administrativos a regulamentação jurídica da notificação dos atos processuais mediante via postal procura articular flexibilidade e simplificação com a garantia da efetiva comunicação.
Deste modo, e no que para o caso releva, importa apreciar, desde logo, se as formalidades da notificação postal prevista no artigo 70.º, n.º a, al. a) do Código de Procedimento Administrativo, na interpretação aplicada pela decisão recorrida, são suficientes para assegurar o efetivo conhecimento do ato administrativo em causa, segundo um critério de normal diligência do seu destinatário, por forma a que não seja colocada em causa a garantia constitucional de impugnação dos atos administrativos, ou se, pelo contrário, tal interpretação normativa afeta a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial do respetivo destinatário, em violação das exigências decorrentes do n.º 3, do artigo 268.º, ou do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
Por outro lado, cumpre ainda analisar se as referidas formalidades oferecem garantias mínimas e razoáveis de segurança e de fiabilidade, de modo a que não se crie para o notificado um circunstancialismo tal que torne praticamente impossível ilidir uma presunção do efetivo recebimento da notificação, ou em que impenda sobre este um ónus excessivo de provar um facto negativo, isto é, de demonstrar que certa carta não foi recebida nem depositada, em determinado momento, no seu recetáculo postal.
Ora, no caso dos autos, mesmo que se admita que a carta para notificação foi enviada para o domicílio indicado pelo requerente do apoio judiciário e constante do respetivo processo administrativo de concessão de proteção jurídica, o certo é que, tendo sido já sido decidida a concessão do apoio judiciário, o requerente não poderá razoavelmente contar com a possibilidade de uma eventual nova notificação relativa a um hipotético cancelamento do apoio judiciário concedido. Não pode, por isso, desde logo, ser afastado quer o risco de ausência ocasional, quer o risco de extravio da carta, de cujo envio não existe registo, o que torna extremamente difícil para o destinatário afastar uma eventual presunção de oportuna receção da carta, demonstrando que esta, sem culpa da sua parte, não foi recebida no seu domicílio.
Assim, não se poderá dizer que através desta forma de notificação se mostre suficientemente acautelado o conhecimento, por parte do requerente do apoio judiciário já concedido, do ato de notificação da decisão no sentido de o mesmo lhe ter sido cancelado.
Acresce que a tramitação associada a esta forma de notificação, nos termos em que foi efetuada nos atos – mero envio, segundo informação prestada pela entidade administrativa em causa, de carta por via postal simples – não oferece suficientes garantias de fiabilidade e segurança.
Com efeito, não está, no caso, associada ao envio da notificação por via postal simples qualquer cautela ou formalidade adicional. Designadamente, não é exigível que o funcionário administrativo que procedeu ao envio da carta lavre qualquer informação no processo administrativo, com indicação da data da expedição da carta e do domicílio para onde foi enviada, não se exige que o distribuidor postal certifique, mediante qualquer documento ou declaração escrita por si assinada, o dia em que tenha procedido ao depósito da carta e a morada em que o fez, nem se exige qualquer outra formalidade que permita saber, com um mínimo de segurança, designadamente, se a carta foi efetivamente enviada e para que morada, qual a data da sua expedição, se a carta foi efetivamente entregue ou depositada no recetáculo postal do seu destinatário e em que data tal se verificou. Acresce que também não é exigível, ao contrário do que acontece noutras situações em que a lei admite a possibilidade de citação e/ou notificação por via postal simples, que tenha havido uma anterior tentativa frustrada efetuada por via postal registada, nem que se efetue qualquer procedimento no sentido de se apurar se a morada para a qual se envia a carta corresponde efetivamente à morada do destinatário.
Pelo exposto, estando-se perante uma situação em que se pressupõe o efetivo conhecimento de um ato administrativo, quando o envio de carta simples para notificação deste não representa um índice seguro da sua receção e dificilmente pode ser ilidido, forçoso é concluir que interpretação normativa sindicada afeta a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz do respetivo destinatário, em violação das exigências decorrentes do n.º 3 do artigo 268.º da Constituição e do princípio constitucional da “proibição da indefesa”, ínsito no artigo 20.º também da Constituição.”
Concordando-se com estas considerações e a sua conclusão, deve proceder-se à generalização do juízo de inconstitucionalidade peticionada pelo Requerente.
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Decisão
Pelo exposto, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo, interpretada no sentido de que existindo distribuição domiciliária na localidade de residência do notificado, é suficiente o envio de carta, por via postal simples, para notificação da decisão de cancelamento do apoio judiciário, proferida com fundamento no artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho.
Lisboa, 1 de outubro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – Lino Rodrigues Ribeiro – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Joaquim de Sousa Ribeiro.