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Proc. n.º 140/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, em que figuram como recorrentes A. e B. e como recorrido o Ministério Público, foi proferida decisão instrutória que pronunciou os arguidos e ora recorrentes por um crime de “abuso de informação”, previsto e punido pelo artigo 378º, n.ºs 1 e
4 do Código dos Valores Mobiliários. É o seguinte, na parte ora relevante, o teor daquela decisão:
“[...] Cumpre apreciar, na presente instrução, se da prova carreada para os autos resultam indícios suficientes dos factos constantes da acusação e, em caso afirmativo, se esses factos integram o crime de abuso de informação p.p. pelo art.º 378 n.º l e 4 do C.V.M. por que os arguidos vêm acusados. Segundo o libelo acusatório os arguidos, á data dos factos, eram membros do Conselho de Administração das sociedades C., D. e da E.. No dia 18/10/2000 teriam adquirido acções de um fundo de investimento denominado
“F.”, gerido por G., ao preço de 16 Euros, por acção, quando já sabiam desde o dia anterior que a C. era obrigada a lançar uma OPA sobre todas as acções H. pelo preço de 17 Euros, por acção. Com efeito, devido a um outro negócio de aquisição de acções (540.000 acções da D. ao preço de 17 Euros por acção) celebrado no dia 17.10.2000 entre os arguidos, em representação da C., e os representantes da I., a C. passava a deter uma percentagem do capital social da D. que tornava obrigatório o lançamento de uma OPA pelo preço da aquisição do lote, ou seja por 17 Euros. Por seu turno, os arguidos no seu requerimento de abertura de instrução alegam, em síntese que: Não tinham autorização do Conselho de Administração para a aquisição de acções, o lançamento de uma OPA sobre a D. e a assunção das obrigações decorrentes do contrato de mútuo que celebraram com a I. e a J.; Não havia qualquer ligação entre si enquanto administradores da C.; Que o negócio de aquisições das acções ao L. só ficou concluído em 20.10.2000, após o negócio celebrado em 18.10.2000 com o Fundo de Investimento gerido pelo G.. Concluem, assim, que em 18.10.2000, ainda não sabiam se iriam ou não realizar uma OPA, nem a que preço. Os arguidos vêm ainda alegar que os factos descritos na acusação não integram o tipo de crime que lhes é imputado. Alegam que para que se verifique o crime de abuso de informação é necessário exista um nexo de causalidade entre a informação e a ordem de compra ou seja que a compra tenha sido determinada pela informação. Que apenas compraram as acções ao Fundo de Investimento gerido por G. ao preço de 16 Euros cada porque lhes foi proposta tal compra e não por saberem que ia existir uma OPA a preço superior. Mais alegam que está excluída do art.º 378 n.º 1 do C.V.M. a conduta de pessoa que disponha de informação própria e a utiliza em seu benefício para negociar em valores mobiliários. Concluem assim que a sua descrita conduta não preenche o tipo de crime p.p. pelo art.º 378 n.º l do C. Penal pelo que, em seu entender, deverá ser proferido despacho de não pronúncia. MATERIA DE FACTO INDICIADA NOS AUTOS E SEU ENQUADRAMENTO JURIDICO PENAL Da valoração conjunta da prova documental e testemunhal recolhida na fase de inquérito resultam, em nosso entender indícios suficientes dos factos constantes da acusação. Senão vejamos: Alegam os arguidos que não tinham qualquer ligação especial enquanto administradores da C.. Inquirida a fls. 63 a 65, a testemunha M., membro do Conselho de Administração da C., e cujo depoimento nos parece isento e merecedor de inteira credibilidade afirmou que os arguidos A. e B. decidiam em conjunto todos os assuntos importante da C. e que não tomavam decisões importantes sem estarem de acordo. Quanto à data do conclusão do negócio da aquisição das acções da D. celebrado pelos arguidos, enquanto administradores da C. e os representantes da I. a prova produzida aponta no sentido de que pese embora o negócio não estivesse ainda formalmente aprovado em 17.10.2000, os arguidos nessa data já tinham a garantia que tal negócio se encontrava firme e era irreversível carecendo apenas de algumas formalidades. Os autos indiciam assim suficientemente que os arguidos só adquiriam as acções do fundo de investimento gerido por G. (F.) ao preço de 16 Euros por acção porque tinham prévio conhecimento que se iria realizar uma OPA das acções da D. ao preço de 17 Euros por acção. Entendemos assim que a prova produzida na fase de inquérito é suficiente, em termos indiciários , para sustentar a acusação. Por outro lado, a prova produzida na fase de instrução, em nosso entender, nada de relevante acrescentou no sentido de infirmar os factos descritos na acusação, designadamente os supra referidos. DIREITO Cumpre agora apreciar se os factos por que os arguidos vêm acusados integram o crime de abuso de informação p.p. pelo art.º 379 do Código dos Valores Mobiliários (C.V.M.) . Dispõe o n.º 1 do citado artigo que “Quem disponha de informação privilegiada devida à sua qualidade de titular de um órgão de administração ou de fiscalização de um emitente ou de titular de uma participação no respectivo capital e a transmita a alguém fora do âmbito normal das suas funções, ou com base nessa informação, negoceie ou aconselhe alguém a negociar em valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros ou ordene a sua subscrição, aquisição, venda ou troca, directa ou indirectamente, para si ou para outrem, é punido. . . Flui do citado normativo que para que se verifique o crime de abuso de informação é necessário que o agente disponha de informação privilegiada devido
à qualidade de órgão de administração ou fiscalização e com base nessa informação negoceie ou aconselhe outrem a negociar valores mobiliários para si ou para outrem. Ora resultando suficientemente indiciado nos autos que os arguidos devido à sua qualidade de membros da administração da C., D. a e E., adquiriam acções H. ao Fundo de Investimento (F.) gerido por G. pelo preço de 16 Euros cada, porque já sabiam que tinham que efectuar uma OPA sobre as acções H. ao preço de 17 Euros por acção; Que os arguidos sabiam que o negócio de aquisição de acções celebrado com os representantes da I.. era secreto.; temos que concluir, sem necessidade de mais considerações, que a sua descrita conduta integra os elementos típicos do crime de abuso de informação p.p. pelo art.º 378 do C.V.M. Assim sendo cumpre pronunciar os arguidos pelos factos da acusação, os quais integram o crime de abuso de informação por que vêm acusados. DECISÃO Pelo exposto, para serem julgados em processo comum para com intervenção do tribunal singular, PRONUNCIO: A. B. pelos factos constantes da acusação de fls. 78 a 95, que aqui dou por integralmente reproduzida e que integram a prática pelos arguidos de um crime de abuso de informação p.p. pelo art.º 378 n.º l e 4 do Código dos Valores Mobiliários. [...]”
2. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º, da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 378º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários, quando interpretado “no sentido de incluir no tipo de crime previsto na norma em causa a negociação de valores mobiliários pela própria sociedade de cujo órgão de administração seja titular o possuidor de informação obtida por causa de tal título”, por alegada violação dos artigos 61º, n.º 2,
13º, 18º, n.º 3, e 29º, n.ºs 1 e 3, todos da Constituição
3. Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído da seguinte forma:
“a) A decisão recorrida procedeu, por via interpretativa do art. 378° do CVM, à criação de uma norma nova que extravasa, manifestamente, o normal e legítimo exercício de interpretação e aplicação da lei. Estamos, por isso, perante uma norma nova, criada por via interpretativa, com violação do princípio da legalidade, consagrado no artigo 29º N.º 1 e 3 da Constituição. b) A interpretacão normativa a que procedeu o M.P. e o Tribunal de Instrução Criminal, expressa na decisão recorrida, conduziu, como se demonstra exaustivamente nos pareceres dos Professores Figueiredo Dias/Costa Andrade e Faria Costa, juntos aos autos, à criminalização de situações que manifestamente não estão incluídas no artigo 378° do C.V.M.: a criminalização da conduta de administradores que negoceiem em valores mobiliários em nome e para a sociedade de que são agentes, com base em informação dessa própria sociedade; c) A norma criada pelo intérprete (M.P. e juiz de instrução), expressa na decisão recorrida, viola outros princípios constitucionais: o princípio expresso nos artigos .61º N° 2 e 18° N° 3 da CRP, como o demonstra o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa no seu parecer junto aos autos, e ainda o princípio da igualdade expresso no art.º 13° da CRP; o princípio da proporcionalidade ou princípio da proibição do excesso (artigo
18º N° 3, in fine, da CRP), como sustenta o Prof. Gomes Canotilho. d) Deverá, assim, ser revogada a decisão recorrida, julgando-se inconstitucional a norma do art.º 378° do Código de Valores Mobiliários, na interpretação normativa que lhe foi dada na mesma decisão, por violação dos princípios e preceitos constitucionais atrás referidos”.
4. Contra-alegou o Ministério Público, tendo dito, a concluir:
“1 - Ao Tribunal Constitucional apenas compete sindicar - na óptica dos princípios da legalidade e da tipicidade - da constitucionalidade de um critério interpretativo genérico, expressamente acolhido e configurado na decisão recorrida como inovatório, extensivo ou juridicamente criativo, de modo a que a respectiva valoração, sob o prisma do artigo 29°, n.ºs 1 e 3, da Constituição, não implique que o Tribunal Constitucional, como operação preliminar, tenha que começar por fixar o sentido exacto ou preciso do tipo, antes de avaliar a subsunção realizada pelo tribunal 'a quo', para qualificar o processo interpretativo nela ínsito como meramente 'interpretativo' ou 'criativo' de direito.
2 - Na verdade, a admitir-se que ao Tribunal Constitucional fosse lícito avaliar, de forma sistemática, da constitucionalidade do concreto 'processo interpretativo' ínsito na subsunção efectuada pelas instâncias - e não expresso ou objectivado através da proclamação pela decisão recorrida de um critério interpretativo de índole geral - resultaria afectada, em termos inadmissíveis, a repartição de competências entre o Tribunal Constitucional e as demais ordens jurisdicionais, passando a competir àquele a 'última palavra' sobre a interpretação 'correcta' do direito infraconstitucional, em todas as áreas abrangidas pelo princípio da legalidade - 'expropriando', consequentemente, as demais ordens jurisdicionais do núcleo essencial da sua competência para proceder à interpretação do direito ordinário.
3 - No caso dos autos, não aflora minimamente, na decisão instrutória impugnada, que o Tribunal 'a quo' tenha optado por um critério interpretativo geral violador do referido princípio da legalidade - limitando-se a decisão recorrida a concluir casuisticamente pela existência de indícios suficientes dos factos descritos na acusação, os quais se revelariam integradores do crime de abuso de informação - não competindo, consequentemente, ao Tribunal Constitucional sindicar um tal juízo puramente subsuntivo das instâncias, já que o mesmo implicaria a prévia fixação do sentido - preciso e exacto - de todos os elementos da 'fattispecie' normativa em causa (tarefa que cabe à ordem dos tribunais judiciais).
4 - Não pode concluir-se que o 'resultado interpretativo' alcançado pela decisão recorrida viole os princípios da necessidade e da proporcionalidade, enquanto condicionadores da tipificação penal de actos ou comportamentos, dada a ampla discricionariedade de que – nesta área - goza o legislador infraconstitucional na delimitação dos tipos penais e na determinação dos bens ou valores jurídicos tutelados.
5 - Não viola tais princípios uma eventual e hipotética consagração pelo legislador penal de uma tutela acrescida dos princípios da boa fé e da transparência no mercado bolsista, que conduzisse a uma possível criminalização de comportamentos dos administradores de sociedades que ocultassem à contraparte factos que bem conheciam e que eram susceptíveis de moldar decisivamente o valor dos títulos transaccionados nos negócios efectuados.
6 - Termos em que não deverá conhecer-se da questão colocada em sede de violação da norma constante do artigo 29°, n.ºs 1 e 3, da Constituição; e julgar-se improcedente o recurso quanto à constitucionalidade do 'resultado interpretativo' alcançado, por confronto com outros e diferentes princípios constitucionais”.
5. Notificados os recorrentes para se pronunciarem, querendo, sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, pelos mesmos foi dito:
“1. A questão prévia suscitada pelo M.P. está desenvolvidamente tratada no parecer do Prof. Gomes Canotilho, em termos que, naturalmente, não poderão ser excedidos pelo advogado signatário. Quer da lição deste eminente constitucionalista, quer da jurisprudência mais recente deste Tribunal, elencada nas contra-alegações do M.P., afigura-se-nos que o Tribunal Constitucional deve apreciar e decidir a questão que lhe é submetida na parte em que se invoca a violação do princípio da legalidade.
2. Na verdade, os recorrentes questionam no presente recurso: a) “a constitucionalidade do resultado interpretativo alcançado pelo Tribunal a quo”, ao sustentarem que tal 'resultado interpretativo' viola os princípios expressos nos artigos 61 ° N° 2 e 18° N° 3 da CRP, o princípio da igualdade expresso no art.º 13° e o princípio da necessidade e da proporcionalidade da incriminação; b) 'a constitucionalidade de um critério interpretativo, de índole generalizante, explicitamente adoptado pelo Tribunal recorrido', com as características normativas subjacentes aos acórdãos 205/99, 285/99 e 122/00.
3. Para apreciação da admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, por inconstitucionalidade da solução normativa adoptada, por violação do artigo
29° N°.s 1 e 3 da Constituição, o que deve ter-se como decisivo é que venha
'questionado um certo sentido interpretativo de uma norma, não determinado apenas pelo caso concreto, mas contendo em si, com suficiente autonomia, os critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos ao texto legal, de tal modo que permitem a sua utilização em casos semelhantes, que o Tribunal Constitucional não pode deixar de poder controlar apertadamente, uma vez que, nesta matéria, a Constituição não reconhece qualquer amplitude criativa ao julgador' (como refere o acórdão n° 285/99).
4. Decisivo é, pois, saber se houve 'tão-somente uma mera subsunção ou inserção do caso a apreciar e a decidir ao direito, ainda que, para tanto, tivesse de haver uma utilização pontual e implícita de regras interpretativas', ou, pelo contrário, 'uma formulação de sentido da norma entre os vários possíveis, vindo, depois de atingido esse sentido, a aplicar-se o mesmo ao decidendo caso (...)', para utilizar a terminologia do acórdão n° 122/00.
5. Vistas as coisas a esta luz - isto é, vistas as coisas à luz da jurisprudência efectivamente vertida nos acórdãos n° 205/99, 285/99 e 122/00 - torna-se perfeitamente claro que o Tribunal de Instrução adoptou uma interpretação do art. 378° do CVM, em termos e gerais e abstractos, interpretação que tem a vocação de ser aplicada, genericamente, a todas as situações em que alguém disponha de informação 'privilegiada', devido à sua qualidade de titular de órgão de administração de uma entidade titular de uma participação no respectivo capital social e, com base nessa informação, negoceie em valores mobiliários para a entidade de cujo órgão de administração seja titular.
6. A decisão recorrida, por via interpretativa, criou uma verdadeira norma, aplicáve1 em termos gerais e abstractos, a todas as situações em que um administrador negoceie em valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros para a empresa de que é administrador com base em informação 'privilegiada' de que disponha nessa qualidade.
7. Elaborada nestes termos a interpretação adoptada pelo Tribunal de Instrução,
é evidente que a inconstitucionalidade em causa é normativa e não da decisão ou da subsunção do caso à norma, já que ficam indicados com grande autonomia os
“critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes (acórdão n° 205/99).
8. Como se afirma no citado acórdão n° 205/99, 'o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador',
9. Não tem, pois razão o M.P., na questão prévia suscitada, visto que está em causa, nesta parte do recurso uma questão de controlo normativo de constitucionalidade”.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
6. O artigo 378º, n.º 1, do Código dos Valores Mobiliários, tem o seguinte teor:
“Artigo 378° Abuso de informação
1. Quem disponha de informação privilegiada devido à sua qualidade de titular de um órgão de administração ou de fiscalização de um emitente ou de titular de uma participação no respectivo capital e a transmita a alguém fora do âmbito normal das suas funções ou, com base nessa informação, negoceie ou aconselhe alguém a negociar em valores mobiliários ou outros instrumentos financeiros ou ordene a sua subscrição, aquisição, venda ou troca, directa ou indirectamente, para si ou para outrem, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. (...).
3. (...).
4. (...)
5. (...)
6. (...)”.
Entendem os recorrentes, escudados em pareceres dos Professores Gomes Canotilho, Figueiredo Dias e Costa Andrade, Faria e Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, que aquele preceito é materialmente inconstitucional quando interpretado, como se fez na decisão recorrida, em termos de incluir no tipo de crime previsto na norma em causa a negociação de valores mobiliários pela própria sociedade de cujo órgão de administração seja titular o possuidor da informação privilegiada obtida por causa de tal título. Mais precisamente, e como esclarecem no requerimento de interposição do recurso, o que os recorrentes verdadeiramente questionam é a possibilidade de inclusão na expressão “para (...) outrem”, constante desse preceito, da própria sociedade de cujos órgãos de administração são titulares os detentores de informação privilegiada, obtida devido a essa titularidade.
Em suma: a questão de constitucionalidade que vem colocada pode formular-se nos seguintes termos:
É o artigo 378º, n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários, inconstitucional, designadamente por violação dos artigos 29º, n.ºs 1 e 3, 18º, n.º 3 e 13º e 61º, n.º 2 da Constituição, quando interpretado em termos de incluir na sua previsão a conduta de um membro do órgão de administração de uma sociedade que, sendo titular de informação privilegiada em função dessa qualidade, adquira, com base nessa informação e para essa mesma sociedade, valores mobiliários?
Vejamos.
7. Da alegada violação do princípio da legalidade/tipicidade, consagrado no artigo 29º, n.ºs 1 e 3 da Constituição.
Entendem os recorrentes que a decisão recorrida, ao incluir na previsão do artigo 378º, n.º 1 do C.V.M., a conduta dos arguidos “procedeu, por via interpretativa, à criação de uma norma nova que extravasa o normal e legítimo exercício de interpretação e aplicação da lei”. Nesse sentido, afirmaram os recorrentes a concluir a sua alegação que: “A interpretação normativa a que procedeu o M.P. e o Tribunal de Instrução Criminal, expressa na decisão recorrida, conduziu (...) à criminalização de situações que manifestamente não estão incluídas no artigo 378° do C.V.M.: a criminalização da conduta de administradores que negoceiem em valores mobiliários em nome e para a sociedade de que são agentes, com base em informação dessa própria sociedade”.
Em suma: na perspectiva dos recorrentes, tal forma de proceder, por “extravasar o normal e legítimo exercício de interpretação e aplicação da lei”, teria como consequência a inconstitucionalidade da própria norma penal incriminatória a que assim se chegou, por violação do referido princípio constitucional da legalidade.
Por sua vez, o Ministério Público recorrido, escudando-se na anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, sustentou que não podia, com aquele fundamento, conhecer-se do objecto do recurso, por não vir colocada nesta parte uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de integrar o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
Responderam os recorrentes a esta questão prévia, procurando demonstrar que da anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, designadamente da firmada nos Acórdãos n.ºs 205/99, 285/99 e 122/00, resulta uma conclusão contrária à sustentada pelo Ministério Público.
Consideremos, então, esta primeira questão.
O Tribunal Constitucional tem sido, por diversas vezes, confrontado com a questão de saber se constitui uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de integrar o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, a realização de uma interpretação alegadamente extensiva ou analógica de normas vigentes em áreas que, como o direito penal, estão submetidas ao princípio da legalidade. E, conforme notam os recorrentes e o Ministério Público, a questão não teve sempre a mesma resposta por parte do Tribunal.
Uma apreciação mais desenvolvida da evolução da jurisprudência do Tribunal sobre esta questão foi feita pelo Acórdão n.º 674/99 (Diário da República, II série, de 25 de Fevereiro de 2000), em termos que agora seguiremos de muito perto.
No Acórdão n.º 353/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 571 e segs.) o Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, começou por considerar que, em tais casos, se estaria perante “a inconstitucionalidade do acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica”, pelo que se lhes não aplicaria o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão “apenas sujeitos os actos do poder normativo”.
Mais tarde, no Acórdão n.º 141/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 599 e segs.), o Tribunal Constitucional, pela sua 1ª Secção, embora com o voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Cardoso da Costa, considerou, diferentemente, ser aquela uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional. Esta última jurisprudência, porém, não se sedimentou.
Com efeito, posteriormente, o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, em inúmeros Acórdãos (cfr., a título meramente exemplificativo, o Acórdãos n.º 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., págs. 243 e segs.), o Acórdão n.º 221/95, (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de
1995), o Acórdão n.º 756/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 775 e segs.), o Acórdão n.º 682/95, o Acórdão n.º 154/98 e o Acórdão n.º
674/99 (já citado), (disponíveis na página do Tribunal na Internet, em http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), que “hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal - ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal - não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento”.
Esta orientação, amplamente dominante na jurisprudência do Tribunal Constitucional, terá sofrido alguma inflexão nos Acórdãos n.º 205/99 (Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999), n.º 285/99 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999) e n.º 122/00 (Diário da República, II Série, de 6 de Junho de 2000, que seguiu na sua esteira), todos referidos a certa interpretação normativa do artigo 120º, n.º 1, al. a) do Código Penal. É precisamente na jurisprudência firmada por estes acórdãos, que, todavia, também se não sedimentou, que os ora recorrentes se apoiam.
No citado Acórdão n.º 205/99, o Tribunal veio a conhecer da questão, tendo considerado que, nesse caso, se confrontava 'com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal'. Para isso contribuiria, nas palavras do acórdão, o facto de o recorrente não submeter à apreciação do Tribunal Constitucional 'um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador [...] mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, n.º 1, al. a), o qual é identificado'. A isto acresceria 'que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos. Conforme se afirma ainda no referido Acórdão 205/95, 'não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada'.
Contra esta orientação, entretanto reafirmada nos Acórdãos n.ºs 285/99 e 122/00, manifestaram-se, contudo, desde logo, os Conselheiros Cardoso da Costa e Luís Nunes de Almeida, em declarações de voto apostas, respectivamente, nos mencionados Acórdãos n.ºs 205/99 e 285/99.
Ora, nos presentes autos, alegam os recorrentes que, tal como acontecia nos autos que deram origem àqueles arestos, também agora o que pretendem questionar
é “a constitucionalidade de um critério interpretativo, de índole generalizante, explicitamente adoptado pelo Tribunal recorrido”, e não a constitucionalidade do concreto processo interpretativo seguido pela decisão recorrida, pelo que, como ali se decidiu, também agora haverá que concluir no sentido da possibilidade do conhecimento do objecto do recurso.
Mas, como se verá já de seguida, não têm razão.
Por um lado, porque, ao contrário do que procuram demonstrar, a situação não é análoga à que foi objecto dos Acórdãos n.ºs 205/99, 285/99 e 122/00, não sendo, sequer, a jurisprudência aí firmada transponível para os presentes autos. E, desde logo, porque não se vislumbra na decisão recorrida – ao contrário do que acontecia com as decisões que deram origem àqueles arestos – a enunciação de um critério interpretativo, de índole generalizante, explicitamente adoptado pelo Tribunal recorrido. Com efeito - como alega o Ministério Público recorrido - enquanto que nos autos que deram origem aos Acórdãos 205/99, 285/99 e 122/00 “o próprio Tribunal a quo tinha explicitado e enunciado expressamente tal critério interpretativo, assumindo claramente a necessidade de proceder a uma interpretação“criativa” e actualística da norma [...], no caso dos presentes autos, não se vislumbra minimamente, na decisão recorrida, qualquer apelo a um critério interpretativo geral do tipo penal em causa, configurável como inovatório ou criativo em relação ao sentido possível, consentido pelo elemento literal - concluindo singelamente a decisão instrutória pela existência de indícios suficientes dos factos constantes da acusação e pela subsunção de tais factos ao tipo penal do artigo 378º, por se considerar que os factos indiciados preenchem de pleno a literalidade da norma”. Não é, assim, em qualquer caso, transponível para os presentes autos, ainda que se a aceitasse, a jurisprudência firmada nos Acórdãos n.ºs 205/99, 285/99 e 122/00, por não se verificarem os pressupostos que estiveram na base da sua emissão.
Mas, por outro lado, e de forma decisiva, verificou-se mais recentemente, que, no Acórdão n.º 196/03 (ainda inédito), tirado em Plenário, bem como, por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 176/03, 331/03 e 336/03 (disponíveis na página do Tribunal na Internet, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), foi reafirmado, de forma inequívoca, por este Tribunal (embora também não unanimemente), que não são questões de constitucionalidade normativa, susceptíveis de ser conhecidas pelo Tribunal Constitucional, hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal - ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal. Ou seja, na jurisprudência citada, concluiu-se que, nos casos em que vem questionado que o julgador possa alcançar um concreto conteúdo normativo através de um determinado processo interpretativo - porque, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal ou fiscal, violaria necessariamente o princípio da legalidade penal (artigo 29º, n.ºs 1 e 3 da CRP) ou fiscal (artigo 103º, n.º 3 da CRP)-, o que vem impugnado não é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido, questão que, por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
Ora, sendo assim, apenas restará agora reafirmar as razões - aqui integralmente reiteradas, por manterem inteira validade - que têm conduzido o Tribunal Constitucional a concluir maioritariamente (cfr., por exemplo, o Acórdão 674/99 e, mais recentemente, o Acórdão n.º 336/03) que “não é questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, a que se refere à forma ou ao modo como o direito ordinário é interpretado, isto é, a um processo interpretativo que, por não ter respeitado os limites da interpretação da lei criminal ou fiscal, decorrentes do princípio da legalidade, constante dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição, conduz a uma aplicação analógica ou extensiva de determinados preceitos, ultrapassando o campo semântico dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador”. É que, como se reafirmou neste último Acórdão, 'não cabe no âmbito do controlo normativo cometido ao Tribunal Constitucional a verificação da ocorrência de uma alegada interpretação, seja ela 'criativa” ou 'extensiva”, de uma norma penal, em invocada colisão com os princípios da legalidade e da tipicidade'.
8. Da alegada violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, consagrados no artigo 18º, n.º 3 da Constituição.
Alegam ainda os recorrentes que o disposto no artigo 378º do C.V.M., na interpretação que vem questionada, viola os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, decorrentes do artigo 18º, n.º 2 da Constituição.
Vejamos se assim é.
8.1. O Tribunal Constitucional tem reiteradamente reconhecido que a Constituição acolhe, designadamente no seu artigo 18º, n.º 2, os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de segurança, afirmando repetidamente que, por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade (Cfr., designadamente, o Acórdão n° 59/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 96-97; o Acórdão n.º 634/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional,
26º vol., págs. 211-212; o Acórdão n.º 108/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42º vol., págs. 521-522; o Acórdão n.º 99/02, Diário da República, II Série, de 4 de Abril de 2002; o Acórdão n.º 337/02, Diário da República, II Série, de 14 de Outubro de 2002; ou, mais recentemente, os Acórdãos n.º 22/03, Diário da República, II Série, de 18 de Fevereiro de 2003, e
295/03 – este entretanto já disponível na página do Tribunal Constitucional na Internet, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm).
No Acórdão nº 634/93 (já citado) ponderou o Tribunal:
' [...] É certo que o princípio da subsidiariedade do direito penal não resulta expressamente das normas que correspondem à chamada «constituição penal»
(artigos 27º e seguintes da Constituição). Todavia, ele não é mais do que uma aplicação, ao direito penal e à política criminal, dos princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, este aflorando designadamente no artigo 18º, nº 2, da Constituição, e ambos decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignada no artigo 2º da Lei Fundamental. Segundo Jescheck (Tratado de Derecho Penal – Parte General, trad., Bosch, 1986, p. 34), o princípio da proporcionalidade dos meios (proibição do excesso), também com consagração constitucional no direito alemão, refere-se ao conceito de Estado de direito material e foi introduzido expressamente no direito criminal como pressuposto de determinação das medidas penais. Deste princípio, bem como dos da protecção da dignidade da pessoa humana e da protecção geral da liberdade, resulta a limitação do Direito Penal à intervenção necessária para
«assegurar a convivência humana na comunidade». Como é sabido, entre nós, a consagração constitucional destes princípios não merece contestação desde a revisão constitucional de 1982.
[...]
É que, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, «num Estado de Direito material, de raiz social e democrática, o direito penal só pode e deve intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem» («O sistema sancionatório do Direito Penal Português no contexto dos modelos da política criminal», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pp.
806/807). Daqui decorre, para o mesmo autor, que não devem constituir crimes – ou, sequer, caber no objecto do direito penal – as condutas entre outras, que
«violando embora um bem jurídico, possam ser suficientemente contrariadas ou controladas por meios não criminais de política social; com o que a necessidade social se torna em critério decisivo de intervenção do direito penal: este, para além de se limitar à tutela de bens jurídicos, só deve intervir como última ratio da política social» («O Movimento da Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social» Jornadas de Direito Criminal – O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, p. 323)”.
Ainda no mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão n° 108/99 (já citado):
“[...] O direito penal, enquanto direito de protecção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos - e se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais. É, assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentariedade, pois que há-de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à protecção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. E enformado, bem assim, pelo princípio da subsidiariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas para protecção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão-de constituir sempre o último recurso. A necessidade social apresenta-se, deste modo, como critério decisivo da intervenção do direito penal. No dizer de SAX (citado por EDUARDO CORREIA, loc.cit.), a necessidade da pena surge “como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos”. (Para maiores desenvolvimentos sobre esta questão, cf. o citado Acórdão n° 83/95, publicado no Diário da República, II série, de 16 de Junho de 1995). Este princípio da necessidade – que, no dizer de EDUARDO CORREIA (“Estudos sobre a reforma do direito penal depois de 1974”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 119°, pág. 6), marca o “limite do âmbito do direito penal” – decorre do n° 2 do artigo 18° da Constituição. [...]. Mas então, como adverte FIGUEIREDO DIAS (“O sistema sancionatório no direito penal português”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1984, página 823), há-de observar-se “uma estrita analogia entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais”, ficando toda a intervenção penal subordinada “a um estrito princípio de necessidade”. “Só por razões de prevenção geral, nomeadamente de prevenção geral de integração – sublinha – se pode justificar a aplicação de reacções criminais”. Idêntico é o pensamento de JOSÉ DE SOUSA E BRITO (“A lei penal na Constituição”, in Estudos sobre a Constituição, 2° vol., Lisboa, 1978, pág. 218), que escreve:
“Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto é, indispensáveis, tanto na sua existência, como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade civil”.
Mais recentemente, no também já citado Acórdão n.º 99/02, escreveu-se mesmo em jeito de conclusão:
“[...] as medidas penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse constitucionalmente protegido (cfr. artigo 18° da Constituição), e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro modo”.
8.2. Ao mesmo tempo que tem reconhecido a consagração constitucional dos princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, o Tribunal Constitucional tem, contudo, também reiteradamente sublinhado que “não se deve simultaneamente perder de vista que o juízo de constitucionalidade se não pode confundir com um juízo sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional substituir-se ao legislador na determinação das opções políticas sobre a necessidade ou a conveniência na criminalização de certos comportamentos” (assim, designadamente, o Acórdão n.º 99/02).
Como sublinha Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
3° ed., Coimbra, 1999, pág. 876), a “política deliberativa sobre as políticas da República pertence à política e não à justiça”; e, por isso mesmo, no dizer de Jorge Miranda, ao juiz constitucional não compete “apreciar a oportunidade política desta ou daquela lei ou a sua maior ou menor bondade para o interesse público”, mas tão-só averiguar “a correspondência (ou não descorrespondência) de fins, a harmonização (ou não desarmonização) de valores, a inserção (ou não desinserção) nos critérios constitucionais» (Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra Editora, 2001, págs. 43-44), sem «transformar o juízo de constitucionalidade em juízo de mérito em que se valora se a lei cumpre bem ou mal os fins por ela própria estabelecidos” (idem, vol. II, Coimbra, 1991, pág.
342).
No mesmo sentido, mas agora referindo-se já especificamente ao espaço de discricionariedade reconhecido ao legislador penal, refere também Costa Andrade
(O novo Código Penal e a moderna criminologia, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, fase 1, Lisboa, 1983, nota 34, pág. 228):
“[...] importa, acima de tudo, salvaguardar o «primado político do legislador»
(Bachof) nos espaços de discricionariedade decorrentes do princípio da subsidiariedade. A sub-rogação de qualquer outro órgão neste domínio, designadamente do Tribunal Constitucional, representaria uma questionável transposição das fronteiras entre o jurídico e o político e uma violação do princípio da separação dos poderes. Como refere Bachof, deve reservar-se ao legislador a competência para definir os objectivos políticos e os critérios de adequação, como assumir os riscos pelas expectativas ou prognósticos sobre cuja antecipação assentam as suas decisões normativas.
Também José de Sousa e Brito conclui (A lei penal na constituição, Estudos sobre a Constituição, 2º volume, p. 218), no que constitui doutrina sistematicamente reafirmada pelo Tribunal Constitucional, ser “evidente que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também neste matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva”.
Em suma: do que vai dito pode concluir-se, como se fez no já citado Acórdão n.º
99/02, que, sendo certo que “também em matéria de criminalização o legislador não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição”, é, por outro lado, igualmente certo que, “no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas”.
(Sublinhado nosso).
8.3. Isto dito, cabe, então, perguntar se será manifestamente excessivo, arbitrário ou desproporcionado punir, nos termos em que, de acordo com a interpretação feita pela decisão recorrida, aqui questionada, o faz o art. 378º do C.V.M., a conduta de um membro do órgão de administração de uma sociedade que, sendo titular de informação privilegiada em função dessa qualidade, adquira, com base nessa informação e para essa mesma sociedade, valores mobiliários?
A esta questão há que responder negativamente. Quer porque a punição criminal do abuso de informação visa a protecção de interesses juridico-constitucionalmente reconhecidos como valiosos - interesses que são igualmente susceptíveis de ser afectados por condutas do tipo das que agora vem questionadas -, quer porque os termos concretos dessa punição (pena de prisão até 3 anos ou pena de multa), não podem, tendo em conta a potencialidade lesiva dos comportamentos em causa e a relevância dos interesses protegidos, considerar-se como inequívoca, patente ou manifestamente excessivos.
Desenvolveremos de seguida estes dois argumentos.
8.3.1. Os comportamentos abrangidos pelo artigo 378º do C.V.M. são, em regra, igualmente proibidos na generalidade dos mercados de valores mobiliários (sobre este ponto cfr., para mais desenvolvimentos, Fátima Gomes, Insider Trading, APDMC, 1996, pp.13 a 61). As razões dessa proibição generalizada do abuso de informação privilegiada podemos intuí-las, desde logo, no preâmbulo da Directiva Comunitária n.º 89/592/CEE, de 13 de Novembro de 1999, (publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias n.º L 334/30, de 18 de Novembro de 1989) relativa à coordenação das regulamentações respeitantes às operações de iniciados, na qual pode ler-se:
“[...] Considerando que o mercado secundário de valores mobiliários desempenha um papel fundamental no financiamento dos agentes económicos; Considerando que, para que esse mercado possa desempenhar o seu papel de forma eficaz, devem ser tomadas as medidas com vista a assegurar o seu bom funcionamento; Considerando que o bom funcionamento do mercado em questão depende em grande medida da confiança que inspire aos investidores; Considerando que essa confiança assenta, nomeadamente, na garantia dada aos investidores de que estão colocados num plano de igualdade e que serão protegidos contra a utilização ilícita da informação privilegiada; Considerando que as operações de iniciados, em virtude de beneficiarem certos investidores em relação a outros, podem pôr em causa essa confiança e dessa forma prejudicar o bom funcionamento do mercado
[...]”.
Também Frederico da Costa Pinto (O novo regime dos crimes e contra-ordenações no Código dos Valores Mobiliários, 2000, pp. 64-65), procurando sintetizar as razões que, na doutrina europeia, têm sido apontadas para a punição criminal do abuso de informação conclui que, consoante os autores, essa punição visa proteger “a igualdade entre os investidores, a confiança destes no mercado de valores mobiliários, o seu património, os pressupostos essenciais de um mercado eficiente ou a função negocial da informação e a justa distribuição do risco dos negócios”, tratando-se mesmo, para outros, “de infracções pluri-ofensivas, isto
é, que lesam uma diversidade de bens jurídicos”.
Ora, independentemente de saber qual é, daquelas, a perspectiva mais correcta, a verdade é que o que atrás se afirmou é suficiente para que se possa concluir, sem margem para dúvidas, que, em qualquer caso, a punição criminal do abuso de informação privilegiada não constitui, para usarmos, mais uma vez, as palavras do Acórdão n.º 99/02, “algo de intrinsecamente avesso ou indiferente às valorações ético-sociais que decorrem dos interesses juridico-constitucionalmente protegidos”. Ao contrário, a proibição penal dos comportamentos descritos no artigo 378º do C.V.M tem certamente em vista a salvaguarda de interesses juridico-constitucionalmente reconhecidos como valiosos.
Como, bem, evidencia Frederico da Costa Pinto (ob. cit., p. 17), em causa está, em qualquer caso, a tutela da “[...] regularidade e eficiência de um sector do sistema financeiro, reconhecido constitucionalmente (art. 101º da Constituição), que desempenha funções essenciais, como a diversificação das fontes de financiamento das empresas, a aplicação de poupanças das famílias ou a gestão de mecanismos de cobertura de risco de actividades e de investimentos”. Ora, como também esclarece aquele autor (ob. cit. p. 19): “A protecção destas funções económicas é, de acordo com o texto constitucional, uma «incumbência prioritária do Estado» que deve, nomeadamente, assegurar o «funcionamento eficiente dos mercados» e «a repressão de práticas lesivas do interesse geral» (art. 81º, al. e) da Constituição). Esta preocupação constitucional de tutela dos mercados é materialmente justificada, pois o funcionamento dos mercados de valores mobiliários permite prosseguir interesses económicos particulares (dos investidores, das empresas), mas constitui também um instrumento específico afecto ao desenvolvimento económico dos Estados”.
A criminalização do abuso de informação, punindo o aproveitamento ilegítimo de assimetrias informativas, visa, em suma, tutelar alguns dos pressupostos essenciais do funcionamento eficiente de um importante sector da economia nacional, o mercado de valores mobiliários, o qual tem relevância constitucional, e é, por isso, susceptível de tutela penal.
É certo que da demonstração de que, em abstracto, o abuso de informação privilegiada visa a preservação de um interesse susceptível de tutela penal não decorre, automaticamente, a demonstração de que os interesses que a norma visa tutelar também são afectados quando esteja em causa, como está nos presentes autos, a conduta de um membro do órgão de administração de uma sociedade que, sendo titular de informação privilegiada em função dessa qualidade, adquira, com base nessa informação e para essa mesma sociedade, valores mobiliários. Não se vê, porém, em face dos preceitos relevantes da Constituição, designadamente dos que consagram os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, que fosse vedado ao legislador a inclusão, no tipo de crime de abuso de informação, de comportamentos do género dos alegadamente praticados pelos ora recorrentes, por serem estes ainda lesivos (ou potencialmente lesivos) para os bens jurídicos protegidos. Determinar, contudo, se tais comportamentos estão ou não efectivamente incluídos no artigo 378º do C.V.M., designadamente por ter sido essa a intenção legislativa, é, todavia, uma questão que não cabe ao Tribunal Constitucional dirimir, por se tratar já da delimitação das concretas fronteiras do tipo, matéria que é da competência exclusiva dos tribunais de instância.
8.3.2. Para que seja constitucionalmente legítima a intervenção penal, não é, porém, suficiente a demonstração de que a norma em causa tem por objectivo a tutela de um ou vários bens jurídicos ancorados na Constituição, como se demonstrou. A legitimidade constitucional da intervenção penal depende ainda, decisivamente, de uma ponderação a fazer entre a medida em que o comportamento proibido afecta os bens jurídicos que a norma penal visa proteger e a medida em que a proibição penal desse mesmo comportamento afecta os direitos fundamentais das pessoas. Porém, como se assinalou já, este Tribunal tem sublinhado que, nesta ponderação, deve ser reconhecida ao legislador uma larga margem de liberdade de conformação, pelo que o juízo de censura constitucional só deve ocorrer “quando a gravidade do sancionamento se mostre inequívoca, patente ou manifestamente excessiva”. Ora, essa não é, contudo, a situação que se verifica no caso sub judicio, tendo designadamente em consideração a importância do bem jurídico tutelado, a potencialidade lesiva dos comportamentos abrangidos pelo tipo, a relativa pouca gravidade da moldura legal da pena de prisão (com um limite máximo de 3 anos de prisão) e a previsão da possibilidade de aplicação, em alternativa, da pena de multa.
Nesse sentido, também Frederico da Costa Pinto (ob. cit, pp. 19-20), conclui: “A parte sancionatória do CVM de 1999 [...] procura cumprir seriamente o princípio da intervenção mínima atrás invocado. Este propósito reflecte-se em diversos aspectos, como, por exemplo, no âmbito da matéria penal (onde quer os tipos incriminadores, quer as pena aplicáveis, demonstram um espírito de contenção
[...]).”
Em conclusão, a criminalização operada pela norma impugnada, tal como vem interpretada, deve ser tida como uma opção que não contraria os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, consagrados constitucionalmente, nenhuma censura merecendo desta perspectiva.
9. Da alegada violação dos princípios da livre iniciativa económica e da igualdade, consagrados nos artigos 61º, n.º 2 e 13º da Constituição.
Alegam finalmente os recorrentes que o disposto no artigo 378º do C.V.M., na interpretação que vem questionada, viola os princípios da livre iniciativa económica e da igualdade, consagrados nos artigos 61º, n.º 2, e 13º da Constituição.
9.1. A alegada violação do princípio da livre iniciativa económica resultaria, na perspectiva dos recorrentes, da circunstância de, “ao criminalizar os administradores de sociedades por utilizarem informações e conhecimentos das entidades de que são agentes na negociação de valores mobiliários, para as pessoas colectivas de que são representantes, estar-se-ia a restringir, em grau intolerável, a liberdade de iniciativa económica, sem sentido algum, de forma absurda, sem que tal incriminação pudesse corresponder à protecção de algum valor atendível”.
É por demais evidente, contudo, que não lhes assiste razão. Nem a proibição do comportamento em causa afecta, em grau intolerável, a liberdade de iniciativa económica, nem, como já se demonstrou suficientemente, a proibição é “sem sentido algum” ou “absurda” por não corresponder “à protecção de algum valor atendível”. Ao invés, sempre se poderia acrescentar que, exactamente para que a liberdade de iniciativa económica de todos se possa desenvolver de uma forma sadia, há que assegurar um funcionamento eficiente e justo dos mercados e, consequentemente, reprimir as práticas lesivas desse funcionamento, como sejam os comportamentos que, abusando de informação privilegiada, neles introduzem distorções, essas sim não toleráveis.
9.2. Por sua vez, a alegada violação do princípio da igualdade resultaria do facto de, segundo os recorrentes, “a mesma conduta seria lícita se praticada por uma pessoa em nome pessoal mas já seria um crime se praticada por alguém que agisse em representação da sociedade”.
Nesta perspectiva, porém, a questão não pode, sequer, ser apreciada pelo Tribunal Constitucional. Não pode, porque essa interpretação, em termos de excluir do âmbito de aplicação do artigo 378º do C.V.M. o caso meramente hipotético construído pelos recorrentes, não foi efectuada pela decisão recorrida, que se limitou a 'concluir, sem necessidade de mais considerações, que a sua [dos arguidos] descrita conduta integra os elementos típicos do crime de abuso de informação p.p. pelo art.º 378 do C.V.M.', considerando que os factos indiciados preenchem de pleno a literalidade da norma. Mas também não pode, porque não compete a este Tribunal, como pressuposto prévio da discussão da questão de constitucionalidade, delimitar as concretas fronteiras de um tipo penal, em termos de concluir pela sua não aplicação a uma determinada hipótese. Assim sendo, não obstante não ser nada evidente, ao contrário do que sugerem os recorrentes, que um comportamento análogo ao dos autos, tal como o formulou a decisão recorrida – “os arguidos [...] adquiriam acções [...] pelo preço de 16 Euros cada, porque já sabiam que tinham de efectuar uma OPA [...] ao preço de 17 Euros por acção” -, seria lícito se praticado por uma pessoa em nome pessoal, não é possível conhecer da questão, nesta última perspectiva em que foi colocada.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, na parte em que dele se conhece.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Outubro de 2003
Gil Galvão Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida quanto ao ponto 7, nos termos de declaração junta) Bravo Serra Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
1. Votei vencida quanto à decisão de não conhecer da alegada violação do princípio da legalidade, na sua vertente de tipicidade, pelas razões constantes da declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 383/00 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 47º, p.829 e segs.), cuja parte relevante se transcreve:
«Votei vencida quanto à parte em que se decidiu não conhecer do objecto do recurso, pelas seguintes razões:
1. O Tribunal julgou não poder conhecer da questão que o recorrente designa como
“vertente interpretativa”, consistente na alegada inconstitucionalidade da alínea a) do nº 1 e do nº 3 do artigo 256º do Código Penal, na 'interpretação acolhida pelo douto acórdão recorrido', de acordo com a qual 'a alteração e a substituição das chapas de matrícula dos veículos automóveis está prevista e é punida pelo no 3 do artigo e diploma referido, em virtude de aqueles elementos dizerem respeito a documento autêntico ou com igual força'. Tal interpretação, apoiada na doutrina formulada no Assento nº 3/98 do Supremo Tribunal de Justiça, teria ido 'além do sentido possível das palavras e de conceitos legalmente definidos', com violação dos nºs 1, 3 e 4 do artigo 29º e da alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição.
É sabido que o objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional é constituído por normas efectivamente aplicadas durante o processo. E, de acordo com a jurisprudência corrente deste Tribunal, a norma jurídica cuja constitucionalidade há-de ser apreciada é tomada com o sentido que lhe foi interpretativamente atribuído pela decisão recorrida. Assim se escreveu, por exemplo, no Acórdão nº 168/99 (não publicado): 'Quando das disposições legais em causa se extraem, ou podem extrair, diferentes proposições normativas, ou diferentes interpretações, devem ser tomadas como objecto da verificação de constitucionalidade as normas legais aplicadas, de acordo com o sentido normativo decisivamente aceite e aplicado pelo tribunal recorrido'. Noutros termos, objecto do recurso é a 'norma, interpretativamente mediatizada pela decisão recorrida, porque a norma deve ser apreciada no recurso segundo a interpretação que lhe foi dada dessa decisão' (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1998, pág. 881).
(...) Deste modo, é a norma aplicada, interpretativamente extraída da respectiva fonte legal – e não a fonte em si mesma considerada, como acto legislativo ou como disposição legal –, que constitui objecto do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Como afirma ARMINDO RIBEIRO MENDES (no Relatório apresentado na I Conferência da Justiça Constitucinal da Ibero-América, Portugal e Espanha – Os órgãos de fiscalização da constitucionalidade: Funções, competências, organização e papel no sistema constitucional perante os demais poderes do Estado, separata de Documentação e Direito Comparado, nº 71/72, Lisboa, 1997, pág. 719), 'objecto de controlo de constitucionalidade são as normas jurídicas e não os preceitos normativos que as contêm'. Não tem assim autonomia – não podendo assumir-se como questão diferenciada de constitucionalidade – o problema de saber se o teor do nº 3 do artigo 256º do Código Penal ofende a Constituição por insuficiente definição dos pressupostos da punição. O que não impede que a análise da disposição legal em causa possa configurar-se como um momento relevante do juízo de constitucionalidade normativa a realizar.
2. É incontroverso que os poderes do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização concreta da constitucionalidade se dirigem a normas jurídicas e não a decisões judiciais. Já não é isenta de dúvidas a resposta à questão de saber como deve traçar-se a fronteira entre umas e outras, para o efeito de delimitar o âmbito do poder de fiscalização da constitucionalidade normativa pelo Tribunal Constitucional [sobre a questão, em termos genéricos, cf. RUI MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade – os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Lisboa, 1999, págs. 336-34, que afirma:
'A competência do Tribunal Constitucional deve, pois, abranger a fiscalização da constitucionalidade de uma regra abstractamente enunciada para uma aplicação genérica e não simplesmente o controlo da concreta decisão de um caso jurídico'
(pág. 339)]. O problema colocado no presente recurso é o de saber se deve afastar-se do
âmbito da fiscalização pelo Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade, por violação do princípio da legalidade penal, de normas interpretativamente obtidas (ou, o que é dizer o mesmo, de determinadas interpretações normativas) que foram aplicadas na decisão recorrida. Deve lembrar-se antes de mais que o Tribunal Constitucional se tem considerado em geral competente para julgar a constitucionalidade de interpretações normativas, ou de normas interpretativamente obtidas (entendida aqui interpretação no seu sentido amplo, abrangendo o processo de detecção da norma por via de analogia ou de interpretação em sentido estrito), apesar da dificuldade prática, por vezes experimentada, da distinção entre norma e decisão judicial. Como se afirmou no Acórdão 612/94 (publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Janeiro de 1995), 'O Tribunal Constitucional vem entendendo, numa jurisprudência longamente firmada, que invocar a inconstitucionalidade de uma dada interpretação de certa norma jurídica é invocar a inconstitucionalidade da própria norma, nessa interpretação - hipótese que não se confunde com aquelas em que pura e simplesmente se invocou a inconstitucionalidade da própria decisão, e só desta'. Indispensável é que esteja em causa um critério normativo de decisão, em que o Tribunal recorrido se tenha baseado como ratio decidendi. Independentemente da questão de saber em que termos se coloca a distinção entre interpretação e aplicação, não pode obviamente o Tribunal Constitucional sindicar o acto de julgamento, que envolve a ponderação decisiva da singularidade do caso concreto, ou a decisão, como resultado da conjugação indissociável do facto e do critério normativo utilizado. Mas pode e deve aferir a constitucionalidade desse critério normativo. Não são, pois, sindicáveis nem a aplicação a uma dada situação concreta de um critério normativo – isto é, a subsunção, operada pelo aplicador do direito, do caso concreto à norma–, nem a obtenção, pelo julgador, de uma solução não decorrente de critérios estritamente normativos.
À luz das considerações indicadas, o objecto do presente recurso é inegavelmente uma norma jurídica, que pode enunciar-se com generalidade e abstracção: quem falsificar a chapa de matrícula de veículo automóvel é punível como agente de um crime de falsificação de um documento com força igual à do documento autêntico.
3. Esta afirmação, por si só, não resolveria totalmente o problema, na medida em que, residindo a questão de constitucionalidade suscitada na alegada violação do princípio da legalidade criminal pela interpretação adoptada, há quem entenda (e foi esta a solução que fez vencimento no caso presente) não poder tal vício ser conhecido por este Tribunal, que, aliás, tem proferido decisões de sentido não unívoco (cf. designadamente os acórdãos citados no Acórdão nº 674/99, Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000). Debruçou-se sobre a questão RUI MEDEIROS (ob. cit., págs. 340-342), que, relativamente às hipóteses em que o tribunal obtém uma norma penal através do mecanismo da integração de lacunas por analogia, considera que não é possível conhecer do recurso de constitucionalidade por violação da legalidade criminal, já que o que verdadeiramente seria fiscalizado seria não a norma mas o 'próprio processo de obtenção da regra aplicável' (ob. cit., pág. 341). Assim, por considerar estar em causa o acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, não seria possível ao Tribunal Constitucional conhecer do recurso sempre que o próprio legislador pudesse, sem ofender a Constituição, estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resulta da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo Tribunal a quo. Aceitou esta doutrina o Acórdão nº 674/99 (embora aparentemente como obiter dictum, já que afirmou que no caso 'nem sequer ocorreu uma integração analógica ou 'operação equivalente', mas uma mera interpretação da lei que vem contestada pelo recorrente'), julgando-a aplicável aos casos de normas penais obtidas por via de 'integração analógica' ou de 'formas não admissíveis de interpretação extensiva'.
4. Apesar de assentar em argumentação ponderosa (cf., para além da citada obra de RUI MEDEIROS, os pontos 49 a 53 do Acórdão nº 674/99 do Tribunal Constitucional), tal doutrina não parece ser procedente. Antes de mais, importa ter presente que a tese em apreciação afasta certas questões de constitucionalidade da fiscalização do Tribunal Constitucional não em função do seu objecto (constituído por uma verdadeira norma), mas em função do seu fundamento: a saber, a circunstância de a norma obtida resultar de determinado processo interpretativo desconforme com o princípio da legalidade penal. Ora, não se encontra base constitucional ou legal para excluir da fiscalização da constitucionalidade de normas (posto que se trate de efectivas normas, ainda que interpretativamente construídas, como no presente recurso) a apreciação de um específico fundamento dessa inconstitucionalidade. Na verdade, se a norma em causa pode ser confrontada com a Constituição com fundamento na violação de outras normas ou princípios constitucionais (o que não
é posto em causa pela doutrina que agora se analisa), não se vê porque deva ser excluído o fundamento consistente na violação da legalidade criminal. Não se diga que, se o legislador formulasse directamente uma norma com o conteúdo que lhe foi interpretativamente atribuído pelas instâncias, tal norma não violaria a Constituição. Este argumento não vale, já que a norma cuja constitucionalidade se aprecia é a que foi aplicada no processo, e não uma norma hipoteticamente criada por acto legislativo. De resto, a inconstitucionalidade da norma pode resultar da violação da Lei Fundamental não pelo seu próprio conteúdo, mas pelo processo da sua obtenção: basta pensar nas hipóteses de inconstitucionalidade orgânica e formal, resultantes da violação, no processo de formação da norma, de preceitos constitucionais de competência e de forma. Também nestas últimas hipóteses, seria possível ao legislador elaborar uma norma de conteúdo idêntico, sem violar a Constituição. Mas essa seria uma outra norma, e não aquela cuja inconstitucionalidade orgânica ou formal se suscita. Não parece também procedente o argumento de que basear o juízo de constitucionalidade na natureza do processo de interpretação ou integração usado
é sindicar o 'acto de julgamento'. Na verdade, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa, há que distinguir – apesar das inevitáveis dificuldades teóricas e práticas suscitadas – entre tudo o que é resultado da ponderação do caso concreto submetido ao Tribunal, e que releva da decisão, daquilo que é a adopção de critérios normativos, e que releva da norma aplicada. Ora, quando um tribunal extrai, a partir de uma fonte, um critério normativo válido para uma série de casos, utilizando um processo hermenêutico também considerado válido para esses casos, não é o singular acto de julgamento que está em causa, nem a concreta decisão do tribunal em que esse acto se consubstancia. Pelo contrário, nessas hipóteses, a questão é manifestamente de constitucionalidade normativa. Acresce que, em bom rigor, averiguar da violação do princípio da legalidade penal não supõe necessariamente a exacta qualificação do procedimento metódico usado (analogia, interpretação extensiva), mas tão só apurar se a norma obtida
'ultrapassa o sentido possível das palavras da lei penal' (cf. a declaração de voto do Conselheiro Sousa Brito no Acórdão 674/99 e o Acórdão nº 205/99, Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999). Ou, noutros termos,
'independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita' (Acórdão nº 205/99, seguido pelo Acórdãos nº 285/99 e 122/00, publicados no Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999 e de 6 de Junho de 2000, respectivamente). Mas deve ainda ponderar-se o argumento (utilizado no Acórdão nº 674/99) de que admitir o recurso em hipóteses como as do caso em apreciação seria aceitar que o Tribunal Constitucional procedesse ao controlo da interpretação judicial das normas penais, pois 'a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (...)'. Assim, 'seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu 'sentido natural' (e qual é ele, em cada caso concreto), com base em violação do princípio da separação de poderes', bem como, se 'uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República', com base na 'existência de uma inconstitucionalidade orgânica'. Este argumento não deve também aceitar-se, já que pressupõe que o entendimento criticado implicaria entender como violação do princípio da legalidade uma interpretação 'errónea', qualquer que ela fosse, por corresponder à adopção de um sentido normativo divergente do seu 'sentido natural', ou seja da interpretação 'correcta'. Semelhante argumento não pode proceder, porque é dirigido contra uma posição cuja defesa, em boa verdade, ninguém adopta. Na verdade, uma coisa é a bondade de uma dada interpretação, e outra, bem distinta,
é a contrariedade à Constituição dessa mesma interpretação. Uma disposição penal pode ser objecto de diferentes interpretações compatíveis com o princípio da legalidade. O que este princípio proíbe é que o julgador alcance, contra o princípio nullum crimen sine lege certa, uma norma cujo conteúdo ultrapassa o sentido possível das palavras da lei. Quanto à possibilidade – alegadamente proporcionada pela doutrina criticada no Acórdão nº 674/99 – de assacar a determinada interpretação outras causas de inconstitucionalidade (como a orgânica), deve lembrar-se que o Tribunal Constitucional tem, por diversas vezes, apreciado a constitucionalidade orgânica de interpretações adoptadas pelas instâncias, em hipóteses em que há interpretações alternativas não violadoras das regras constitucionais de competência. Para referir apenas acórdãos tirados em matéria penal, cabe mencionar o Acórdão nº 609/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Março de 1996), que, confrontado com o alcance de uma dada norma revogatória, afastou a interpretação que conduziria à sua inconstitucionalidade orgânica
(tratava-se da revogação por um Decreto-Lei não autorizado de uma norma penal), impondo uma interpretação que considerou conforme com a Constituição. De modo semelhante, o acórdão nº 41/00 (não publicado) impôs determinada interpretação do artigo 199º do Código de Processo Penal (contrária à adoptada na decisão recorrida), de modo a afastar a sua inconstitucionalidade orgânica, afirmando:
'a norma constante do artigo 199º do Código de Processo Penal, se fosse interpretada no sentido de abranger os titulares de cargos políticos, maxime os titulares de órgãos representativos autárquicos, entraria em colisão com o disposto no citado artigo 164º, alínea m), da Constituição'. Já no Acórdão nº
520/99, não publicado, (estava em causa o respeito por uma lei de autorização legislativa em sede de direito de mera ordenação social), onde se reconheceu a
'dificuldade tão amiudadamente sentida de estabelecer, de modo inequívoco e resposta fácil, a linha de demarcação entre uma questão de interpretação normativa constitucionalmente sindicável e um mero reexame da matéria fáctica apurada e do enquadramento jurídico que lhe foi dado nas instâncias, mormente no tribunal a quo', a razão pela qual não se veio a conhecer do objecto do recurso, foi a de que não se suscitava uma 'questão de constitucionalidade normativa - ou de sua interpretação'.
(...)»
2. Com efeito, e tomando como objecto a norma tal como é definida no ponto 6. do acórdão, teria votado a improcedência do recurso também por considerar que não viola o princípio da legalidade criminal a inclusão, na expressão “para outrem”, constante do n.º 1 do artigo 378º do Código dos Valores Mobiliários, da
“sociedade de cujos órgãos de administração são titulares os detentores da informação privilegiada”. Não cabe ao Tribunal Constitucional indagar se tal interpretação é ou não a mais correcta; como também escrevi na declaração atrás citada, “o apuramento de uma violação do princípio da legalidade penal, na sua vertente de tipicidade, não corresponde a saber se a disposição em causa foi bem ou mal interpretada, mas a saber se a norma aplicada (com a interpretação que lhe foi dada), por exceder o sentido possível das palavras da lei, se revela imprevisível para os destinatários. Como se afirmou no Acórdão nº 168/99, 'averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos'.
Para o recorrente, incluir na expressão “para si ou para outrem” a própria sociedade a cujos órgãos sociais pertença o agente significa que “a decisão recorrida procedeu, por via interpretativa, à criação de um norma nova que extravasa, manifestamente o normal e legítimo exercício de interpretação e aplicação da lei”. Não creio, todavia, que se possa afirmar que tal interpretação exceda o sentido literal do texto legal quando, para a alcançar, a decisão recorrida se limitou a contrapor o agente à sociedade. Deste modo, a norma impugnada não se revela violadora do princípio da tipicidade, como expressão do princípio da legalidade criminal (nº 1 do artigo
29º da Constituição). Assim, julgaria improcedente o presente recurso, também nesta parte.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza