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Processo nº 525/2003
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 13 foi rejeitado o recurso que A. interpusera do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que negara provimento ao recurso interposto do acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos que o condenara “como autor de um crime de violação, na forma continuada, p. e p. pelos artºs 164º, n.º 1 e 30º, n.º 2 do Cód. Penal de
1995, na pena de cinco anos de prisão”.
Para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se nos seguintes termos:
«2. Estamos perante um acórdão da Relação do Porto que confirmou a decisão da 1ª instância, dado que, por um lado, rejeitou o recurso quanto à matéria de facto e, por outro, negou-lhe provimento quanto à matéria de direito.
Trata-se, pois, de uma decisão proferida pela referida Relação, em recurso, da qual só se pode recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça se a mesma não for irrecorrível. É o que dispõe a al. b) do art. 432º do C.P.P., remetendo para o disposto no art. 400º do mesmo diploma.
No presente caso, apenas o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal.
Assim, há que ter em conta o disposto no art. 409º do C.P.P. no que concerne à proibição de “reformatio in pejus”, segundo a qual, interposto recurso de decisão final somente pelo arguido – que é o caso que ora releva –, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes – v. o nº 1 do referido art. 409º.
Isto significa que a pena aplicável pelo tribunal de recurso – mormente a de prisão (v. o nº 2 daquele art. 409º) – a cada um dos crimes por cuja prática o arguido foi condenado não pode ser superior à pena aplicada pelo tribunal recorrido a cada um dos mesmos crimes – v. o acórdão do S.T.J., de
11.4.2002, proc. nº 150/02 – 3ª Secção.
Ora, “in casu”, a Relação, ao confirmar a decisão da 1ª instância, aplicou ao arguido, aqui recorrente, a pena de cinco anos de prisão pela prática de um crime de violação p. e p. pelos artºs 164º, nº 1 e 30º, nº 2 (crime continuado) do Código Penal.
Assim, por um lado, dado que a pena aplicável, pela via do novo recurso – agora para o S.T.J. – ao crime em causa não pode exceder a que foi aplicada pela Relação – cinco anos de prisão –, não é admissível o presente recurso, face ao disposto no art. 400º, nº 1, al. e), do C.P.P., pelo que o mesmo tem de ser rejeitado, nos termos dos artºs 414º, nº 2 e 420º, nº 1 do C.P.P., sendo certo que este Supremo Tribunal não está vinculado pela decisão que admitiu o recurso – nº 3 daquele art. 414º.
Por outro lado, estamos perante um acórdão condenatório que confirmou a decisão da 1ª instância, em processo por crime ao qual, pela via de novo recurso, não pode ser aplicável pena de prisão superior à já aplicada pela Relação, pelo que, face ao disposto no art. 400º, nº 1, al. f), do C.P.P., também não é admissível o presente recurso, que, assim, ainda tem de ser rejeitado por este motivo, nos termos dos artºs 414º, nº 2 e 420º, nº 1 do C.P.P..»
2. Inconformado, A. veio recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da “inconstitucionalidade das normas ínsitas no artgº 400º, n.º 1, al. e) e f) do C. P. Penal, na interpretação acolhida na decisão recorrida”, que transcreve, por violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição. Em seu entender, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça afere-se pela pena abstractamente aplicável ao crime em questão – 3 a
10 anos – e não pela que, concretamente, foi aplicada pela decisão recorrida.
Diz ainda não ter suscitado anteriormente a referida inconstitucionalidade por ter sido dada às normas em causa uma interpretação imprevisível, “não podendo o recorrente, razoavelmente, contar com a respectiva aplicação”.
O recurso não foi, porém, admitido. Pelo despacho de fls. 19, o relator no Supremo Tribunal de Justiça considerou que o recorrente não cumprira o ónus de suscitar a inconstitucionalidade “no recurso interposto para o S.T.J., pois não se tratava de questão desconhecida, não sendo, pois uma decisão surpresa aquela de que o recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional”.
3. Deste despacho veio o recorrente reclamar para o Tribunal Constitucional, mantendo não lhe ser exigível que tivesse de invocar a inconstitucionalidade antes de o Supremo Tribunal de Justiça ter proferido o acórdão recorrido, já que “nada fazia prever” a interpretação nele perfilhada:
«Entendemos, pois, que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional não deveria ter sido rejeitado, já que, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das normas ínsitas no art. 400.º, n.º 1, als. e) e f) do Código Processo Penal, na interpretação acolhida na decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça seria perfeitamente de admitir já que havia sido alegado no requerimento de interposição que a questão da inconstitucionalidade de tais normas não fora suscitada anteriormente porquanto a interpretação dada
às mesmas na decisão recorrida fora de todo imprevisível, não podendo o recorrente, razoavelmente, contar com a respectiva aplicação.»
Pelo despacho de fls. 9, o relator no Supremo Tribunal de Justiça manteve a decisão de não admissão e deu conta de que “neste Supremo Tribunal de Justiça existe já alguma jurisprudência (que identifica) no sentido” da interpretação adoptada no acórdão de que foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
Notificado para o efeito, o Ministério Público (junto do Supremo Tribunal de Justiça ) pronunciou-se no sentido de que o recurso de constitucionalidade deveria ser admitido, porque “de facto dificilmente poderá sustentar-se que de todo previsível era que naquela douta decisão de 27.03.03 deste Supremo Tribunal a mesma fosse acolhida”.
4. Subidos os autos ao Tribunal Constitucional, o Ministério Público, notificado para o efeito, observou o seguinte:
«Afigura-se que – no caso dos autos – não seria exigível ao recorrente a suscitação antecipada da inconstitucionalidade da norma do art. 400º, nº 1, alíneas e) e f) do CPP: na verdade, o recurso, interposto para o Supremo, do Acórdão condenatório da Relação foi, nesta instância, admitido (o que naturalmente não permitiu ao recorrente utilizar o mecanismo da reclamação, nela inserindo então a dita questão de constitucionalidade). E, por outro lado, de acordo com a sua “praxis” uniforme, o STJ não terá procedido à prévia audição do recorrente acerca da “questão prévia” suscitada, inviabilizando-lhe a prevenção da questão de inconstitucionalidade na resposta ao “parecer” do relator – sendo certo que, como parece resultar do teor do acórdão, a fls. 13, o Mº Pº, ao apor o seu “visto”, não teria levantado tal “questão prévia”, pugnando antes pelo
“não provimento” do recurso.
Ora, neste circunstancialismo processual, não nos parece de exigir ao recorrente a suscitação da questão de inconstitucionalidade no próprio requerimento de interposição de recurso para o Supremo, tendo em conta a natureza deste acto – em que se manifesta apenas a vontade de impugnar certa decisão – e a inexistência de uma corrente jurisprudencial, perfeitamente sedimentada, acerca da interpretação normativa em causa.
Consideramos, todavia, que a questão de constitucionalidade suscitada será de considerar manifestamente infundada, face ao entendimento jurisprudencial reiterado que considera não poder inferir-se do princípio constitucional das garantias de defesa a consagração de um triplo grau jurisdição quanto às decisões condenatórias, permitindo um irrestrito acesso ao Supremo, o que igualmente determinará a improcedência da presente reclamação.»
Notificado para se pronunciar sobre a “manifesta falta de fundamento” suscitada pelo Ministério Público, o recorrente opôs (transcrevendo parte do Acórdão n.º 597/2000, relativo a uma norma sobre irrecorribilidade, mas de conteúdo diferente, e publicado no Diário da República, II série, de 25 de Janeiro de 2001) que “a dimensão normativa acolhida pela decisão recorrida impõe uma distinção arbitrária ou injustificada quanto ao exercício do direito de recurso que o n.º 1 do artgº 32º da C.R.P. abre ao arguido, em conjugação com a garantia de acesso aos tribunais (que a todos é assegurado para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (n.º 1 do artg. 20º da C.R.P.)”.
O recorrente sustenta que, na perspectiva das garantias de defesa do arguido, é 'arbitrário ou, pelo menos, injustificado” não fazer a distinção entre “pena aplicável” e “pena aplicada”; e, transcrevendo parte do voto de vencido aposto ao acórdão recorrido, observa que “de outro modo, a recorribilidade das decisões condenatórias da Relação proferidas em recurso ficaria, de certa maneira, entregue ao seu próprio alvedrio (...)”.
5. Cumpre conhecer da reclamação.
Em primeiro lugar, e no que diz respeito à questão de saber se pode ou não considerar-se oportunamente suscitada a inconstitucionalidade, entende-se que não era efectivamente exigível ao reclamante que antecipasse a interpretação que o acórdão recorrido adoptou para as normas questionadas.
Desde logo, porque não corresponde a uma interpretação que seja sistematicamente seguida; a divergência de interpretações é, aliás, demonstrada pela circunstância de o recurso ter sido admitido pelo Tribunal da Relação. Para além disso porque, como observa o Ministério Público, esta admissão impediu o recorrente de, em reclamação, ter suscitado a inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Considera-se, portanto, que a inconstitucionalidade foi oportunamente suscitada.
6. Em segundo lugar, há que analisar o fundamento apontado pelo Ministério Público para a “improcedência da presente reclamação”: a manifesta falta de fundamento do recurso de constitucionalidade.
Ora é exacto que o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou que
«no nº 1 do artigo 32º da Constituição consagra-se o direito ao recurso em processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas a Constituição já não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso, ou a um triplo grau de jurisdição. O Tribunal Constitucional teve já a oportunidade para o afirmar, a propósito dos recursos penais em matéria de facto: “não decorre obviamente da Constituição um direito ao triplo grau de jurisdição, ou ao duplo recurso” (Acórdão nº 215/01, não publicado)».
Esta afirmação, feita no Acórdão n.º 435/01 (disponível, tal como o Acórdão n.º
215/01, em www.tribunalconstitucional.pt ) foi proferida justamente a propósito da apreciação da alegada inconstitucionalidade da “norma do artigo 400º, nº1, alínea f) do CPP', tendo o Tribunal Constitucional concluído, tal como, aliás, já fizera nos Acórdãos n.ºs 189/01 e 369/01 (também disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt) que “ não viola o princípio das garantias de defesa, constante do artigo 32º, nº1 da Constituição”.
A verdade, todavia, é que a apreciação então realizada tomou sempre como objecto tal norma interpretada no sentido de que a mesma se “refere (...) claramente à moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8 anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso de infracções que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de acórdão condenatórios das relações que confirmem a decisão de primeira instância” (cit. Acórdão n.º 189/01).
Sucede, porém, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão de constitucionalidade que o ora reclamante pretende que seja apreciada no recurso que interpôs, no Acórdão n.º 451/03 (também disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), nos seguintes termos:
«É certo que a interpretação normativa agora em causa não coincide com a que foi apreciada no Acórdão n.º 189/01 - neste a questão tinha directamente a ver com a pena aplicável em caso de concurso de infracções.
A verdade, porém, é que, no confronto com o artigo 32º n.º 1 da Constituição, a questão da conformidade constitucional da interpretação normativa adoptada no acórdão recorrida se coloca nos mesmos termos.
Com efeito, a resolução da questão de constitucionalidade passa por saber quais os limites de conformação que o artigo 32º n.º 1 da CRP impõe ao legislador ordinário, em matéria de recurso penal.
E a resposta é dada no Acórdão n.º 189/01 no sentido de não haver vinculação a um triplo grau de jurisdição e de ser constitucionalmente admissível uma restrição ao recurso se ela não for desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.
Ora, não podendo o Tribunal Constitucional censurar as interpretações normativas que, no estrito plano do direito infraconstitucional, são feitas nas decisões recorridas, a inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de uma decisão proferida em 2º grau de jurisdição que confirma a condenação decretada em 1ª instância, - quando esse recurso é apenas interposto pelo arguido e, por força da proibição da reformatio in pejus, o STJ nunca poderá impor pena superior a 7 anos de prisão -, afigura-se racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o STJ com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação.
Tanto basta para entender que a questionada interpretação normativa não incorre em violação do artigo 32º n.º 1 da Constituição.
(...)
No caso, o que sucedeu foi que o tribunal 'a quo' integrou no conceito de 'pena aplicável' constante da norma do artigo 400º n.º 1 alínea f) do CPP, também, as situações em que, confirmada pela relação a decisão condenatória proferida em 1ª instância e sendo o recurso apenas interposto pelo arguido, nunca o STJ pudesse aplicar pena superior a oito anos de prisão».
O Tribunal entendeu, ainda, que tal «limitação do direito de recurso, resultante da interpretação normativa em causa, não era desrazoável, arbitrária ou desproporcionada, uma vez que era ainda a preocupação, fundada e aceitável, de, garantido já o direito de recurso, não assoberbar o STJ com a resolução de questões de menor gravidade (assim se compreendendo a inaplicabilidade, no caso, de pena de prisão superior a 7 anos de prisão, quando um tribunal superior já confirmou a decisão condenatória) que se vislumbrava naquela limitação.»
7. Sendo, portanto, manifestamente infundado o recurso de constitucionalidade interposto, indefere-se a reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 22 de Outubro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Luís Nunes de Almeida