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Proc. n.º 739/02 Plenário Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional:
Na acção de impugnação das deliberações de 21 de Setembro de 2002 do Comité Central do Partido Comunista Português - pelas quais foram disciplinarmente punidos e cuja declaração de nulidade pediram neste Tribunal nos termos do artigo 103º-D da LTC -, os autores A., B. e C., inconformados com o acórdão da Secção que decretou a total improcedência do pedido, recorrem para o Plenário do Tribunal formulando na respectiva alegação as conclusões que seguidamente se transcrevem:
1. O Acórdão recorrido reconhece que os Estatutos dos Partidos políticos, em geral - e do PCP, em particular - não são pródigos em matéria de garantias dos militantes;
1.1. E vai mais longe, quando entende que os Artigos 60° e 62° dos Estatutos do PCP se não podem traduzir apenas na pronúncia de factos a imputar aos Recorrentes;
1.2. Para o Acórdão recorrido é incontornável, para a efectivação dos direitos de defesa e respeito por certas exigências a cumprir na peça acusatória, designadamente: a) assentar em factos concretos identificados e identificáveis; b) proporcionar a possibilidade de oferecer a prova.
1.3. E, além disso, é imprescindível que a deliberação punitiva seja motivada com indicação dos factos e do seu enquadramento jurídico-disciplinar;
1.4. Estas exigências emergem, diz o Acórdão recorrido, dos comandos constitucionais pertinentes contidos, também, no Art. 32°, n.º 10 da CRP;
1.5. É neste quadro, que expressamente é invocado, que o Acórdão recorrido declara que apreciará os vícios arguidos pelos Recorrentes;
2. Diz também o Acórdão que a competência exclusiva para punir só cabe ao Comité Central quando se trate de punir um dos seus membros, o que contraria todas as anteriores decisões do Tribunal Constitucional e o Art. ----- dos Estatutos deste Partido;
3. Apesar da fundamentação identificada em 1. a 1.5 destas Conclusões, o Acórdão recorrido afirma que os Recorrentes agiram numa fase de pugna eleitoral e deram dimensão pública às suas posições políticas, emitindo um juízo de censura sobre tais condutas por terem ocorrido à margem da estrutura interna do PCP;
3.1. O exame do Acórdão recorrido abandonou os critérios que enunciou em
1. e foi antes verificar da bondade deontológica dessas condutas, à luz do circunstancialismo referido em 3.;
3.2. A contradição entre as duas valorações é ostensiva: uma legal e constitucional, outra meramente deontológica;
3.3. Desta contradição entre os motivos e a decisão há-de resultar a nulidade do Acórdão, ex vi do Art. 668°, n.º 1, alíneas c) e d), 2ª parte do C.P.C.;
4. O Acórdão recorrido pondera, segundo critérios exteriores ao pedido, a conduta de cada um dos Recorrentes, dando como adequados, justos, proporcionais, os juízos de censura emitidos pela Direcção do Partido Recorrido;
4.1. Ao eleger tais critérios como lógica e cronologicamente prioritários face aos critérios jurídico-constitucionais,
4.2. E ao dar por assentes conclusões de factos que se não provaram, o Acórdão recorrido viola o Art. n.º 51°, n.º 5 e o Art. 37°, n.º 1 da C.R.P.;
4.3. E, ao aceitar a bondade das sanções em homenagem a critérios de plausibilidade, a violação dos Arts. 32°, n.º 10, 51 , n.º 5 e 37°, n. 1, todos da C.R.P., é evidente;
4.4. E, ao conferir definitividade ao subjectivismo das imputações da Direcção do Partido Recorrido, foram violadas as mesmas normas da Lei Fundamental;
5. O que verdadeiramente está em causa nestes autos é o apuramento da conduta dos Recorrentes e do Partido Recorrido, ou seja, apreciar se as imputações se estribam em factos, se o princípio da prova e os direitos de defesa foram violados e se as sanções se acham adequadamente motivadas e suportadas em factos e circunstâncias de tempo, lugar e modo e, acima de tudo, se as deliberações punitivas se suportam em normas legais e constitucionais;
5.1. Daí que o abandono deste iter valorativo e cognoscitivo pelo Acórdão recorrido e a eleição exclusiva das regras da plausibilidade, adequação e proporcionalidade, só por si, arrasta a violação dos já citados Arts. 51°, ns. 1 e 5 e 37°, n.º 1 da C.R.P., sem esquecer as garantias, igualmente violadas, do Art. 32°, n.º 10, também da C.R.P.;
6. A deliberação que puniu os AA não vinha assinada.
6.1. Tal omissão é geradora da nulidade ex vi do Art. 668°, n.º 1, alínea a) do C.P.C. e/ou do Art. 379°, n.º 1, alínea a) e Art. 374°, n.º 2, ambos do C.P.P.;
6.2. O Acórdão recorrido entendeu que se tratava de uma mera irregularidade, o que se não admite;
6.3. Na verdade, ou tal requisito é dispensável (e nem sequer é uma irregularidade) ou não o é e, neste caso, a nulidade é incontornável;
7. Relativamente ao Recorrente A., o 'comando' contido a págs. 7 da Decisão Punitiva (que apenas tinha 6 páginas) envolve a destruição do direito à prova, pois que se demonstra que a decisão disciplinar seria a mesma fosse qual fosse a prova testemunhal produzida;
7.1. Aliás, as testemunhas oferecidas não foram inquiridas sobre quaisquer factos;
7.2. Estas violações determinam o afrontamento do Art. 32°, n.º 10 da CRP;
8. Acresce que as deliberações que se consubstanciaram nas sanções aplicadas aos Recorrentes não continham (nem contêm) quaisquer factos, nem eram acompanhadas pelas circunstâncias de tempo, lugar e modo, que habilitassem os Recorrentes a oferecer uma adequada e proporcional defesa;
8.1. O Acórdão recorrido não entendeu que esta “vaguidade” e generalidade afrontassem o Art. 32°, n.º 10 da C.R.P., o que arrastou consigo a violação deste preceito pelo próprio Acórdão;
9. A deliberação punitiva que atingiu o Recorrente C., para além de todos os vícios, também não continha qualquer norma sancionadora, nem a identificava;
9.1. Esta omissão não se compadece com a motivação que o Acórdão declarou ir adoptar para examinar a conduta do Partido Recorrido, nem sequer se adequa aos direitos do Recorrente;
9.2. Daí a nulidade do Acórdão ex vi do Art. 668°, n.º 1, alínea c) do C.P
.C. e a sua ilegalidade por afrontamento ao Art. 32°, n.º 10 da C.R.P . Nestes termos e nos mais de direito, deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, consequentemente: a) Declarada a nulidade do Acórdão recorrido pelos indicados fundamentos; b) Se assim não se entender, deve o mesmo ser revogado e, consequentemente, ser julgada procedente, por provada, a acção de impugnação, com todas as legais consequências para que se faça justiça.
O Réu ora recorrido contra-alegou em defesa do julgado.
Importa decidir, nos termos referidos nos artigos 103º-C n. 8 (103º-D n. 3) da Lei do Tribunal Constitucional e 690º n. 1 do Código de Processo Civil, dando como assentes os factos apurados pela Secção.
Far-se-á, liminarmente, uma breve referência ao tema tratado à cabeça da alegação. É que, sob a designação de “questão prévia”, os Recorrentes começam por tecer um conjunto de considerações a propósito do prazo de 5 dias - que escrupulosamente observaram - dentro do qual é obrigatório, nos termos do n. 8 do artigo 103º-C da LTC, juntar aos autos as suas alegações de recurso; em seu entender, a imposição desse prazo coloca-os “muito longe do direito a um processo justo e equitativo”, constituindo mesmo “uma ostensiva violação do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”.
O Tribunal não vai, porém, tratar desta matéria.
É que verdadeiramente os Recorrentes não propõem qualquer “questão”, ao Tribunal. Com efeito, nada foi requerido quanto ao assunto - nenhuma conclusão juridicamente útil ou operante é extraída, por exemplo, da alegada violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem -, sendo certo que o tema nem sequer foi levado às conclusões da alegação. Ora a função deste Tribunal, como a dos demais, é a de julgar pretensões regularmente deduzidas em juízo mediante um expresso pedido de resolução do conflito. Na ausência de tais pressupostos, nada haverá que decidir.
Assim, o efeito que, através dessas considerações preliminares, os Recorrentes pretendem obter será unicamente o de alertar o Tribunal para a circunstância de terem redigido apressadamente o seu articulado, facto que - admitem - se terá repercutido “na ponderação, na profundidade e até no rigor” da sua alegação de recurso. Nada mais se visaria, portanto, senão explicar antecipadamente a ocorrência de algumas deficiências de que porventura possa enfermar a peça em questão.
E é nestes termos que o Tribunal lê tais afirmações. Trata-se de um mero desabafo: genuíno, sem dúvida, mas processualmente irrelevante.
Passemos, por isso, à análise do recurso.
Os Recorrentes censuram o aresto por via da invocação de vícios de natureza formal - assim se referindo à pretensa nulidade da decisão - a par de denúncias de erros de julgamento e até de alguns comentários, um tanto inesperados, que mais parecem visar o Tribunal que o proferiu do que o acórdão de que recorrem.
Alega-se, a breve trecho, que o acórdão contém “uma contradição entre os motivos e a decisão” determinante da sua “nulidade”, conforme o artigo 668º n.1 alíneas c) e d) 2ª parte do Código de Processo Civil.
Ora, nos termos dos preceitos invocados pelos Recorrentes, a nulidade de decisão judicial ocorrerá quando os respectivos “fundamentos estejam em oposição com a decisão” (alínea c) do n. 1 do artigo 668º), ou quando o tribunal “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (2ª parte da alínea d) do n. 1 do citado preceito); o primeiro caso provoca a ininteligibilidade da decisão, pois a argumentação adoptada apresentar-se-ia em contradição com a decisão; é a incongruência lógico-formal que é aqui sancionada, pois a lei não permite que o destinatário da decisão permaneça numa dúvida insanável quanto ao verdadeiro sentido da decisão ou da respectiva fundamentação. Na segunda hipótese, estaríamos perante a circunstância de o tribunal ter apreciado (leia-se, decidido) questão de que não podia conhecer.
Todavia, pode desde já adiantar-se que manifestamente o acórdão recorrido não padece destes vícios.
Na verdade, não existe na fundamentação adoptada qualquer contradição com o veredicto de improcedência da acção. Pelo contrário - tendo obviamente em conta a complexidade da matéria em causa, - o acórdão discorreu por forma inteligível e sobretudo compatível com a decisão adoptada. Não existe qualquer desvio lógico que intrinsecamente afecte a decisão; assim como é evidente que a decisão não ultrapassou a fronteira da matéria de que lhe era lícito conhecer, como, mais à frente, vai frisar-se.
Mas a crítica é mais vasta e, sob a capa da apontada nulidade, atinge o próprio julgamento da questão, pois também é imputado ao acórdão um desvio na respectiva linha argumentativa em choque com jurisprudência recente deste Tribunal, cujo resultado, se não determinar um vício gerador de nulidade, inquinaria o aresto com um erro de julgamento.
Designadamente quanto à competência disciplinar do órgão sancionador, diz-se no acórdão recorrido:
«Sustentam os AA. que o órgão competente para impor quer a pena de expulsão, quer a de suspensão, seria - e só - o Comité Central, pelo que as deliberações punitivas enfermam de incompetência Mas sem razão, como se passa a demonstrar. Tendo em conta que nenhum dos AA. era membro do Comité Central – caso em que a competência deste órgão para punir disciplinarmente é exclusiva, nos termos do artigo 64º dos Estatutos do PCP –, é o artigo 63º destes Estatutos que regula a competência para aplicar sanções disciplinares. De acordo com o n.º 1 deste artigo são igualmente competentes para aplicar sanções disciplinares o próprio organismo a que os membros sancionados pertencem, o organismo dirigente da organização a que esses membros pertencem
,“ou outro organismo de responsabilidade superior”. Aplicadas as penas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do mesmo artigo 63º
(entre as quais, a “suspensão da actividade partidária por período máximo de 1 ano” – alínea c)) estão elas sujeitas a ratificação pelo organismo superior
àquele que aplica a sanção – artigo 63º n.º 3. Ora, no caso do autor C., sancionado com a medida de suspensão da actividade partidária por 10 meses, o Secretariado do Comité Central do PCP, organismo de responsabilidade superior (cfr. artigo 26º dos Estatutos) tinha competência para proferir uma tal decisão punitiva, competindo ao Comité Central, como órgão superior àquele que aplicou a sanção, ratificar a sanção. E foi o que aconteceu através das deliberações de 19/7/02 do Secretariado do Comité Central (punição) e de 21/09/02 do Comité Central (ratificação). No caso dos AA. A. e B., punidos com a pena de expulsão, competia igualmente ao Secretariado do Comité Central, como organismo de responsabilidade superior, aplicar uma tal medida. E nos termos do n.º 3 do artigo 63º dos Estatutos a ratificação dessa medida competia ao Comité Central ou ao organismo executivo em que ele tivesse delegado essa competência (ou seja a Comissão Central de Controlo, nos termos da Resolução de 3 e 4 de Fevereiro de 2001, cuja cópia se encontra a fls. 29 dos autos apensos (Pº 559/02 – I vol)). Ora, os AA. A. e B. foram sancionados por deliberações do Secretariado do Comité Central, ratificadas pela Comissão Central Controlo, em estrita obediência às citadas normas estatutárias. Não se verifica, assim, a alegada incompetência do órgão decisor.»
Esta decisão não merece qualquer censura.
Os Recorrentes discordam, porém, do decidido.
A crítica formulada não é clara, pois não é explicitado o erro de que a decisão enfermará. Isto é: os Recorrentes não revelam onde, em que trecho, discordam do decidido quanto a esta matéria, não identificam as normas jurídicas que a decisão terá violado, não apontam as normas que entendem ser aplicáveis, não revelam o sentido com que, em seu entender, as normas aplicáveis deveriam ter sido interpretadas; no entanto, é nestas etapas que se constrói uma genuína alegação de recurso jurisdicional; mais, é mediante a alegação destas circunstâncias que a lei prevê que, no processo, se teça uma censura hábil a obter a alteração do julgado, conforme resulta claramente do disposto no artigo
690º n. 2 do Código de Processo Civil.
O que os Recorrentes aqui dizem é algo diverso, escolhendo uma censura extrínseca à própria decisão recorrida, pois se limitam a afirmar que, sendo verdade o que o aresto afirma sobre a competência disciplinar do comité central e do respectivo secretariado, então “não se alcança a bondade” de um outro acórdão deste Tribunal proferido sobre o mesmo assunto. E logo concluem que a
“contradição é ostensiva”.
“A contradição”, nesta perspectiva, proviria da oposição entre a decisão recorrida e essa outra. Ora, será neste ponto que os Recorrentes descortinam a alegada nulidade, por ofensa da alínea c) do n. 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, pretendendo - contra as regras - que o tribunal de recurso proceda a uma análise de uma decisão já transitada em julgado, que não à decisão recorrida?
Qualquer que seja a resposta adequada, uma coisa é certa: a decisão, nesta parte, não padece de nulidade, nem enferma de erro de julgamento: deve, por isso, manter-se.
Acusa-se, depois, o acórdão recorrido de proceder a uma ponderação, “segundo critérios exteriores ao pedido”, da conduta de cada um dos Recorrentes, dando como adequados, justos, proporcionais, os juízos de censura emitidos pela direcção do Partido recorrido; além disso, “ao eleger tais critérios como lógica e cronologicamente prioritários face aos critérios jurídico-constitucionais e ao dar por assentes conclusões de factos que se não provaram,” o acórdão recorrido violaria os artigos 51° n. 5 e 37° n. 1 da C.R.; e, “ao aceitar a bondade das sanções em homenagem a critérios de plausibilidade,” estaria a violar os artigos
32° n. 10, 51º n.º 5 e 37° n. 1, também da C.R.; as mesmas disposições teriam sido violadas pela decisão em causa “ao conferir definitividade ao subjectivismo das imputações da Direcção do Partido Recorrido”.
Mais à frente, diz-se ainda que o acórdão errou na análise do pedido com adopção “exclusiva das regras da plausibilidade, adequação e proporcionalidade,” o que determinaria a violação dos já citados artigos 51° n.s 1 e 5 e 37° n. 1 da C.R., “sem esquecer as garantias, igualmente violadas, do artigo 32° n. 10, também da C.R.”
Estas críticas têm a ver com a alegação de que o aresto formula “um juízo de censura exclusivamente deontológico que se extravasa do que se pediu e se impugnou (o que se censura) e distorce a apreciação ontológica de um lado e constitucional do outro, que é o único munus do Tribunal”.
A crítica, no seu todo, não é de fácil apreensão, designadamente quando se estende aos poderes de cognição do tribunal recorrido. Além disso, a parte útil radica manifestamente em equívoco: o Tribunal não teceu qualquer censura ao comportamento político-partidário dos Autores ora recorrentes e teve o cuidado de não qualificar as opções disciplinares do Réu ora recorrido.
Depois, e sem esquecer que nos termos do n. 8 do artigo 103º-C LTC o presente recurso é restrito à matéria de direito, nunca poderá acusar-se - com pertinência - o Tribunal de ter optado por uma via de apreciação da matéria diferente daquela que era proposta pelo requerente. Parece ser de sublinhar este ponto, pois apesar de nebulosa, a crítica formulada toca nesta área: quando o Tribunal Constitucional exerce a competência contenciosa que lhe está atribuída pelo n. 1 do artigo 103º LTC, não está vinculado a apreciar o vício imputado à deliberação partidária apenas nos termos ou pelo caminho invocados pelo requerente, pois deve apreciar a regularidade do acto impugnado, quanto ao ponto questionado, de acordo com o bloco de legalidade pertinente, em cuja escolha prevalece a regra jus novit curia, desde sempre afirmada como princípio jurisdicional e entre nós acolhida no artigo 664º do Código de Processo Civil.
O que o Tribunal disse - aparentemente sem que tenha sido convenientemente compreendido - é que as deliberações punitivas em causa se não mostravam desadequadas ou desproporcionadas ou ilegais ou ofensivas de princípios constitucionais.
Este é, de resto, um dos pontos-chave da alegação de recurso, pois pretende-se demonstrar que o acórdão se encaminhou para a solução errada por um caminho oposto ao que previamente anunciara como sendo o adequado; e com isto, embora de modo difuso, invoca-se não só erro no julgamento da questão, como uma causa de nulidade do acórdão.
Mas a alegação não é certa e arranca mais uma vez de um pressuposto errado.
Note-se, em primeiro lugar, que jamais a sua procedência arrastaria a nulidade do acórdão por contradição com os fundamentos ou por excesso de pronúncia; na verdade, não existe uma contradição determinante de ininteligibilidade da própria decisão e não se verifica o já falado excesso de pronúncia, vício que se reportaria a uma decisão excessiva (maior objecto ou diferente objecto) e não a uma argumentação que ultrapassa a fundamentação invocada. Por outro lado, quando os Recorrentes estão a censurar o acórdão por ter dado por certos determinados factos, estão eles, aí sim, a exceder, como se viu, o limite de censura que lhes está reservado no presente recurso, no qual o tribunal ad quem tem que aceitar a matéria de facto dada por provada na Secção - citado n. 8 do artigo 103º-C LTC.
O acórdão começou por traçar o quadro da evolução legislativa que determinou a actual redacção dos artigos 103º-C e seguinte da LTC, os mesmos que os Recorrentes invocam como fundamento da sua acção, de modo a delimitar o campo dentro do qual se poderá mover a pretensão e os parâmetros em que deve apoiar-se o Tribunal ao decidir.
Ora, independentemente do que constar a este propósito, de modo específico, nos estatutos de cada partido, a transposição do princípio democrático para a vida interna dos partidos impõe que o núcleo essencial das garantias de defesa constantes do artigo 32º n. 10 da Constituição se estenda aos seus filiados quando alvo de procedimento disciplinar, designadamente quanto à necessidade de concretização de uma acusação fundamentada e na exigência de oportunidade de defesa do acusado.
Na análise concreta dos vícios imputados às deliberações punitivas, dos quais se destaca a alegada ilegítima punição da livre opinião manifestada pelos Recorrentes enquanto membros do Partido Comunista Português, o acórdão apreciou a legalidade das deliberações disciplinares à luz da conjugação dos factos apurados face àquela dupla vertente em que se incluem os direitos dos Recorrentes e a liberdade de autoconformação e de disciplina interna do partido em causa.
Dessa análise resultou a convicção de que o juízo sobre a não desrazoabilidade dos actos punitivos não visaria “(...) substituir o juízo do R. pelo do Tribunal, em termos de neste se poder sequer vislumbrar, no quadro aberto a diferentes opções que o preenchimento de cláusulas gerais permite, um julgamento positivo sobre o mérito das soluções punitivas decididas, mas apenas, nos termos acima equacionados, de aferir da sua racionalidade e da sua proporcionalidade.”
Certo é que nos parâmetros de “racionalidade” e de “proporcionalidade” a que o citado texto faz referência, cabe (dir-se-ia, necessariamente) o pensamento legal, as normas constitucionais, legais e estatutárias convocadas no próprio aresto ao tratar a questão; é assim inoportuno acusar a decisão de não incluir estas condicionantes no julgamento da questão que lhe foi colocada.
Na verdade, a questão central a resolver nesta causa - deficientemente equacionada pelos AA como situada, em exclusivo, no âmbito das garantias de liberdade de expressão e de pensamento - reside precisamente na compatibilização de dois direitos fundamentais aqui conflituantes: por um lado o direito de liberdade de expressão e de pensamento que é genericamente garantido aos cidadãos, por outro, o direito de liberdade de criação, de autoconformação e de disciplina interna das organizações político-partidárias. Por isso se impõe, nessa tarefa de compatibilização, o apelo ao critério relacionado com o princípio da proporcionalidade da solução, critério que, como acima se disse, toma em linha de conta as normas em confronto, os bens que protegem e os limites que não é possível ultrapassar sem compressão intolerável dos direitos em causa, face às circunstâncias do caso.
E quanto a estas circunstâncias convém recordar, por exemplo, alguns dos factos tidos em conta na decisão recorrida quanto à forma pela qual foram expressas críticas à direcção do PCP, publicamente e fora das instâncias partidárias adjectivada de “estalinista e algo terrorista na perseguição da ala renovadora” de ter um espírito “inquisitorial” e “vesgo”, de actuação “intolerante e sectária”, e de ser constituída por um “grupo” que “assaltou a direcção”, associado a “repugnantes” “práticas de natureza fraccionária”. Aliás, o Tribunal teve a preocupação de deixar claro que a apreciação se fazia apenas no quadro de “um controlo do arbítrio ou do excesso”; como se lê na decisão recorrida, “o controlo de aplicação de regras estatutárias como as disciplinares para além da fase factual e das regras de processo aplicáveis poderá ter apenas o alcance de um controlo de plausibilidade, isto é, do arbítrio”.
Assim, mais à frente, depois de recordar as afirmações públicas dos Recorrentes, o Tribunal concluiu, simplesmente, que tudo isto tornava “plausível (não desproporcionado ou não arbitrário) o citado juízo valorativo do órgão sancionador” (e, novamente mais à frente, concluiu apenas que “não se configura como arbitrário o juízo ...”).
O acórdão não trilhou, portanto, uma via proibida para solucionar a questão e não errou no julgamento que fez, sendo improcedente a alegação que a tal se refere.
Afirma-se, depois, que o acórdão errou ao não valorizar a circunstância de a deliberação que puniu os AA não estar assinada.
Mais uma vez, sem qualquer razão.
Diz-se no aresto - a propósito da invocada falta de assinatura das deliberações punitivas que, “por alegada analogia com o disposto no artigo 668º n.º 1 alínea a) do CPC, geraria a sua nulidade” - que a apontada omissão se concretiza na notificação das referidas deliberações, uma vez que apenas o ofício de remessa se mostrava assinado. Mas logo se esclareceu que “do processo constam (fls. 232 a 240) as actas das reuniões do Comité Central de 20 e 21 de Setembro de 2002, devidamente assinadas, em que foram tomadas as deliberações impugnadas, nelas se integrando as próprias propostas de decisão, não se suscitando qualquer dúvida - nem os AA a suscitam - de que essas deliberações foram tomadas por aquele órgão e com o exacto teor do que foi comunicado aos impugnantes.”
E por isso se concluiu, com toda a propriedade, que essa falta se configurava como “mera irregularidade das notificações, sem qualquer relevo na validade substancial das deliberações comunicadas, não tendo qualquer sentido a analogia com o vício da falta de assinatura das sentenças e a nulidade que gera.”
Seguidamente reprova-se a solução que o aresto deu à circunstância de,
“relativamente ao Recorrente A., o 'comando' contido a págs. 7 da Decisão Punitiva (que apenas tinha 6 páginas) envolve a destruição do direito à prova, pois que se demonstra que a decisão disciplinar seria a mesma fosse qual fosse a prova testemunhal produzida”, além de que “as testemunhas oferecidas não foram inquiridas sobre quaisquer factos”, o que violaria o artigo 32° n. 10 da CRP”.
Mas tal como se disse no aresto em causa,
«Não fazendo parte da deliberação punitiva, não deixa de se reconhecer que o que consta da referida pág. 7 da notificação poderia gerar uma ofensa grave aos princípios gerais do direito sancionatório, no ponto em que ela revelaria um pré-juízo sobre a relevância da prova que o autor A. pretendia fazer com as testemunhas que oferecera. Trata-se, claramente, de uma “indicação” – que, desde logo se não pode afirmar, como os AA pretendem, ter sido feita por órgão diverso daquele que proferiu a deliberação punitiva (o Secretariado do Comité Central) – para a elaboração material da deliberação punitiva (ou do seu projecto) e que prevê duas alternativas, consoante comparecessem, ou não, as testemunhas indicadas, sendo que, na primeira hipótese, registada a ocorrência, não se alteravam os considerandos anteriores e a decisão de punição. A verdade é que estes elementos são insuficientes para dar como demonstrado o que os AA. pretendem. E isto porque tais elementos não são incompatíveis com o facto de a indicação da inserção do registo da comparência nos termos referidos – como veio a acontecer
– não prejudicar, para a hipótese de os depoimentos que viessem a ser feitos o justificarem, a sua efectiva ponderação na deliberação final. O facto de a deliberação punitiva ter sido redigida, nos termos, digamos, propostos, só significa que, considerando a prova já efectuada e os termos da defesa apresentada, não foram considerados relevantes aqueles depoimentos. E não pode deixar de se reconhecer, analisando os mesmos depoimentos, que eles se limitam a meros juízos opinativos ou abonatórios da conduta partidária do autor A., sem pôr directamente em causa os factos que vinham imputados. Mas isto prende-se já com o segundo vício arguido respeitante, como se disse, aos termos dos depoimentos em causa. Ora, neste aspecto, competiria ao autor A. ter indicado os factos concretos a que oferecia a prova testemunhal, sendo certo que, nem agora, os AA dizem quais seriam esses factos. Nestas circunstâncias, não vindo impugnada a genuinidade dos autos de inquirição, nem alegado que as testemunhas tenham sido impedidas de se pronunciarem de outro modo, terá que se aceitar como validamente prestada a prova testemunhal, sem agravo para os direitos de defesa do autor A..»
Devendo notar-se que em causa está apenas matéria de direito, nada há a censurar a este julgamento.
Acrescenta-se ainda, como nota de censura ao acórdão recorrido, que “as deliberações que se consubstanciaram nas sanções aplicadas aos Recorrentes não continham quaisquer factos, nem eram acompanhadas pelas circunstâncias de tempo, lugar e modo, que habilitassem os Recorrentes a oferecer uma adequada e proporcional defesa”, mas que apesar disso, “o acórdão recorrido não entendeu que esta vaguidade e generalidade afrontassem o artigo 32° n. 10 da C.R.”
Devendo, mais uma vez, começar-se por recordar que o presente recurso é restrito
é restrito à matéria de direito, pelo que é inoportuno o debate sobre a correcção com que foram fixados factos na decisão recorrida, cumpre no entanto salientar que esta decisão contém o seguinte trecho que certeiramente responde à crítica ora formulada:
«Não pode, contudo, esquecer-se as características próprias do processo disciplinar em causa e o âmbito político-partidário em que ele decorre. Neste âmbito, as faltas disciplinares não se identificam apenas por factos, considerados na sua materialidade naturalística; o relevo desses factos como infracções à disciplina partidária deriva, ainda, na perspectiva dos órgãos competentes do partido, designadamente, do sentido que lhes é atribuído, da finalidade que prosseguem, das motivações que lhes subjazem, dos resultados que determinam. E, assim sendo, estando em causa interesses que se expressam em conceitos abstractos, como sejam a “imagem”, o “prestígio”, a “unidade”, a
“coesão política, ideológica e orgânica”, a “combatividade” do partido político em causa, que se consideram afectados pela conduta dos militantes, inevitável é que as acusações, para além da necessária identificação de factos, se recheiem de juízos de valor. Mas tal não afecta os direitos de defesa dos visados, antes lhe permitindo, também, questionar tais valorações, sendo certo que, das desenvolvidas defesas apresentadas pelos ora impugnantes, resulta claramente que eles bem compreenderam o que, disciplinarmente, lhes era imputado.»
Improcede, pois, tal censura.
Finalmente, suscita-se a circunstância de a deliberação punitiva que “atingiu” o Recorrente C., “para além de todos os vícios”, também não conter nem identificar qualquer norma sancionadora, pois, alega-se, tal omissão “não se compadece com a motivação que o Acórdão declarou ir adoptar para examinar a conduta do Partido Recorrido, nem sequer se adequa aos direitos do Recorrente”.
Também aqui sem razão.
A questão foi breve mas proficientemente tratada ao afirmar-se que “tal como resulta da matéria dada como provada, verifica-se que do relatório [de] que faz parte a resolução do Secretariado do Comité Central que puniu o autor C. constam as normas estatutárias violadas; o mesmo acontece com o relatório que integra a deliberação ratificativa do Comité Central, uma vez que nele se remete para as disposições indicadas na deliberação punitiva.”
Improcedem, em consequência, todas as conclusões do recurso.
Termos em que se decide negar-lhe provimento, confirmando o acórdão recorrido e o julgamento, nele contido, de improcedência da acção proposta pelos Autores ora recorrentes.
Sem custas.
Lisboa, 08 de Julho de 2003
Carlos Pamplona de Oliveira Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Maria Helena Brito Mário José de Araújo Torres Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão por entender que as sanções disciplinares aplicadas pelo Partido Comunista Português aos seus militantes e ora recorrentes são desproporcionadas. Tal como se evidenciou já no Acórdão nº 185/2003, os partidos políticos gozam de amplos poderes de autogoverno, em homenagem ao princípio democrático (artigo 2º da Constituição). Mas é o próprio princípio democrático que impõe, igualmente, que os partidos se rejam pelos princípios da organização e gestão democrática e da participação de todos os seus membros, como expressamente determina o nº 5 do artigo 51º da Constituição. Deste modo, a organização disciplinar interna não pode, nos seus critérios normativos ou decisórios, contrariar princípios fundamentais do direito disciplinar de um Estado de Direito (direito de audição, direito de defesa, exigência de ilicitude e de culpa referida a factos e proporcionalidade das sanções). Por outra parte, sendo irrecusável que os partidos devem assegurar, no seu interior, a livre expressão de opinião, é já concebível que tal expressão seja sujeita a alguns condicionamentos no plano externo. Tal como sublinhou o Tribunal Constitucional, tais condicionamentos não podem ser, todavia, desproporcionados, inadequados ou excessivos: isto é, estão afinal sujeitos ao programa de restrições às limitações de direitos fundamentais decorrentes do nº
2 do artigo 18º da Constituição. Encarando a mesma realidade na perspectiva positiva do direito de expressão de opinião, concluir-se-á que este direito, quando exercido em público por militantes de partidos políticos, está sujeito a restrições, decorrentes dos deveres de solidariedade para com as decisões assumidas pelos órgãos dirigentes dos partidos e dos deveres de respeito pelo programa e pelos estatutos. No entanto, o direito continua a existir. A proibição de que os condicionamentos à expressão livre de opiniões sejam desproporcionados, inadequados ou excessivos tem dois corolários: o primeiro implica que apenas se possa considerar falta disciplinar a conduta de um militante que extravase esses legítimos condicionamentos; o segundo implica que, mesmo havendo falta disciplinar, esta seja julgada de acordo com os mesmos critérios de contenção, não lhe devendo ser aplicada sanção desproporcionada inadequada ou excessiva. Ora, no caso sub judicio, é isso mesmo que se verifica e é por essa razão que eu não posso acompanhar a decisão do presente Acórdão. Com efeito, nem a gravidade
(na perspectiva do ilícito e do dano) nem o grau de censura (na perspectiva da culpa) autorizam a conclusão de que não são desproporcionadas as sanções que foram aplicadas. Na verdade, em nenhum dos casos os recorrentes dirigiram expressas críticas ao Partido Comunista Português no seu conjunto, tomando antes como alvo certos dirigentes, militantes e práticas. Por outro lado, nunca assumiram explicitamente a intenção de se constituírem numa fracção, parecendo antes pretender alterar a orientação e a prática daquele Partido no seu conjunto. Por fim, não se comprovou que tivessem um “dolo de prejuízo” relativamente ao seu partido, apesar de as afirmações que produziram terem sido noticiadas por vários
órgãos de comunicação social e interpretadas como constituindo ilustração de uma guerra interna no Partido Comunista Português. Neste contexto, a aplicação de penas de demissão afigura-se efectivamente desproporcionada. Tal sanção, sublinhe-se, é a mais grave de entre as contempladas pelos estatutos do Partido Comunista Português. Deve corresponder, por conseguinte, aos mais graves e censuráveis ilícitos disciplinares que possam ser cometidos pelos militantes daquele Partido. Ora, não é razoável considerar que os factos imputados aos recorrentes A. e B. se incluam nesse domínio. Igualmente desproporcionada é a sanção aplicada ao recorrente C., embora ela se traduza em dez meses de suspensão. Neste caso, as declarações foram comparativamente menos agressivas, sendo certo que continuaram a referir-se a grupos de militantes que constituem a direcção e nunca ao Partido Comunista Português no seu conjunto. E, no plano subjectivo, pretendem invocar o peso histórico de um militante, não revelando “animus” lesivo do Partido Comunista Português. Assim, apesar de concordar no essencial com os pressupostos gerais do Acórdão nº
185/2003 e também do presente Acórdão relativamente à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional neste tipo de casos, voto vencida a decisão. Faço, com efeito, uma valoração dos factos diversa da do Acórdão recorrido, não limitando um juízo de razoabilidade e não desproporcionalidade à verificação de uma falta disciplinar, mas acentuando que tal apreciação deve incidir sobre a necessidade de conexão da gravidade do ilícito e do grau de culpa com a sanção (já que não há responsabilidade objectiva no campo disciplinar). Uma decisão disciplinar de
âmbito partidário que não atente a estes critérios como seu limite não está legitimada pela liberdade interna de organização de um partido político porque passa a colidir com princípios fundamentais do ilícito disciplinar num Estado de Direito.
É à luz destas razões que sou levada a considerar que as concretas sanções aplicadas aos recorrentes são atingidas já pela proibição de excesso, sendo desproporcionadas e violando as disposições conjugadas dos artigos 37º, nº 1, e
18º, nº 2, da Constituição, as quais têm de ser observadas nos Estatutos dos Partidos Políticos e cuja violação é passível de impugnação perante o Tribunal Constitucional e deve por este ser conhecida, nos termos do nº 1 do artigo
103º-D da Lei nº 23/82, de 26 de Fevereiro. Com efeito, o parâmetro de apreciação de decisões sancionatórias dos partidos políticos pelo Tribunal Constitucional é a violação de regra estatutária ou a violação de lei constitucional, como sucede no caso vertente – e também sucederá, por exemplo quando não forem respeitados os direitos de audiência e defesa previstos no nº
10 do artigo 32º da Constituição.
Maria Fernanda Palma