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Proc. n.º 131/03 Acórdão nº 320/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por acórdão de 16 de Outubro de 2001 (fls. 200 e seguintes), o Tribunal Central Administrativo julgou deserto, por apresentação tardia de alegações, o recurso interposto por A. da sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto que tinha julgado improcedente a impugnação deduzida pela recorrente contra a liquidação da contribuição autárquica do ano de 1995, no montante de 8.273.880$00.
2. Deste acórdão interpôs A. recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (fls. 205). Nas alegações respectivas (fls. 258 e seguintes) formulou as seguintes conclusões:
“1º. O artº 171º do CPT, como todos os demais artigos daquele código que não tenham sido expressamente excepcionados, foi revogado a partir de 1 de Janeiro de 2000, com a entrada em vigor do CPPT, como resulta inequivocamente do artº 2° nº 1 do DL 433/99 de 26/10.
2º. Não faz assim sentido argumentar que às alegações em apreciação se aplica o disposto naquele preceito (artº 171º nº 4 CPT) pois que o mesmo se encontrava revogado.
3º. Acresce que, nos termos dos princípios gerais do direito, os quais tiveram expressão, nomeadamente, no artº 12º nº 3 da Lei Geral Tributária, «as normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos pelos constituintes».
4º. É certo que há quem defenda (como o faz o douto acórdão recorrido) que, apesar da revogação do CPT, o DL 433/99, através do seu artº 4°, limitou a aplicação do CPPT aos processos iniciados a partir da sua entrada em vigor, ou seja, a partir de 1 de Janeiro de 2000.
5º. Porém, tal interpretação e limitação não está correcta, indo contra o estatuído no referido preceito (artº 12°) da Lei Geral Tributária.
6º. Por outro lado, esquece que, em processos de impugnação judicial – como é o caso – as condições de admissibilidade e regime dos recursos interpostos era regulada pelo E.T.A.F.
7º. Acresce que a tese do douto acórdão recorrido leva a uma inconstitucional interpretação daquele preceito.
8º. Por isso é que o legislador se apressou a «emendar à mão» quando em 5 de Junho de 2001, através do artº 1º da Lei 15/2001, estatuiu que: «os procedimentos e processos pendentes regulados pelo CPT... passam a reger-se pelo CPPT, sem prejuízo do aproveitamento dos actos já realizados».
9º. Aquela interpretação tornará o referido artº 4° do DL 433/99 de 26/10 inconstitucional, por violação, nomeadamente, dos princípios constitucionais da igualdade, confiança e do acesso ao direito.
10º. Ora, a referida interpretação, sem qualquer fundamento, distingue arbitrariamente, para uma hipótese de recurso interposto e admitido em processo de impugnação judicial [...].
[...]
11º. E não se diga que, nesta última hipótese, o novo regime do CPPT não permite a possibilidade de oferecimento de alegações no tribunal de recurso [...].
12º. Em consequência de tal interpretação, é óbvio ser violado, também, o princípio constitucional do acesso ao direito e seus corolários (tornando completamente arbitrária a decisão em causa).
13º. Fica também violado o princípio da confiança jurídica.
14º. Defender que o legislador pretendeu revogar o CPT, com vigência e eficácia a partir de 1 de Janeiro de 2000, referindo expressamente que o novo regime
(CPPT) não se aplicaria aos processos pendentes, e que, ano e meio depois
(5/Julho/2001) veio legislar em sentido contrario («... afinal... já se aplica o novo regime aos processos pendentes...») é não só passar-lhe um atestado de irresponsabilidade (...) como defender uma intervenção legislativa que nessa hipótese – seria desproporcionada excessiva e intolerável, tendo em vista os interesses que a mesma pretende defender.
15º. Tal inconstitucionalidade deriva dos seguintes preceitos fundamentais: – artº 2º, 13º, 20º, 29º, 32º, 205º, 208º e 266º.
16º. Sendo de aplicar ao recurso interposto nos autos – no que diz respeito ao prazo do oferecimento das respectivas alegações (15 dias) – o regime estatuído na Lei Geral Tributária e CPPT, o último dia do prazo para aquele acto era o de
15/5, tendo assim aquele recurso sido apresentado atempadamente v.g. tendo em consideração o disposto no artº 145º do CPC.
17º. Notando-se finalmente que as alegações devem considerar-se apresentadas, não a 17/5 mas sim a 16/5 (data da sua expedição por correio registado).
18º. O douto acórdão recorrido violou por erro de interpretação o disposto nos citados preceitos e diplomas legais, devendo ser revogado e substituído por outro que considere atempadas e oportunas as alegações em causa, assim se fazendo Justiça.”
3. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso (cfr. parecer de fls. 275 e seguinte).
4. Por acórdão de 11 de Dezembro de 2002 (fls. 279 e seguintes), o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso, pelos seguintes fundamentos:
“[...] O DL 433/99 de 26 de Outubro que aprova o Código de Procedimento e Processo Tributário consigna, no seu artigo 4° que o mesmo entrará em vigor a 1 de Janeiro de 2000, excepcionando porém a sua aplicabilidade aos procedimentos iniciados e aos processos instaurados a partir de tal data. Só em 5 de Julho de
2001, pela Lei 15/2001, tal regime especial de direito transitório deixou de vigorar. No caso vertente, tendo a impugnação sido deduzida em 10 de Março de
1999, conforme alínea f) do probatório, era aplicável ao recurso interposto o disposto no Código de Processo Tributário. Tendo toda a tramitação do recurso tido lugar antes de 5 de Julho de 2001, não havia que entrar em consideração com o disposto no Código de Procedimento e Processo Tributário que ao caso não era aplicável, havendo apenas que apreciar se, à face do Código de Processo Tributário, o recurso deveria ou não ser considerado deserto. Nas suas alegações a recorrente invoca a inconstitucionalidade do entendimento que aceite como correcto o disposto no artigo 4° do DL 433/99 e a sua desconformidade com a Lei Geral Tributária. Todavia não existe qualquer proibição a que uma lei possa não ser aplicável aos casos pendentes através de norma que o consigne. Tal resulta aliás das próprias normas relativas à interpretação e aplicação das leis constante[s] do Código Civil. Também o disposto nessa lei não contende com o artigo 12° da Lei Geral Tributária que pretende evitar a retroactividade e não questionar as normas transitórias. Assim, nem a norma transitória nem a interpretação que dela fez o tribunal recorrido, sofrem de qualquer inconstitucionalidade. Vejamos agora se, face ao Código de Processo Tributário, estaria ou não deserto o recurso. De acordo com o disposto no artigo 171º de tal diploma, após a admissão do recurso o recorrente será notificado dessa admissão tendo o prazo de
10 dias para apresentar as suas alegações, salvo se tiver manifestado a intenção de alegar no tribunal «ad quem», devendo o recurso ser julgado deserto se as alegações não forem apresentadas naquele prazo. Se manifestou tal intenção será, após a subida, notificado pelo tribunal de recurso para alegar em 10 dias. No caso vertente, após a subida do recurso, o Tribunal Central Administrativo notificou a recorrente por carta registada de 27 de Abril de 2001, para alegar. Presumindo-se a notificação no 3° dia e não vindo controvertida a data da recepção da notificação, esta considera-se ocorrida em 30 de Abril seguinte. Donde, o prazo de 10 dias para alegar terminaria em 10 de Maio de 2001, que passaria para 12 por o dia 10 ser sábado, por o prazo se contar de forma contínua, nos termos do artigo 144° do Código de Processo Civil. Quando as alegações foram apresentadas já se esgotara o prazo legal para o efeito, sendo
«in casu» irrelevante que a data da apresentação tenha sido em 16 ou em 17 de Maio. O Tribunal recorrido limitou-se pois a aplicar a lei nada havendo a censurar-lhe.
[...].”
5. De novo inconformada, A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo que pretendia a apreciação, face ao disposto nos artigos
2º, 13º, 20º, 29º, 32º, 205º, 208º e 266º da Constituição, das seguintes normas
(fls. 289 e seguintes):
“[...] Art. 4º Decreto-Lei n.º 433/99, Art. 12º da Lei 15/2001, de 05/06, e art. 171º, n.º 4 C.P.T., quando conjugadamente interpretados no sentido de, após a entrada em vigor do C.P.P.T., ser o C.P.T., mais concretamente o seu art. 171º, n.º 4, o diploma aplicável aos processos pendentes até à entrada em vigor da Lei n.º
15/2001, de 05/06.
[...].”
O recurso foi admitido por despacho de fls. 292.
6. Nas alegações que apresentou neste Tribunal (fls. 295 e seguintes), concluiu a recorrente como nas alegações para o Supremo Tribunal Administrativo
(supra, 2.).
O representante da Fazenda Pública, ora recorrida, sustentou o seguinte nas contra-alegações (fls. 312 e seguinte):
“[...] A recorrente insurge-se, em última análise, contra uma disposição legal que, em matéria de aplicação de uma lei no tempo, ressalva a sua não aplicação aos casos pendentes. Mas não tem razão:
– Desde logo, como doutamente considera o Acórdão recorrido, «não existe qualquer proibição a que uma lei possa não ser aplicável aos casos pendentes através de norma que o consigne. Tal resulta das próprias normas relativas à interpretação e aplicação das leis constante[s] do Código Civil».
– E constitui também jurisprudência firmada do Venerando Tribunal Constitucional, da qual nos louvamos, que «todas as regras processuais que impõem ónus às partes (cumprimento de prazos, apresentação de peças processuais, impugnação de factos, etc.) têm uma clara justificação instrumental pois se destinam a permitir a apreciação da questão, em tempo razoável, pelo tribunal solicitado. Nem por isso, todavia, podem ser vistas como entraves constitucionalmente inadmissíveis ao direito de acesso ao tribunal ou causadoras de denegação da justiça ou violadoras do direito de igualdade» (Proc. nº 758/02,
1ª Secção, decisão sumária). Termos em que não ocorre a alegada inconstitucionalidade, devendo ser mantido o douto Acórdão recorrido.”
Cumpre apreciar.
II
7. A recorrente pretende a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, da interpretação normativa (de certos preceitos por si identificados) segundo a qual, após a entrada em vigor do Código de Procedimento e Processo Tributário
(aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro), é o Código de Processo Tributário, mais concretamente o seu artigo 171º, n.º 4, o diploma aplicável aos processos pendentes até à data da entrada em vigor da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
Como é evidente, o Tribunal Constitucional não pode determinar se, ao caso dos autos, é aplicável o Código de Procedimento e Processo Tributário ou o Código de Processo Tributário: trata-se de competência não prevista em qualquer das alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e que, portanto, este Tribunal não pode exercer. Como tal, as conclusões da recorrente que se prendem com o problema da determinação da lei aplicável e com o da legalidade do decidido pelo tribunal recorrido nessa matéria irrelevam para a apreciação do presente recurso (cfr. conclusões 1ª a 8ª, a fls. 304-306, e conclusões 14ª e 16ª e seguintes, a fls. 307-309).
Não pode também, pelas mesmas razões, o Tribunal Constitucional determinar qual a lei que seria aplicável a um recurso interposto em determinada data, consoante o recorrente alegue no tribunal de 1ª instância ou no tribunal de recurso: como tal, irrelevam as conclusões 10ª e 11ª (a fls. 306-307).
Assim sendo, resta verificar se a interpretação que constitui o objecto do presente recurso – e que, no essencial, se resume ao entendimento segundo o qual a lei aplicável ao recurso é a lei antiga e não a lei nova – ofende os princípios da igualdade, confiança e acesso ao direito e os vários preceitos constitucionais apontados pela recorrente (supra, 5.).
Quanto a este concreto aspecto, a resposta não pode deixar de ser negativa. Como salienta o tribunal recorrido (supra, 4.), “não existe qualquer proibição a que uma lei possa não ser aplicável aos casos pendentes através de norma que o consigne”. Debalde se procura na Constituição qualquer norma que, em matéria de recursos de decisões proferidas em processo tributário, limite a liberdade do legislador de optar pela aplicabilidade da lei antiga: a do artigo
13º da Constituição não a limita certamente, atendendo a que não se destina a coarctar o poder de feitura de leis; além do mais, a interpretação normativa sub judice não estabelece qualquer distinção entre recorrentes sujeitos à mesma lei.
Aliás, o problema da eventual colisão com os princípios assinalados pela recorrente – particularmente o da confiança e do acesso ao direito – só parece fazer sentido relativamente à aplicação da lei nova e não da lei antiga aos processos pendentes: só neste caso as partes poderiam eventualmente ser surpreendidas com a aplicação de uma lei, por razões estranhas ao desconhecimento da mesma.
Quanto aos preceitos contidos nos artigos 29º, 32º, 205º, 208º e
266º, que a recorrente também invoca em abono da sua tese, manifestamente não têm qualquer pertinência para a resolução da questão em apreço.
Não existem, pois, motivos para censurar a interpretação normativa ora questionada.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 2 de Julho de 2003 Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício Luís Nunes de Almeida