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Processo n.º 162/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 5 de Junho de 2001, a Inspecção Regional do Trabalho da Região Autónoma da Madeira instaurou processo de contra-ordenação contra a arguida A., o qual culminou na aplicação à arguida de uma coima no valor de Esc. 1.450.000$00,
“pelo não pagamento aos 186 trabalhadores (...) do acréscimo de remuneração devido pelo trabalho que efectuaram no dia 26 de Dezembro de 2000, o qual foi determinado feriado regional, pela Resolução n.º 1936/2000, do Conselho do Governo Regional”.
Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal de Trabalho do Funchal invocando nas suas alegações, o seguinte:
“(...)
3º Efectivamente, os dias de feriado são os que estão previstos nos artigos 18º e
19º do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Fevereiro e não podem ser criados feriados ou alterada a Lei Geral da República através de resolução emanada do Governo Regional da Madeira.
4º Não há pois qualquer violação da lei por parte da recorrente.
5º E mantendo-se a decisão recorrida, está-se a violar os artigos 18º e 19º do citado Decreto-Lei, bem como o artigo 112º da Constituição da República Portuguesa.”
Por sentença datada de 26 de Setembro de 2001, o Tribunal de Trabalho do Funchal decidiu absolver a recorrente da contra-ordenação, por considerar inconstitucional a Resolução n.º 1936/2000, nos seguintes termos:
“Afigura-se que a recorrente tem razão, porquanto não se vislumbra no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, na redacção da Lei n.º
130/99, de 21/8, nomeadamente no seu artigo 69º, que o Governo Regional possa criar um ‘feriado regional’ em contradição com uma lei geral da República, como o D.L. n.º 874/76, de 28-12. A Resolução n.º 1936/2000 é assim inconstitucional, nos termos do art.º 277º, n.º 1, da Constituição da República, por violar as normas sobre competência legislativa previstas nos arts. 165º, 198º, 227º e 228º da Lei Fundamental e no art.º 69º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, não estando a recorrente vinculada a respeitar tal resolução. Assim sendo, não teria que pagar acréscimo de remuneração aos seus empregados por terem trabalhado nesse dia 26/12/2000, por não se tratar de um dia de feriado perante a lei geral.”
2.Notificada da sentença, a Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Trabalho do Funchal veio interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 280º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa e artigos 70º, n.º 1, alínea a), 71º, e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da Resolução n.º 1936/2000 do Conselho do Governo Regional, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, I Série, n.º 112 de 13 de Dezembro.
Nas alegações produzidas neste Tribunal, concluiu assim o recorrente:
“O Governo Regional carece de competência para, através de mera ‘resolução’, instituir – mediante tal forma normativa – um ‘feriado regional’ com eficácia externa e directa repercussão na disciplina legal das férias, feriados, faltas e remunerações suplementares devidas no âmbito das relações emergentes de contrato individual de trabalho, derrogando o regime genérico instituído pelos artigos
18º e 19º do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro.”
Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos A) Questões prévias
3.No requerimento de interposição de recurso, a magistrada do Ministério Público junto do Tribunal do Trabalho do Funchal invocou o disposto no n.º 3 do artigo
72º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, para interpor o recurso de constitucionalidade. Tal norma torna o recurso obrigatório para o Ministério Público, mas apenas quando a norma cuja aplicação haja sido recusada (no caso) com fundamento em inconstitucionalidade “conste de convenção internacional, acto legislativo ou decreto regulamentar” (ou quando se verifiquem as hipóteses previstas nas alíneas g), h) e i) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o que não é o caso).
Constando a norma cuja aplicação foi recusada de uma resolução do Conselho do Governo Regional da Madeira, poderá, porventura, duvidar-se de que tal recurso fosse de interposição obrigatória, ao contrário do que foi invocado no requerimento de interposição. Seja como for, todavia, a legitimidade do Ministério Público não se circunscreve às situações em que está obrigado a interpor recurso: pode fazê-lo ainda quando não deve (no sentido de não estar obrigado a isso), como se prevê na – aliás também invocada – alínea a) do n.º 1 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional.
Conclui-se, portanto, que o recurso, por ter sido interposto por quem tem legitimidade para tal, é admissível.
4.Importa ainda, porém, fazer referência à questão prévia da admissibilidade do controlo da constitucionalidade de resoluções dos governos regionais.
Embora se encontrem na doutrina reservas quanto à possibilidade de controlo da constitucionalidade de resoluções dos governos regionais (v.g. Jorge Miranda,
“Resolução”, Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. VII, Lisboa,
1996), logo no Acórdão n.º 42/85 (publicado no Diário da República [DR], I Série, de 6 de Abril de 1985), o Tribunal Constitucional estabeleceu a sua competência de controlo em relação às que apresentem “natureza normativa”. Justamente por isso, sindicou já, repetidas vezes, resoluções dos governos regionais, tanto da Região Autónoma da Madeira (Acórdãos n.ºs 42/85, cit., e
170/90, publicados no DR, I Série, de 27 de Junho de 1990), como dos Açores
(Acórdãos n.ºs 63/88 e 95/88, publicados, respectivamente, no DR, II Série, de
10 de Maio de 1988 e de 22 de Agosto de 1988, e n.ºs 249 a 253/88, os dois primeiros publicados no DR, II Série, de 1 de Fevereiro de 1989, e os restantes no de 9 de Fevereiro de 1989; e ainda Acórdãos n.ºs 296 a 298/88, o primeiro publicado no DR, II Série, de 10 de Abril de 1989, os outros dois no de 11 de Abril de 1989).
Seguindo esta orientação, não há, pois, obstáculos ao conhecimento do recurso.
B) Questão de constitucionalidade
5.Como se decidiu na decisão recorrida e foi salientado pelo Ministério Público neste Tribunal, o regime jurídico de férias, feriados e faltas, aplicável no
âmbito do contrato individual de trabalho, consta do Decreto-Lei n.º 874/76, de
28 de Dezembro, e, no seu artigo 18º, estabelece como feriados obrigatórios os seguintes dias:
1 de Janeiro;
Sexta feira Santa (ou outro dia com significado local no período da Páscoa);
25 de Abril;
1 de Maio;
Corpo de Deus (festa móvel);
10 de Junho;
15 de Agosto;
5 de Outubro;
1 de Novembro;
1 de Dezembro;
8 de Dezembro;
25 de Dezembro. Nos termos do artigo 19º do mesmo diploma, há também feriados “facultativos”
(cfr. o disposto no artigo 20º): “Além dos feriados obrigatórios, apenas poderão ser observados” o feriado municipal da localidade (ou o distrital, quando aquele não existir) e a terça-feira de Carnaval, a menos que um e, ou, o outro, sejam substituídos por “qualquer outro dia em que acordem a entidade patronal e os trabalhadores”.
O artigo 21º comina com nulidade quaisquer “disposições de contrato individual de trabalho, vigentes ou futuros, que estabeleçam feriados diferentes dos indicados nos artigos anteriores.”
Este quadro legal é, desde logo pela sua razão de ser, aplicável à totalidade do território nacional, pelo que o diploma em questão deve ser qualificado como lei geral da República – isto, considerando ainda que, nos termos do artigo 194º da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, que aprovou a quarta revisão constitucional, a exigência de que o diploma se qualifique a si mesmo como tal, constante desde 1997 do artigo 112º, n.º 5, da Constituição, apenas “se aplica
às leis e decretos-leis aprovados após a entrada em vigor da presente lei”.
6.A norma em questão, contida numa resolução do Governo Regional da Madeira, instituiu um “feriado regional”, em derrogação do regime dos artigos 18º e 19º do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro, com eficácia externa e repercussão na disciplina legal das férias, feriados, faltas e remunerações suplementares devidas no âmbito das relações emergentes de contrato individual de trabalho.
Sendo, porém, como se referiu, o quadro legal descrito no número anterior aplicável a todo o território nacional, é claro que só norma de hierarquia igual ou superior ao diploma legislativo citado poderia criar um outro dia feriado, e, assim, ter consequências jurídicas decorrentes da obrigação de pagamento da retribuição correspondente a esse dia – designadamente, como pressuposto para a aplicação de uma coima pelo não acatamento de tal obrigação.
Ora, a mais de uma norma contida numa resolução não poder ter tal hierarquia, acontece que os poderes legislativos das Regiões Autónomas estão unicamente cometidos às Assembleias Legislativas Regionais, nos termos dos artigos 227º, n.º 1, alíneas b) e c), e 232º, n.º 1, da Constituição.
Pode, assim, concluir-se que as normas constantes da Resolução n.º 1936/2000, do Conselho do Governo Regional da Madeira, publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, I Série, de 13 de Dezembro, na medida em que se propunham prevalecer sobre um diploma legislativo (que é uma lei geral da República) e em que não foram aprovadas pela assembleia legislativa regional, são formal e organicamente inconstitucionais, tornando-se dispensável, como também notou o Ministério Público neste Tribunal, “a abordagem das questões da existência de
‘interesse específico regional’ e da eventual ‘reserva’ de tal matéria
(referente à disciplina do contrato individual de trabalho) à competência própria dos órgãos de soberania” – questões, essas, que só seriam relevantes se a forma adoptada tivesse sido a de decreto legislativo regional (podendo, pois, deixar-se em aberto a questão de saber se, por esta via, podem ser criados
“feriados regionais” nas Regiões Autónomas). III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 232º, n.º 1, da Constituição da República, a Resolução n.º 1936/2000 do Governo Regional da Madeira, na medida em que institui um “feriado regional” com eficácia externa e repercussão na disciplina legal das férias, feriados, faltas e remunerações suplementares devidas no âmbito das relações emergentes de contrato individual de trabalho, em derrogação do regime contido nos artigos 18º e 19º do Decreto-Lei n.º 874/76, de 28 de Dezembro; b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita.
Lisboa, 15 de Outubro de 2003 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos