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Processo n.º 195/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), contra o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Janeiro de 2003 (que rejeitou recurso da sentença do 1.º Juízo Criminal de Lisboa, que o condenara pela prática de crimes de reprodução ilegítima de programas protegidos), pretendendo ver apreciada a conformidade com a Constituição da República Portuguesa, designadamente com o seu artigo 32.º, da “interpretação normativa dos artigos 411.º, n.º 3, 412.º, n.ºs 1 a 3, 414.º, n.º 2, 419.º e 420.º, todos do Código de Processo Penal, se a mesma for no sentido de a falta de conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para suprir tal deficiência”.
O acórdão recorrido, para concluir pela rejeição do recurso, “nos termos do disposto nos artigos 412.º, n.ºs 1 e 2, 419.º e 420.º do Código de Processo Penal”, desenvolveu a seguinte argumentação:
“Nos termos do artigo 412.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Assim, o «âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação» – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Março de 1991, processo n.º 41 694.
«Deve ser rejeitado o recurso que na respectiva motivação não apresente conclusões» – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Junho de 1995, processo n.º 47 717 –, o que traduz jurisprudência corrente, como assinala Maia Gonçalves, em nota ao artigo 412.° do Código de Processo Penal, a pág. 751 do Código de Processo Penal Anotado, 11.ª edição.
Como se vê da motivação dos recorrentes (fls. 544 a 571), a motivação está articulada e termina formulando pedidos, como consta das alíneas a), b) e c) de fls. 571.
No entanto, as alegações de recurso carecem totalmente de conclusões.
Não é o caso, como bem refere o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, de suprir deficiências por ausência das menções constantes das alíneas a) a c) do n.° 2 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, nem se está perante uma situação de falta de concisão nas conclusões: em qualquer destas situações – se fosse o caso – dever-se-ia convidar os recorrentes a suprirem a deficiência, como se decidiu no Tribunal Constitucional em jurisprudência que, hoje, é obrigatória – ver os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 337/2000, de 21 de Julho de 2000, e n.º 320/2002, de 7 de Outubro de 2002.
Nas situações analisadas pelo Tribunal Constitucional está-se perante recursos onde as conclusões existem, ainda que apresentem deficiências que poderão ser corrigidas pelo convide ao recorrente com tal finalidade.
No caso destes autos está-se perante a ausência total de conclusões.
Salvo o devido respeito, não podemos acolher a jurisprudência referida e constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Novembro de 2001, que teve voto maioritário dos Ex.mos Conselheiros; antes concordamos com a posição assumida pelo Ex.mo Conselheiro que subscreveu o voto de vencido e que, com a devida vénia, transcrevemos em parte: «... a falta de conclusões da motivação determina a rejeição imediata do recurso sem qualquer convite ao recorrente para apresentá-las. É o que resulta, claramente, dos artigos 412.°, n.° 1, 414.°, n.° 2, e 420.°, n.º 1, do Código de Processo Penal. As conclusões, que definem e delimitam o objecto do recurso, são a parte crucial da motivação, pelo que a sua falta corresponde a falta de motivação. A falta de convite ao recorrente para apresentar conclusões não constitui afronta
às garantias de defesa do arguido – artigo 32.º, n.º 7, do Código de Processo Penal –, nomeadamente, tendo o mesmo advogado a representá-lo no processo, o qual não pode ignorar o que a lei dispõe nesta matéria. Neste caso, o convite para a apresentação de conclusões constitui uma desproporcionada e ilegítima protecção das garantias de defesa do arguido, incluindo o recurso, que não se pode sufragar, sobretudo se não se conceder igual oportunidade aos outros recorrentes, Ministério Público, assistente, partes civis, etc. O que não temos visto defender.»
Inexiste, assim, com este entendimento, razão para aceitar como regularizada a situação da falta de conclusões com a apresentação das mesmas no
âmbito da resposta prevista no artigo 417.°, n.° 2, do Código de Processo Penal.”
Neste Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“i. É desconforme com a Constituição da República Portuguesa, designadamente com o seu artigo 32.°, n.° 1, a interpretação normativa dos artigos 411.°, n.°
3, 412.º, n.°s l a 3, 414.°, n.º 2, 419.° e 420.°, todos do Código de Processo Penal – aliás, perfilhada no acórdão recorrido –, no sentido de a falta de conclusões implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para suprir tal deficiência; ii. O direito ao recurso é uma das garantias essenciais do arguido, sendo certo que em processo penal o seu exercício pressupõe que a sua interposição seja motivada, sob pena de não admissão; iii. Constando as alegações/motivação, embora faltando as conclusões, encontram-se nos autos as razões da discordância quanto à aplicação do direito, sobretudo se nas mesmas (alegações) se encontram efectuadas as indicações referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 412.° do Código de Processo Penal; iv. As conclusões são, pois, um «complemento lógico e sintético do procedimento de recurso explanado ao longo das alegações», cuja função, no essencial, é
«facilitar o trabalho» ao órgão que irá apreciar e decidir o recurso, maxime se as alegações forem prolixas e de deficiente ordenação lógica; v. Sancionar com a rejeição fulminante do recurso a simples falta das conclusões, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de as apresentar, importa uma reacção desproporcionada e injusta, que não sopesa devidamente os interesses em presença, fazendo prevalecer claramente o de menor relevância (a saber, a facilitação do trabalho do órgão decisor, na medida em que lhe permita mais fácil e rapidamente apreender as razões da discordância quanto à decisão de que se recorre – e se a motivação for já ela deduzida por artigos, com uma sequência lógica e correctamente ordenada? serão necessárias as conclusões? não estarão as mesmas «contidas» na motivação?);
vi. Tal regime da lei ordinária – a vigorar, o que desde já se questiona mesmo em sede de interpretação meramente literal – nunca poderá ser conforme à Constituição, conduzindo, até, a situações juridicamente absurdas, isto é,
vii. Em processo civil e nos demais direitos processuais, a falta de conclusões impõe ao julgador que, previamente à decisão, convide o recorrente a apresentá-las (ou a aperfeiçoá-las se as mesmas existirem mas defeituosamente);
viii. No processo penal, consensualmente considerado direito constitucional concretizado, em que se sublimam os direitos e garantias dos arguidos, mormente através do artigo 32.°, o direito ao recurso – segundo o entendimento que aqui se afronta – pode ser coarctado se, interposto o recurso devidamente motivado, faltarem as conclusões ou as mesmas forem deficientes
(ainda que, neste último caso, já o Tribunal Constitucional, com argumentos em tudo aplicáveis ao caso vertente, tenha emanado o «direito negativo» de que fala Gomes Canotilho (cf. supra, n.° 3));
ix. A monstruosidade de tal conclusão deveria, por si só, conduzir a uma interpretação daquelas disposições legais conforme à Constituição, o que não foi o caso dos autos;
x. É inconstitucional, por violação dos artigos 2.°, 18.°, n.° 2,
20.°, n.° 5, 32.°, n.° 1, e 204.°, todos da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa dos artigos 411.º, n.º 3, 412.°, n.ºs l a
3, 414.°, n.° 2, 419.º e 420.°, todos do Código de Processo Penal, no sentido de a falta de conclusões implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para suprir tal deficiência.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo:
“1 – É inconstitucional, por violação do direito ao recurso, ínsito no princípio das garantias de defesa em processo penal, a interpretação normativa dos artigos
411.°, n.° 3, 412.°, n.° 1, e 420.° do Código de Processo Penal, segundo a qual deve ser liminarmente rejeitado o recurso do arguido cuja motivação não contenha conclusões, sem previamente se lhe facultar o aperfeiçoamento de tal omissão.
2 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Como se assinala na contra-alegação do Ministério Público, a jurisprudência deste Tribunal Constitucional – contrariamente ao que vem afirmado no acórdão recorrido – não tem realizado, na perspectiva da tutela do direito ao recurso, distinção entre a falta (total) de conclusões e as deficiências desta peça processual (expressas na prolixidade das conclusões ou na ausência das especificações que a lei prescreve), para só nesta última situação considerar constitucionalmente imposto a prévia formulação de convite ao recorrente para corrigir essas deficiências.
É certo que, até ao momento, nos processos criminais de que emergiram os acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional sobre esta questão as situações detectadas eram de prolixidade: cf. Acórdãos n.ºs 43/99 (Diário da República, II Série, n.º 72, de 26 de Março de 1999, pág.
4494; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42.º vol., pág. 171), 417/99
(Diário da República, II Série, n.º 61, de 13 de Março de 2000, pág. 4844) e
43/2000 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º vol., pág. 803), a que se seguiu o Acórdão n.º 337/2000 (Diário da República, I Série-A, n.º 167, de 21 de Julho de 2000, pág. 3480; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol., pág.
47), que “generalizou” esses juízos de inconstitucionalidade.
No entanto, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, as situações detectadas eram de falta de conclusões e também aí os juízos emitidos foram no sentido da inconstitucionalidade: cf. Acórdãos n.ºs 319/99 (Diário da República, II Série, n.º 247, de 22 de Outubro de 1999, pág. 15 840), 509/2000 e 590/2000, a que se seguiu o Acórdão n.º 265/2001
(Diário da República, I Série-A, n.º 163, de 16 de Julho de 2001, pág. 4393; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., pág. 99), que procedeu à
“generalização” desses juízos de inconstitucionalidade.
Ora, quer os fundamentos dos juízos de inconstitucionalidade emitidos nos recursos emergentes de processos criminais são, em grande medida, extensíveis à situação destes autos, quer os fundamentos dos juízos de inconstitucionalidade emitidos nos recursos emergentes de processos contra-ordenacionais devem, até por maioria de razão, aplicar-se ao presente processo.
No citado Acórdão n.º 337/2000 escreveu-se:
“5.2. (...) O processo penal deve ser um processo eficaz, capaz de permitir ao Estado a punição dos criminosos. Mas deve ser também um processo justo, por forma a oferecer aos cidadãos garantias efectivas de defesa contra eventuais acusações injustas.
É, na verdade, preferível deixar de punir um criminoso do que correr o risco de punir um inocente. Por isso, dispõe o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição que «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso». Pois bem: como prescreve o artigo 412.º, n.º 1, transcrito atrás, o recorrente, na motivação do recurso, deve expor os fundamentos do mesmo; e, a terminar, deve formular conclusões, nas quais resuma as razões do seu pedido. É dizer que, ao formular as conclusões, deve fazê-lo com concisão. Simplesmente – sublinhou-se no Acórdão n.º 193/97 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 36.º, página 395), observação que o citado Acórdão n.º 43/99 repetiu –, «a concisão das conclusões, enquanto valor, não pode deixar de ser compreendida como uma forma de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso, e não como um entrave burocrático à realização da justiça. Assim há que compreender o entendimento das conclusões, seguindo a definição de Alberto dos Reis, como ‘as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação’ (Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1981, página 359)». Por isso – observou-se no citado Acórdão n.º 417/99 –, «uma interpretação normativa dos preceitos respeitantes à motivação do recurso em processo penal e
às respectivas conclusões (artigos 412.º e 420.º do Código de Processo Penal) que faça derivar da prolixidade ou da falta de concisão das conclusões um efeito cominatório, irremediavelmente preclusivo do recurso, sem dar ao recorrente a oportunidade de suprir a deficiência detectada, constitui uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça» (cf., identicamente, o mencionado Acórdão n.º 43/99). Vale isto por dizer que tais normativos – ou seja: os normativos atinentes à motivação do recurso em processo penal e às respectivas conclusões (artigos
412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, citados) –, quando interpretados em termos de a falta de concisão das conclusões da motivação de recurso implicar a rejeição deste, sem mais (isto é, sem que o recorrente seja, previamente, convidado a suprir a deficiência detectada), limitam intoleravelmente o direito ao recurso; e, nessa medida, impõem um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido. Esses normativos, com essa interpretação, são, pois, inconstitucionais, por violarem o princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
5.3. Ex adverso, objectar-se-á que o convite ao aperfeiçoamento implica um alongamento do processo, e que isso se não compadece com as exigências de celeridade processual. Sem razão, porém.
É certo que a justiça deve ser célere, pois, quando tardia, pode equivaler a falta de justiça. Simplesmente, a celeridade não significa que o processo se deva desenrolar a um ritmo trepidante. Tal sucedendo, corre-se mesmo o risco de se perder a serenidade – e, com ela, a ponderação –, essenciais a uma boa administração da justiça. No processo penal, até por exigência constitucional, a celeridade tem sempre que compatibilizar-se com as garantias de defesa, pois – dispõe o n.º 2 do citado artigo 32.º – o arguido deve «ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». Sendo isto assim, as exigências de celeridade processual não podem obstar a que o recorrente seja convidado a aperfeiçoar as conclusões da motivação de recurso que, acaso, sejam prolixas, padecendo de falta de concisão. Esse convite ao aperfeiçoamento impõem-no as exigências feitas pelo direito de defesa, com as quais – repete-se – a celeridade processual tem sempre que compatibilizar-se. Escreveu-se, aliás, no citado Acórdão n.º 417/99, que «a necessidade de proceder a uma compatibilização entre os dois princípios em presença – os princípios da celeridade e da plenitude das garantias de defesa –, dando cumprimento ao artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, exige que, perante conclusões de recurso tidas por não concisas, se dê ao recorrente a possibilidade de aperfeiçoar tais conclusões (à semelhança, aliás, do que hoje dispõe o artigo 690.º, n.º 4, do Código de Processo Civil)».”
Como se disse, não se vislumbra qualquer razão que obste à extensão deste entendimento ao caso de falta de conclusões na motivação dos recursos penais.
Por seu turno, no citado Acórdão n.º
265/2001 ponderou-se o seguinte:
“3. A norma que deflui da conjugação daqueloutras ínsitas no n.º 3 do artigo 59.º e no n.º 1 do artigo 63.º, um e outro do Decreto-Lei n.º 433/82, e desde que interpretada numa dimensão de harmonia com a qual, não sendo formuladas conclusões na motivação do recurso interposto da decisão que aplicou a coima, essa circunstância leva, sem que ao recorrente seja previamente dirigido convite para proceder a uma tal formulação, à rejeição do recurso, foi, no Acórdão n.º 319/99, considerada violadora do Diploma Básico mediante um discurso argumentativo que agora, por simplicidade, se transcreve.
Na verdade, foi dito naquele aresto:
«4. – Vem questionada nos autos a interpretação da norma constante dos artigos 59.º, n.º 3, e 63.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, enquanto permite rejeitar de forma imediata a impugnação judicial que não contenha conclusões.
Efectivamente, a primeira daquelas normas estabelece que:
“Artigo 59.º (Forma e prazo): 1 – A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial. 2 – O recurso de impugnação poderá ser interposto pelo arguido ou pelo seu defensor. 3
– O recurso é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões.”
Pelo seu lado, o artigo 63.º determina: “Artigo 63.º (Não aceitação de recurso): 1 – O juiz rejeitará, por meio de despacho, o recurso feito fora de prazo ou sem respeito pelas exigências de forma. 2 – (...).”
Violará a norma que impõe a rejeição imediata da impugnação judicial que não contiver as conclusões o direito de defesa do arguido, como pretende o recorrente?
5 – O artigo 32.º da Constituição, no seu n.º 8 (na versão de
1989) e agora (versão de 1997) no seu n.º 10, estabelece que “nos processos por contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa”.
Por outro lado, é o próprio diploma regulador das contra-ordenações que expressamente determina, a nível infraconstitucional, serem os preceitos reguladores do processo criminal, devidamente adaptados, aplicáveis em processo contra-ordenacional como direito subsidiário (artigo
41.º, n.º 1).
Portanto, não só se aplicam ao ilícito contra-ordenacional garantias constitucionalmente atribuídas ao direito penal (v. g., princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável), como também existe um evidente paralelismo entre o processo criminal e o processo contra-ordenacional, que é conformado por princípios básicos daquele, tendo em atenção os interesses subjacentes.
Aliás, no que se refere aos direito de audiência e de defesa é a própria Constituição que expressamente os assegura ao agente de qualquer contra-ordenação.
O direito ao recurso integra-se naturalmente no direito de defesa do arguido: porém, uma coisa é a garantia do direito ao recurso – que não está em causa nos presentes autos –, outra coisa é a exigência legal de respeitar certos formalismos no exercício do direito de recurso. Efectivamente, o legislador pode impor regras formais para exercer o direito ao recurso.
No caso em apreço, o recorrente exerceu o seu direito de defesa recorrendo da decisão condenatória da autoridade administrativa para o tribunal judicial competente, apresentando as sua alegações; porém, com as alegações não apresentou as necessárias conclusões.
Com base no preceito que determina que o recurso deve constar de alegações e conclusões, o juiz rejeitou o recurso por não respeitar “as exigências de forma”, decisão que foi confirmada pela Relação.
A questão a dilucidar consiste, assim, em apurar se a imediata rejeição do recurso interposto pelo arguido, sem que o mesmo fosse convidado para apresentar as conclusões em falta, não viola o direito de defesa, na medida em que tal omissão podia afectar – como afectou – substancialmente o próprio direito ao recurso.
Efectivamente, em regra, a rejeição do recurso apenas ocorre quando falta a motivação (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – CPP). Deverá a mera falta de conclusões ter o mesmo efeito preclusivo do direito ao recurso, que a lei atribui à falta de motivação?
A formulação de conclusões integra-se, sem dúvida, no ónus de alegar e formular conclusões a que se refere o artigo 690.º do Código de Processo Civil (CPC), enquanto conjunto complexo de actos que constitui a fase processual do recurso.
As conclusões devem constituir o complemento lógico e sintético do procedimento de recurso explanado ao longo das alegações.
Em processo civil, a falta ou a deficiência, obscuridade ou complexidade das alegações não levam à rejeição do recurso sem que o recorrente seja convidado para corrigir tais falhas.
Quanto à falta de concisão ou prolixidade das alegações, o Tribunal já decidiu que a rejeição do recurso pelo facto de as conclusões estarem afectadas daquelas deficiências, sem que o recorrente tenha sido previamente convidado para as corrigir, afecta desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), garantido pelo artigo
32.º, n.º 1, da Constituição (cf. Acórdãos n.º 193/97 e 43/99, ainda inéditos).
Não se vê razão para concluir diferentemente se a falta for das próprias conclusões. Com efeito, se a rejeição do recurso só ocorre faltando a motivação, a extensão desta “sanção” à falta das conclusões consiste num alargamento do âmbito da norma, ou seja, na criação de um outro fundamento de rejeição. Por outro lado, o dever de convidar o recorrente a apresentar as conclusões antes de rejeitar o recurso corresponde à exigência de um processo equitativo, porquanto o essencial do próprio recurso – as alegações ou a motivação – já se encontram nos autos, apenas faltando a fase conclusiva.
Tem, por isso, de se concluir que, no caso de um recurso em processo de contra-ordenação – em que valem também as garantias constitucionais do direito de audiência e do direito de defesa – a rejeição do recurso que não contiver as respectivas alegações sem que o recorrente seja convidado a apresentá-las previamente a essa rejeição, afecta desproporcionadamente o direito de defesa do recorrente na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa, pelo que a interpretação da norma constante dos artigos 59.º, n.º 3, e 63.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, feita na decisão recorrida, é inconstitucional.»
Também no já mencionado Acórdão n.º 303/99 teve este Tribunal ocasião de discretear assim:
«A única norma questionada pela recorrente, impondo que o juiz, em processo contra-ordenacional, rejeite, por despacho, o recurso apresentado “fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma” (citado n.º 1 do artigo
63.º), não pode deixar de ser lida e conjugada com o n.º 3 do artigo 59.º, do mesmo Decreto-Lei n.º 433/82, com as actualizações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, que estabelece que aquele recurso seja “feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplicou a coima, no prazo de 20 dias após o seu conhecimento pelo arguido, devendo constar de alegações e conclusões”.
É que a recorrente situa a controvérsia no ponto em que, negando-se ao arguido naquele tipo de processo “a possibilidade de apresentar
(completar, esclarecer ou sintetizar) as conclusões da sua petição de recurso”, está a violar-se o seu direito de audiência e defesa.
Para o acórdão recorrido, e retratando a situação dos autos, “se o recorrente apresenta em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática de contra-ordenação, que lhe é imputada e por que foi sancionada, equivale a ausência de conclusões, motivo de rejeição liminar do recurso, por carência de motivação, integrada, além do mais, por aqueles artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal” (normas aplicáveis ao processo de contra-ordenação – artigo 41.º, n.º 1).
E mais:
“Houve, da parte do legislador, o propósito claro de regulamentar de forma global e autónoma do Código de Processo Civil, ao contrário do que sucedia no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, o regime dos recursos, não se coadunando com aquela perspectiva da celeridade e eficiência o convite à correcção das conclusões ou à sua apresentação, se faltam. A aplicação da norma do artigo 690.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, com o sentido de quando faltem, sejam deficientes ou obscuras as conclusões, poder o juiz endereçar convite à sanação do vício não tem aplicação em processo penal e, ipso facto, no processamento das contra-ordenações”.
Ora, é exactamente este aspecto que vem posto em crise neste Tribunal Constitucional no citado acórdão n.º 193/97 (inédito), pois aí, em contrário ao entendimento do acórdão recorrido, pode ler-se:
“O argumento da celeridade conatural ao processo penal, como impossibilitando aqui a adopção de um sistema semelhante ao do processo civil
(onde à deficiência e/ou obscuridade das conclusões corresponde um convite para aperfeiçoamento – artigo 690.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), argumento decisivo na decisão recorrida, não colhe. A concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa é aqui possível (sendo aliás, exigida pelo artigo 18.º, n.º 2, da Constituição) sem necessidade de se chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem ao valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido.”
É certo que aquele acórdão n.º 193/97 tratou de hipótese relacionada com a falta de concisão das conclusões de motivação de recurso – e isso determinar a rejeição do recurso interposto pelo arguido –, mas é bem verdade que aquela consideração do acórdão pode também levar aqui a um mesmo juízo de inconstitucionalidade material.
Com efeito, sendo dado adquirido que a recorrente apresentou “em sede de conclusões uma única conclusão em que se limita a negar a prática da contra-ordenação, que lhe é imputada e por que foi sancionada”, a lógica da
“concordância prática entre o valor celeridade e a plenitude de garantias de defesa” impõe, na óptica do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, que se faça apelo ao sistema processual civil, em que pode funcionar um convite para aperfeiçoar as conclusões (artigo 690.º, n.º 4, do Código de Processo Civil). Tanto mais que in casu há uma conclusão, embora seja única (aliás, antecedida por considerações acerca da matéria de facto e da aplicação do direito a essa matéria), e não era necessário “chegar ao extremo de fulminar desde logo o recurso, em desproporcionada homenagem ao valor celeridade, promovido, assim, à custa das garantias de defesa do arguido”, na linguagem do acórdão n.º 193/97.
Tanto basta para concluir que a interpretação e a aplicação que foi feita das normas referidas, afectando desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa (o direito ao recurso), revelam-se violadoras das normas conjugadas dos artigos 32.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.»
4. Reitera-se agora, uma vez mais, a argumentação dos acórdãos de que parte se encontra transcrita e que consiste, essencialmente, nos seguintes tópicos:
– no processo contra-ordenacional valem também as garantias de defesa constitucionais quanto aos direitos de audiência e defesa;
– conferir-se à falta de formulação de conclusões o mesmo e imediato efeito «sancionatório» da rejeição do recurso que é o resultante da não apresentação de motivação no recurso da decisão aplicativa da coima, representa uma afectação desproporcionada do direito de defesa do impugnante/arguido, na sua dimensão de direito ao recurso, garantido pelo n.º 10 do artigo 32.º da Lei Fundamental;
– as exigências decorrentes de um processo equitativo podem, e devem aliás, conduzir, ponderado o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, à efectivação de um juízo que, na prática, leve à concordância entre os valores da celeridade processual e do asseguramento das garantias de defesa quanto aos processos sancionatórios, e isso caso se adopte, em relação ao ordenamento jurídico regulador dos recursos das decisões aplicativas de coima, solução semelhante à consagrada no processo civil quanto à falta de indicação de conclusões.”
Também estas considerações são aplicáveis ao caso dos autos, apesar de aqui se tratar de processo criminal e no acórdão acabado de transcrever se tratar de processo contra-ordenacional, aplicabilidade que é mesmo fundada em argumento de maioria de razão (cf. Acórdão n.º 388/2001, no Diário da República, II Série, n.º 260, de 7 de Novembro de 2001, pág. 18
418; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51.º vol., pág. 131), dada a maior força de que as garantias de defesa se revestem nos processos criminais.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa dos artigos 411.º, n.º 3, 412.º, n.º 1, e 420.º do Código de Processo Penal, segundo a qual deve ser liminarmente rejeitado o recurso do arguido cuja motivação não contenha conclusões, sem previamente se lhe facultar o suprimento dessa omissão; e, consequentemente,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Julho de 2003.
Mário José de Araújo Torres (Relator)
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos