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Processo nº 658/2003
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do 2º Juízo Cível do Funchal, de fls. 28, foi julgada procedente a acção de denúncia do contrato de arrendamento, devidamente identificado nos autos, relativo a uma habitação situada no Funchal, que A., emigrante n--
----------------, mas que pretende regressar a Portugal, propôs contra B. e mulher.
Para o efeito, o tribunal considerou verificadas as condições legalmente exigidas para o exercício do direito de denúncia por necessidade do local arrendado para habitação do senhorio, nos termos dos artigos 69º, n.º 1, a) e
71º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de
15 de Outubro, não obstante a autora ser proprietária de outros dois imóveis, desabitados, situados no concelho de Ribeira Brava, como haviam oposto os réus.
Entendeu então o tribunal que impor à autora a instalação da sua residência numa dessas duas habitações “coarctaria o seu direito de deslocação e de liberdade de fixação da residência dentro do território Nacional”.
2. Esta sentença foi, porém, revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. 38, com o fundamento de que “a Autora não demonstrou a necessidade do locado”. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que a autora dispunha de uma “alternativa viável”, que era “pelo menos o de voltar a residir na casa que foi a sua habitação antes de emigrar”; que lhe cabia a ela, autora, o ónus de provar a necessidade do local arrendado, o que implicava que tivesse alegado e demonstrado que as outras duas habitações de sua propriedade não reuniam as condições necessárias para nelas poder habitar; e que não basta
“o simples querer do senhorio”, antes sendo exigida a “indispensabilidade” do local arrendado para o exercício do direito de denúncia.
3. Inconformada, a autora recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sustentando que o acórdão recorrido violou “abertamente (...) [o] n.º 1 do artigo 44º [da Constituição], a (...) alín. a) do 69º do RAU e ainda o n.º 2 do
18º do mesmo Diploma Fundamental na medida em que a todos interpretou e aplicou em termos ou com sentido limitativo e impeditivo daqueles outros direitos para além dos permitidos pelos estados de excepção previstos na Constituição ou pretextuando apenas de que tem outra casa na freguesia da Serra de Água, concelho de Ribeira Brava. Isto é e em suma: A Autora A. quer viver e escolheu para residir a sua única casa do Funchal mas o Acórdão recorrido não a deixa apontando-lhe para isso uma outra na Serra de
Água, desabitada desde que emigrou em 1966, em manifesta violação daqueles n.ºs
1 e 2 respectivamente dos artigos 44º e 18º da Constituição Portuguesa e alínea a) do n.º 1 do artigo 69 do RAU sendo aquele directamente aplicável”.
Explica ainda a recorrente que só colocou a questão de inconstitucionalidade no recurso para o Tribunal Constitucional porque “era insólito prever que o Acórdão recorrido iria contra aqueles preceitos nos termos em que o foi ou que os interpretaria e aplicaria de forma tão manifestamente limitativa e impeditiva ou por forma que na prática privam a A. daqueles outros direitos constitucionais de livre escolha e tudo isso depois da 1ª instância se ter fundamentado no primeiro deles para lhos reconhecer e que o Acórdão recorrido acabou por violar e naturalmente negar”.
4. Pelo despacho de fls. 53, não foi admitido o recurso, por não ter sido suscitada oportunamente “a questão relativa à inconstitucionalidade”, nos termos exigidos pela al. b) do n.º 1 da Lei nº 28/82.
Com efeito, não só a sentença da 1 ª instância “aludiu(...) ao estatuído no art.
44 da Constituição”, como no recurso de apelação os réus referiram “mais uma vez
(...) a existência de outras duas casas da agora recorrente (...), desabitadas, daí retirando os mesmos que aquela não necessitava da casa dos autos (...) para habitar. Deste modo, uma das soluções possíveis na apelação era a do Tribunal da Relação aderir a este argumento dos apelantes”.
Assim, concluiu o Tribunal da Relação de Lisboa, a recorrente não pode invocar ter sido “surpreendida” para justificar a não invocação tempestiva – ou seja, perante o próprio Tribunal da Relação – da inconstitucionalidade que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
5. Inconformada, a recorrente veio reclamar para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, sustentando, por um lado, o carácter “insólito” da forma como o acórdão recorrido aplicou os preceitos referidos e, por outro, por se poder “dizer que verdadeiramente a questão da inconstitucionalidade até surgiu ou foi suscitada pela 1ª vez na douta sentença da 1ª instância, como o foi nas Alegações apresentadas pela Apelada ao reconhecer que ela se mostrava muito bem fundamentada e nada ou pouco restando para acrescentar”.
Foi, porém, mantida a decisão de não admissão do recurso, pelo despacho de fls. 11.
6. Notificados para o efeito, os reclamados vieram manifestar-se no sentido da não admissibilidade do recurso, acrescentando ainda que o acórdão recorrido não fez qualquer interpretação inconstitucional das normas que aplicou.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da manifesta improcedência da reclamação, pela razão apontada no despacho de não admissão: “Na verdade, face ao objecto e natureza do litígio que opunha as partes e ao teor da alegação do apelante, era manifesta a eventualidade de a Relação poder vir a optar pela interpretação normativa que a reclamante considera inconstitucional, pelo que lhe cabia o ónus de suscitar tal questão, no âmbito da contra-alegação apresentada”.
7. Na verdade, a presente reclamação é manifestamente improcedente, pois falta um pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto do recurso: não foi suscitada durante o processo, nos termos exigidos pela al. b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, qualquer questão de inconstitucionalidade.
Note-se, aliás, que nem no requerimento de interposição de recurso a ora reclamante define qualquer questão de constitucionalidade normativa em termos de poder ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, como lhe competia ter feito, já que o recurso que interpôs se destina à apreciação da alegada inconstitucionalidade de normas (e não de decisões judiciais) e que é ao recorrente que incumbe a definição do respectivo objecto.
Seja como for, a verdade é que, como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, o requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada perante o tribunal recorrido de forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a apreciar (n.º 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82). Só nos casos excepcionais e anómalos, que aqui manifestamente não ocorrem, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994).
Sustenta a reclamante não lhe ser exigível o cumprimento deste ónus, nos termos relatados. Todavia, a verdade é que, como observam, quer os reclamados, quer o Ministério Público, foi controvertida ao longo do processo a questão da relevância da existência de outras habitações da reclamante, questão colocada pelos reclamados como oposição ao exercício do direito de denúncia.
No recurso de apelação, em particular, os agora reclamados invocaram expressamente a existência das duas referidas casas desabitadas, justamente, para (conjuntamente com os argumentos anteriormente apresentados) fundamentarem a afirmação de que “a Autora (ora apelada) não fez prova directa da sua real necessidade do arrendado (...)”.
Não pode, pois, a reclamante afirmar ter sido surpreendida com a interpretação que o Tribunal da Relação de Lisboa veio a adoptar para as normas que aplicou; podia, assim, ter colocado a este mesmo Tribunal a questão de constitucionalidade que pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Nestes termos, indefere-se a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs.
Lisboa, 22 de Outubro de 2003
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Luís Nunes de Almeida