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Proc. n.º 417/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. deduziu reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do Desembargador Relator que, no Tribunal da Relação de Coimbra, não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional do despacho proferido no mesmo Tribunal da Relação de Coimbra, através do qual se decidira que deveria ser apreciado na 1ª instância o requerimento em que A. pedia que aquele tribunal procedesse ao cúmulo jurídico da pena que lhe havia sido aplicada no processo que aí se encontrava pendente com outra que lhe havia sido aplicada noutro processo.
2. Resulta dos autos que:
2.1. Por acórdão de 19 de Junho de 2002, do Tribunal da Relação de Coimbra, foi confirmado o acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Vila Nova de Foz Coa, de 4 de Abril de 2002, que condenou A. pela prática, como instigador, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 205º, n.ºs 1 e 4, alínea b), e 26º do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão, e declarou perdoado um ano dessa pena de prisão, ao abrigo do disposto no n.º 1 da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, sob a condição resolutiva a que alude o artigo 4º do mesmo diploma.
2.2. Interposto recurso pelo arguido para o Tribunal Constitucional, este Tribunal, pelo acórdão n.º 3/2003, decidiu não tomar conhecimento do objecto de tal recurso, “por não ser legalmente possível fazê-lo”, tendo mais tarde decidido não admitir o recurso desse acórdão para o Plenário (Acórdão n.º
126/2003).
2.3. Remetidos os autos ao Tribunal da Relação de Coimbra, A. apresentou requerimento em que pedia a esse tribunal que procedesse ao cúmulo jurídico da pena que lhe havia sido aplicada no processo que aí se encontrava pendente com outra que lhe havia sido aplicada noutro processo (requerimento de fls. 22 e seguinte dos presentes autos de reclamação).
2.4. O Desembargador Relator entendeu que o requerido pelo arguido deveria ser apreciado em 1ª Instância (despacho de fls. 25), deferindo a promoção do Ministério Público.
2.5. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da inconstitucionalidade das “disposições conjugadas dos arts. 91º n.º 2 da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, e dos arts. 474º n.º 1, 10º e 12º n.º 2 al. c) do CPP, quando interpretadas e aplicadas como se fez no Venerando Tribunal «a quo», ou seja, optando-se por remeter à 1ª instância a decisão do que havia sido requerido neste Venerando Tribunal, onde o processo pende”, por violação do disposto no artigo 32º, n.º 1 e 9, da Constituição da República Portuguesa (requerimento de fls. 26 e seguinte).
2.6. Por despacho de fls. 28, o Desembargador Relator, no Tribunal da Relação de Coimbra, decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“[...]
É evidente que tal despacho, sendo de mero expediente, não é susceptível de impugnação. Por outro lado, a ser impugnável, sempre seria mediante reclamação para a conferência, nos termos do art. 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil, «ex vi» art. 4º do Código de Processo Penal. Por outro lado, ainda, sendo certo que o despacho em causa não recusa nem aplica norma nos termos do art. 70º, n.º 1, da Lei Orgânica sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, sempre seria irrecorrível para este Tribunal. Deste modo, não se admite o recurso interposto.
[...].”
2.7. A. veio então deduzir reclamação do despacho de não admissão do recurso, ao abrigo do disposto no artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 33 a 36).
No requerimento apresentado, disse o ora reclamante:
“[...]
8 - [...] o dito recurso não foi admitido.
9 - Fundamentalmente, por três distintas razões.
10 - Uma dessas razões seria a de que a impugnação do despacho de que se pretendeu recorrer «...sempre seria mediante reclamação para a conferência, nos termos do art. 700° n.º 3 do Código de Processo Civil, ‘ex vi’ art. 4º do Código de Processo Penal».
11 - Com todo o sempre e muito devido respeito, porém, aquele preceito legal limita-se a conferir uma possibilidade («... quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator ... pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência...») e não a impor um dever processual obrigatório à parte que se considere prejudicada...
12 - Outra razão seria a de que o mesmo aliás douto despacho de que se pretendeu recorrer «... não recusa nem aplica norma nos termos do art. 70º n.º 1...» da LTC.
[...]
21 – [...] a decisão, constante do aliás douto despacho de fls. 1959, não pode ser considerada de mero expediente, deveria ter sido fundamentada e é susceptível de recurso.
22 - Pelo que deveria o recurso interposto para o Tribunal Constitucional ter sido admitido, já que se não verifica nenhuma das razões de inadmissibilidade constantes do aliás douto despacho reclamado.
[...].”
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da “manifesta improcedência da presente reclamação”, por “falta ostensiva de um pressuposto de admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto: o prévio esgotamento dos meios impugnatórios existentes – art. 70º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 28/82” (fls. 60 v.º a 61).
Cumpre apreciar e decidir.
4. O Desembargador Relator, no Tribunal da Relação de Coimbra, não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, por entender que o despacho de que o ora reclamante pretendia interpor recurso não é directamente recorrível para o Tribunal Constitucional, uma vez que seria exigível prévia reclamação para a conferência, nos termos do artigo 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º do Código de Processo Penal.
Esta foi a razão decisiva para a não admissão do recurso, embora se invoque ainda um fundamento adicional – o de que o despacho em causa (o despacho de não admissão do recurso) “não recusa nem aplica norma nos termos do art. 70º, n.º 1, da Lei Orgânica sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional”.
5. Não merece censura o despacho reclamado.
Com efeito, não é admissível recurso directo para o Tribunal Constitucional do despacho do relator num Tribunal da Relação que, relativamente a um requerimento apresentado, se pronuncie no sentido de que o mesmo deve ser apreciado pelo tribunal de 1ª Instância.
Tal resulta claramente do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal Constitucional.
Recorde-se, por exemplo, o que se escreveu no Acórdão n.º 132/95 deste Tribunal (Diário da República, II Série, de 19 de Junho de 1995):
“[...]
2. Como é claro, para que se possam utilizar os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa previstos nos artigos 280º, números 1,
2 e 5, da Constituição, e 70º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, mister é que as decisões, que se pretendem censurar através dessa forma impugnativa, sejam passíveis de recurso. Daí que, inquestionavelmente, haja, em primeira linha, de saber se um despacho proferido por um relator de um tribunal superior, tribunal no qual as decisões são tomadas colegial ou colectivamente, é passível de recurso. A resposta a esta questão é, sem que dúvidas a esse respeito se possam suscitar, patentemente negativa. De facto, da interpretação dos preceitos constantes dos números 3 e 4 do artº
700º do Código de Processo Civil claramente se extrai que, ressalvada a situação contemplada no artigo 688º do mesmo corpo de leis (e não era esta que estava agora em questão nestes autos), se um despacho proferido por um relator de um tribunal for, na óptica de uma «parte», susceptível de a prejudicar, não poderá essa «parte» impugnar tal despacho mediante recurso. Terá, isso sim, que requerer que sobre o despacho recaia um acórdão que, e agora do ponto de vista da parte que entende ser a prejudicada, a manter o mesmo despacho, poderá ser objecto de recurso. O que, aliás, bem se compreende, mormente tendo em vista o que se preceitua na alínea b) do artº 754º do mesmo diploma adjectivo, que decorre da já assinalada circunstância de nos tribunais superiores o poder jurisdicional residir no órgão colegial.
3. Por outro lado, acentue-se que não colhe a argumentação da reclamante segundo a qual, tratando-se de recursos com vista à 'apreciação de constitucionalidade', não seria de aplicar o que deflui das citadas disposições processuais civis.
É que, de uma banda, nenhuma estatuição constante da Lei n.º 28/82 para tanto aponta; de outra, é de ponderar que aquela Lei, no seu artº 69º, subsidiariamente manda aplicar à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional as normas do Código de Processo Civil; e, ainda de outra, que só as decisões dos tribunais são recorríveis para este órgão de fiscalização da constitucionalidade, o que aponta para que, tratando-se de um tribunal superior, a decisão passível de ser impugnada há-de ser aquela que foi emitida no exercício de um poder jurisdicional (e, como se disse já, esse poder, em tais tribunais, está cometido ao órgão colegial).
[...]”.
Dentro da mesma linha de orientação, disse este Tribunal no acórdão n.º 216/2000 (inédito):
“Na verdade, de acordo com a lei processual em vigor, as decisões dos tribunais superiores que não sejam acórdãos são irrecorríveis: é o que resulta dos artigos
700º, n.ºs 3, 4 e 5, 721º e 754º, todos do Código de Processo Civil. A razão de ser deste entendimento legal assenta na natureza colectiva dos tribunais superiores. De facto, nestes tribunais, como se escreveu no Acórdão n.º 517/94 (in Diário da República, II Série, de 16 de Dezembro de 1994) «em regra, as decisões definitivas são tomadas pelo próprio órgão jurisdicional colectivo, e não singularmente pelos juizes que o compõem». Assim, os despachos do relator que não sejam de mero expediente podem sempre ser objecto de reclamação para a conferência, recaindo acórdão sobre a matéria objecto do despacho, reapreciando-o e podendo alterar o respectivo sentido. Tal reclamação visa a obtenção de um acórdão recorrível, como refere o n.º 5 do artigo 700º do CPC, o que significa que o despacho do relator não é uma decisão definitiva, apenas reclamável e não recorrível”.
E, no Acórdão n.º 251/02 (também inédito), uma vez mais se afirmou que “tratando-se de um tribunal colectivo, o poder jurisdicional encontra-se, justamente, no colectivo e não no relator”.
No caso dos autos, ao pretender interpor recurso directamente do despacho do relator para o Tribunal Constitucional, o ora reclamante não esgotou previamente o meio impugnatório ordinário que se traduz na reclamação de tal despacho para a conferência, de modo a conseguir que fosse proferido um acórdão, susceptível de impugnação perante o Tribunal Constitucional. Como bem sublinha o Senhor Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu neste Tribunal, este circunstancialismo processual implica a falta ostensiva de um pressuposto processual do recurso de constitucionalidade interposto (o recurso previsto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da LTC) que consiste no prévio esgotamento dos recursos ordinários, tal como exige o artigo 70º da LTC, nos seus n.ºs 2 e 3.
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 8 de Julho de 2003
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos