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Processo n.º 580/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. A. foi, em 1 de Fevereiro de 2003, sujeito a interrogatório na condição de arguido detido, no âmbito do inquérito n.º
1718/02.9JDLSB, da 2.ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal
(DIAP) de Lisboa. Findo o interrogatório, foram, pelo juiz de instrução, impostas ao arguido – contra o qual se entendeu existirem indícios da prática de, pelo menos, quatro crimes de lenocínio agravado, previstos e punidos pelo artigo 176.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal –, como medidas de coacção, nos termos dos artigos 191.º, 193.º, 197.º, 198.º e 204.º, alínea c), todos do Código de Processo Penal (CPP), a prestação de caução no valor de € 10 000 e a obrigação de apresentação semanal, aos sábados, no posto policial da área da sua residência.
Contra este despacho interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, defendendo a aplicação da medida de prisão preventiva, mas, por acórdão de 10 de Abril de 2003, foi negado provimento ao recurso.
Na sequência de despacho de 2 de Maio de 2003, de uma magistrada do Ministério Público do DIAP de Lisboa, que determinara nova detenção do referido arguido, e a que adiante se fará referência (infra, n.º
10), foi emitido mandado de detenção do arguido, do qual consta:
“A detenção é motivada pelos seguintes factos:
Por existirem fortes indícios da prática pelo arguido de, pelo menos, quatro crimes de lenocínio, com agravação, previstos e punidos pelo artigo 176.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, a que corresponde pena de prisão de dois a dez anos, e de, pelo menos, 48 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 172.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, com pena de prisão de 3 a 10 anos, e 24 crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Existe perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e do decurso do inquérito, nomeadamente perigo para aquisição, conservação e veracidade da prova, bem como de continuação da actividade criminosa, artigo
204.º, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.”
Detido o arguido, foi o mesmo sujeito, em 5 de Maio de
2003, a novo interrogatório judicial, findo o qual o juiz de instrução proferiu despacho, determinando a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, considerada como a “adequada, suficiente e proporcional às necessidades cautelares dos autos”.
2. Contra este despacho interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando a desnecessidade, desadequação e excesso da medida de coacção aplicada e suscitando, na respectiva motivação, a questão da violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa
(CRP) e das garantias de defesa do recorrente, quer porque “[n]ão obstante a fundamentação da decisão proferida, até à data o arguido não teve acesso a quaisquer elementos probatórios, nomeadamente aos identificados no despacho em causa, apesar de os mesmos se afigurarem convenientes ao esclarecimento da verdade e absolutamente essenciais para a defesa do arguido e para a impugnação do despacho proferido em 5 de Maio de 2003, que lhe determinou aquela medida de coacção”, uma vez que “no decurso do interrogatório que imediatamente precedeu aquele despacho, o arguido não foi confrontado com tais elementos probatórios ou sequer com os factos concretos deles resultantes”, pois nesse interrogatório “o arguido foi confrontado com questões genéricas e abstractas, no que concerne à imputação dos 72 crimes de abuso sexual de criança”. Segundo o recorrente, ocorreu, por isso, “violação do disposto no artigo 141.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Penal, que obriga o juiz de instrução a indicar os motivos da detenção, a comunicar-lhe e expor-lhe os factos e as provas que a fundamentam”, obrigação que o juiz de instrução “não cumpriu, porquanto a explicação que deu ao arguido sobre os factos que estavam em causa limitou-se à enunciação dos ilícitos penais determinantes da sua detenção e subsequente formulação das perguntas genéricas e abstractas constantes do auto de interrogatório”, sem que o recorrente tenha sido, “em momento algum, confrontado com os factos concretos que indiciariamente lhes são apontados e respectivos elementos probatórios e avaliadas como constituindo fortes indícios da veracidade dos factos indiciariamente recolhidos”, concluindo que “[a] interpretação do artigo 141.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CPP efectuada no caso concreto, no sentido de que o cumprimento deste normativo se basta com a formulação de perguntas genéricas e abstractas, não concretizadoras das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar que determinaram a imputação ao arguido dos 72 ilícitos de índole sexual por que – só agora – vem indiciado é manifestamente inconstitucional, por violação do estatuído nos artigos 27.°, n.º 4, 28.°, n.º 1, e 32.° da CRP, que impõem ao juiz que conheça das causas que determinaram a detenção e as comunique ao arguido, imediatamente e de forma compreensível das razões da sua detenção ou prisão, interrogando-o e dando-lhe oportunidade de defesa”. A isto acresce que “a notificação ao arguido e/ou seus mandatários do despacho que ordenou a sua prisão preventiva não foi acompanhada da cópia das peças processuais ali indicadas e que integram a fundamentação de facto da decisão proferida e pressuposto do direito aplicável”, “omissão que inquina, irremediavelmente, a notificação efectuada e constitui manifesta violação das garantias de defesa do arguido”, pelo que “[f]oram assim manifesta e ostensivamente violados os princípios constitucionais vertidos nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° 1, da Lei Fundamental, preceitos que se reportam aos direitos fundamentais do arguido e ainda do seu artigo 32.°, n.° 1, onde se definem as garantias do processo criminal e asseguram todas as garantias de defesa, incluindo o recurso'. Na verdade, “o arguido só poderia exercer efectiva e cabalmente o seu direito de recurso, e com a eficácia possível nesta fase processual contribuir para o debate e esclarecimento da verdade, se conhecesse os elementos probatórios indiciários, os factos concretos, em que se apoiou a decisão que impôs a medida de coacção”; ora, “no decurso do interrogatório de arguido, com a notificação do despacho recorrido e tão-pouco posteriormente, não foram facultados ao recorrente quaisquer dos elementos probatórios que fundamentaram a decisão sub judice”, resultando “da tramitação dos presentes autos uma manifesta e inultrapassável impossibilidade de o arguido se poder defender dos factos indiciários que lhe são imputados, por desconhecimento dos mesmos e, consequentemente, de impugnar fundamentadamente o despacho recorrido, contrariando cabalmente a decisão proferida, quer na sua fundamentação de facto, quer no enquadramento jurídico-penal dos alegados fortes indícios, maxime, da verificação dos pressupostos de aplicação da prisão preventiva”.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 9 de Julho de 2003, negou provimento ao recurso do arguido, tendo, quanto às questões de inconstitucionalidade suscitadas, expendido o seguinte:
“b) Argumenta o arguido que ao despacho recorrido subjaz uma violação de garantias constitucionais de defesa, mormente as consagradas no artigo 32.° da Constituição da República, por lhe ter sido vedado o conhecimento das peças processuais essenciais à sua defesa.
Essas peças processuais são indicadas no despacho recorrido apenas em função da sua numeração nos presentes autos.
Se é certo que, para poder bem fundar uma correcta oposição ao decretamento de uma medida de coacção, é importante que o arguido possa ter um exacto conhecimento de todos os fundamentos de facto em que assenta a conclusão de Direito que pretende atacar, e logo é necessário que possa ter acesso aos elementos de prova nos quais se alicerça a medida de coacção que se pretende impugnar, também é certo inexistir, pelo menos actualmente, disposição expressa que contemple uma tal solicitação.
Sendo, aliás, que uma oposição a tal pretensão encontra assento na lei processual penal, em toda a disciplina que rege a matéria do segredo de justiça.
Deste modo, para dirimir a questão em apreço importa apreciar se in casu aquela disciplina se mostra conforme aos princípios constitucionais, ou se pelo contrário estes se encontrarão melhor salvaguardados com a defesa do indeferimento da pretensão do arguido.
No caso dos autos, o acesso do recorrente aos elementos de prova nos quais se alicerça o juízo de verificação dos pressupostos de facto e de direito da aplicação da medida de prisão preventiva implica, necessariamente, o conhecimento da identidade das testemunhas inquiridas e do teor dos seus depoimentos.
Porém, os factos averiguados nestes autos consubstanciam a prática de ilícitos que, pela natureza especialmente vulnerável das respectivas vítimas, o conhecimento por estas que o arguido está informado não apenas da sua identidade, a qual poderia eventualmente ser ocultada, mas sobretudo do teor dos seus depoimentos, através dos quais se obtém um esclarecimento sobre a identidade do depoente, pode afectar decisivamente a genuinidade e autenticidade dos seus depoimentos.
Acresce que esse conhecimento por parte das vítimas agravará inevitavelmente o processo de vitimização secundária inerente a qualquer processo judicial.
Sendo certo que não pode ser esquecido que nestes autos as vítimas são crianças e que sobre o Estado, de que os Tribunais são um órgão, impende um especial dever de protecção das crianças, consagrado no artigo 3.° da Convenção dos Direitos das Crianças, a qual por força da sua ratificação constitui direito interno de natureza idêntica à constitucional.
Há também que ter em conta que nestes autos aquela vitimização secundária se encontra especialmente agravada não apenas pela ampla repercussão social de tudo quanto a estes autos respeita, facto que é público e notório, mas também pela circunstância de as já referidas testemunhas não terem sido inquiridas nos termos do disposto no artigo 271.° do CPP, quando tal seria o legalmente exigível por força do disposto no artigo 28.°, n.º 2, da Lei n.º
93/99, de 14 de Julho. Disposição esta cuja aplicação se entende não estar dependente da regulamentação daquele diploma.
Os interesses ora em confronto – a possibilidade de o arguido poder melhor fundar a impugnação da aplicação da medida de prisão preventiva e a defesa da genuinidade dos depoimentos das vítimas, consubstanciada na garantia da sua segurança – gozam de idêntica tutela constitucional, sendo o primeiro por força do disposto no artigo 32.° da Constituição da República e o segundo por força do artigo 3.° da Convenção dos Direitos da Criança, norma de valor idêntico ao da norma constitucional.
Tendo em atenção todo o exposto, considera este Tribunal que tal confronto de interesses deve ser resolvido em favor da salvaguarda dos direitos das vítimas, dada a sua situação de especial vulnerabilidade, aliada à necessidade de defesa da obtenção da verdade dos factos sub judice.
Pelo que se entende que o não acesso do recorrente às peças processuais que fundam a aplicação da medida de coacção em causa neste recurso não representa uma violação dos princípios constitucionais.”
3. É contra este acórdão que pelo arguido vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e i), da Lei do Tribunal Constitucional, referindo-se no respectivo requerimento de interposição:
“4. O arguido/recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade dos normativos ínsitos no artigo 141.°, n.°s 1, 4 e 5, do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes é dada pelo Tribunal a quo e efectuada no caso concreto, no sentido de que o cumprimento deste normativo se basta com a formulação de perguntas genéricas e abstractas, não concretizadoras das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar que determinaram a imputação ao arguido dos 72 ilícitos de índole sexual por que – só agora – vem indiciado, porque a decisão assim proferida pelo M.mo Juiz de Instrução Criminal e agora confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa coarcta e limita, de forma legal e constitucionalmente inadmissível, as garantias de defesa asseguradas ao arguido, e em especial viola de forma ostensiva e manifesta o estatuído nos artigos 27.°, n.° 4, 28.°, n.° 1, e 32.° da Constituição da República Portuguesa, que impõem ao juiz que conheça das causas que determinaram a detenção e as comunique ao arguido, imediatamente e de forma compreensível as razões da sua detenção ou prisão, interrogando-o e dando-lhe oportunidade de defesa.
5. A interpretação que foi dada ao normativo ínsito no artigo 141.° pelo Tribunal a quo é inconstitucional, pois que impediu o aqui recorrente, no exercício do direito mais elementar de defesa que lhe é conferido, de prestar declarações «... confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida de coacção», com ostensiva e evidente violação das garantias de defesa asseguradas ao recorrente pelo artigo 32.º da Lei Fundamental.
6. O Tribunal da Relação de Lisboa, ao confirmar a decisão do M.mo Juiz de Instrução Criminal e consequentemente o entendimento que a esta subjaz, no sentido de entender «... que o não acesso do recorrente às peças processuais que fundam a aplicação da medida de coacção em causa neste recurso não representa uma violação dos princípios constitucionais», manteve, pois, uma posição manifesta e intoleravelmente inconstitucional e desta extraiu consequências também legal e constitucionalmente vedadas, o que deverá ser devidamente apreciado por V. Ex.as, uma vez que é incontornável, porque inadmissível, a violação do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa e bem assim do princípio da legalidade.
7. Assim, porque da interpretação da disposição processual penal ora em apreço – artigo 141.° – devidamente conjugada com os artigos 27.°, n.° 4,
28.°, n.º 1, e 32.° da Constituição da República Portuguesa decorre expressa e inequivocamente a obrigatoriedade de o juiz de instrução dar a conhecer e indicar os motivos da sua detenção ao arguido e a comunicar-lhe e expor-lhe os factos e as provas que a fundamentam, é manifesta e ostensivamente inconstitucional a interpretação dada a estes normativos pelo Tribunal a quo, inconstitucionalidade que agora se pretende ver apreciada e declarada.
8. A interpretação que lhes foi dada pelo M.mo Juiz de Instrução Criminal no despacho recorrido e reafirmada no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, viola e contende com os preceitos constitucionais plasmados nos artigos 27.°, 28.º e 32.º, em especial o seu n.° 1, 202.°, n.° 2,
203.° e 204.°, todos da Constituição da República Portuguesa.”
4. Neste Tribunal Constitucional, foi pelo relator providenciado pela junção de folha em falta na cópia da motivação do recurso do recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde era suscitada a questão de inconstitucionalidade, e determinada a solicitação de cópias da acta do primeiro interrogatório judicial do arguido e do despacho que na sua sequência determinou as medidas de coacção a aplicar, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso interposto desse despacho pelo Ministério Público, do despacho do magistrado do Ministério Público que determinou nova detenção do arguido e do mandado de detenção emitido na sequência desse despacho, por se entender que estas peças processuais poderiam vir a ter pertinência para o julgamento do presente recurso.
O recorrente apresentou alegações, que terminam com a formulação das seguintes conclusões:
“1. A inconstitucionalidade suscitada e aqui tratada norteou, ab initio, permanente, persistente e sistematicamente, a condução dos autos de inquérito ora em apreço.
2. Os presentes autos de recurso visam a fiscalização concreta da constitucionalidade do artigo 141.°, n.°s 1, 4 e 5, do Código de Processo Penal.
3. O recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade dos normativos ínsitos no artigo 141.°, n.°s 1, 4 e 5, do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes é dada pelo Tribunal a quo – Tribunal da Relação de Lisboa – e efectuada no caso concreto, questão que fora suscitada em sede de recurso, no sentido de que o cumprimento deste normativo se basta com a formulação de perguntas genéricas e abstractas, não concretizadoras das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar que determinaram a imputação ao recorrente dos 72 ilícitos de índole sexual por que – só agora – vem indiciado.
4. A decisão assim proferida coarcta e limita, de forma legal e constitucionalmente inadmissível, as garantias de defesa asseguradas ao arguido, e em especial viola de forma ostensiva e manifesta o estatuído nos artigos 27.°, n.° 4, 28.°, n.° l, e 32.° da Constituição da República Portuguesa, que impõem ao juiz que conheça das causas que determinaram a detenção e as comunique ao arguido, imediatamente e de forma compreensível as razões da sua detenção ou prisão, interrogando-o e dando-lhe oportunidade de defesa.
5. A interpretação que foi dada ao normativo ínsito no artigo 141.° pelo Tribunal a quo é inconstitucional, pois que impediu o aqui recorrente, no exercício do direito mais elementar de defesa que lhe é conferido, de prestar declarações «... confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida de coacção», com ostensiva e evidente violação das garantias de defesa asseguradas ao recorrente pelo artigo 32.° da Lei Fundamental.
6. O Tribunal da Relação de Lisboa, ao confirmar a decisão do M.mo Juiz de Instrução Criminal e consequentemente o entendimento que a esta subjaz, no sentido de entender «... que o não acesso do recorrente às peças processuais que fundam a aplicação da medida de coacção em causa neste recurso não representa uma violação dos princípios constitucionais», manteve, pois, uma posição manifesta e intoleravelmente inconstitucional e desta extraiu consequências também legal e constitucionalmente vedadas, o que deverá ser devidamente apreciado por V. Ex.as, uma vez que é incontornável, porque inadmissível, a violação do artigo 32.° da Constituição da Republica Portuguesa e bem assim do princípio da legalidade.
7. Assim, porque da interpretação da disposição processual penal ora em apreço – artigo 141.° – devidamente conjugada com os artigos 27.°, n.° 4,
28.°, n.º 1, e 32.° da Constituição da República Portuguesa decorre expressa e inequivocamente a obrigatoriedade de o juiz de instrução dar a conhecer e indicar os motivos da sua detenção ao arguido e a comunicar-lhe e expor-lhe os factos e as provas que a fundamentam, é manifesta e ostensivamente inconstitucional a interpretação dada a estes normativos pelo Tribunal a quo, inconstitucionalidade que agora se pretende ver apreciada e declarada nos termos e com os fundamentos supra descritos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos.
8. A interpretação que lhes foi dada pelo M.mo Juiz de Instrução Criminal no despacho recorrido e reafirmada no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, viola e contende com os preceitos constitucionais plasmados nos artigos 27.°, 28.° e 32.°, em especial o seu n.º 1, 202.°, n.° 2,
203.° e 204.°, todos da Constituição da República Portuguesa.
9. Questão que foi devida e fundamentadamente suscitada neste processo perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, na motivação do recurso interposto pelo arguido recorrente, em cumprimento do disposto no n.° 2 do artigo 72.° e do n.° 2 do artigo 75.°-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
10. Inconstitucional!
11. Manifestamente inconstitucional!
12. O entendimento perfilhado pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e, depois, confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa atenta, de forma intolerável, inaceitável e, até 31 de Janeiro de 2003, inimaginável, contra princípios processuais penais fundamentais, com assento constitucional, os quais, desde há muito e até àquela data, regiam o nosso sistema judicial porque
«A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado ... no respeito e na garantia da efectivação dos direitos e liberdades fundamentais
...», sendo que «O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática» (cf. artigo 2.° e n.° 2 do artigo 3.° da Constituição da República Portuguesa).
13. É esta a «pedra de toque» do presente recurso.
14. O recorrente interpôs recurso do acórdão condenatório proferido no âmbito dos autos de inquérito que correm termos na 2.ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal sob o n.° 1718/02.9 JD LSB, e mais concretamente do despacho proferido pelo M.mo Juiz do 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, proferido em 5 de Maio de 2003, que determinou que o aqui recorrente aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva.
15. No citado recurso, o recorrente impugnou, entre outros aspectos, a verificação e validade dos pressupostos de aplicação da prisão preventiva.
16. O então Tribunal a quo – Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa – sustentou a posição assumida na existência de fortes indícios da prática dos crimes imputados ao recorrente.
17. O que o recorrente desconhece em concreto quaisquer factos que permitam indiciá-lo pela prática dos ilícitos [que] lhe são imputados.
18. Da fundamentação da decisão que determinou que o recorrente aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito a prisão preventiva não se extrai nenhum facto concreto contra o qual o recorrente possa, fundamentada e eficazmente, como é seu direito, defender-se.
19. Nunca o recorrente teve acesso ou conhecimento de tais elementos.
20. Nunca teve oportunidade de deles se defender.
21. É este o cerne da questão.
22. No mínimo, o recorrente devia ter sido confrontado com factos concretos que, de algum modo, sustentassem os ilícitos de índole sexual que lhe foram imputados.
23. E não o foi.
24. É contra a posição assumida pelo Juiz de Instrução Criminal e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa que o recorrente aqui se insurge, convicta e veementemente.
25. A orientação que desde sempre tem pautado os presentes autos contende com as garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao recorrente no n.° 1 do artigo 32.° da Lei Fundamental, porquanto apesar de nem sequer ter sido deduzida qualquer acusação, até ao momento, o aqui recorrente, não teve oportunidade de conhecer os factos que lhe são imputados e de perante eles se defender.
26. O recorrente não teve acesso a quaisquer elementos probatórios e/ou teve conhecimento de factos indiciadores concretos, nomeadamente os identificados no despacho de 5 de Maio de 2003.
27. O que, por lei e constitucionalmente, se impunha.
28. Da leitura do auto de interrogatório é de imediata constatação que o recorrente apenas foi confrontado com questões genéricas e abstractas, no que concerne à imputação dos 72 crimes de abuso sexual de criança.
29. Não é suficiente, nos termos das disposições constitucionais e processuais penais que regem esta matéria, a simples enunciação e imputação de ilícitos.
30. Antes se exige a comunicação ao arguido dos factos concretos que sustentam uma tal imputação.
31. Não obstante decorrer do disposto no artigo 258.°, n.° 1, alínea c), do Código de Processo Penal a obrigatoriedade de enunciação dos factos que motivaram a detenção, naquele mandado não é efectuada a enunciação de quaisquer factos, mas tão-só a indicação das incriminações legais decorrentes de eventuais factos alegadamente praticados pelo arguido.
32. Esta violação do dever de dar a conhecer ao arguido os factos que sobre o mesmo impendem, comunicou-se nesses precisos termos ao interrogatório a que o recorrente foi agora sujeito, em flagrante violação do disposto no artigo 141.°, n.°s 1 e 4, do Código de Processo Penal, que obriga o juiz de instrução a indicar os motivos da detenção, a comunicar-lhe e expor-lhe os factos e as provas que a fundamentam.
33. Obrigação que o M.mo Juiz de Instrução Criminal não cumpriu porquanto se limitou à enunciação dos ilícitos penais determinantes da sua detenção e subsequente formulação das perguntas genéricas e abstractas constantes do auto de interrogatório.
34. Desta forma, violando inequivocamente o disposto no artigo
141.°, n.° 5, do Código de Processo Penal, o recorrente ficou impedido de, no exercício do direito mais elementar de defesa que lhe é conferido, de prestar declarações «... confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida de coacção».
35. Resulta ostensiva, evidente e flagrante a violação das garantias de defesa asseguradas ao recorrente, expressamente consagradas no artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
36. Inconstitucionalidade que devida e fundamentadamente foi invocada e que agora se pretende ver declarada por V. Ex.as, Ex.mos Senhores Juízes Conselheiros.
37. A interpretação do artigo 141.°, n.ºs 1, 4 e 5, do CPP efectuada no caso concreto, no sentido de que o cumprimento deste normativo se basta com a formulação de perguntas genéricas e abstractas, não concretizadoras das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar que determinaram a imputação ao recorrente arguido dos 72 ilícitos de índole sexual por que – só agora – vem o recorrente indiciado é manifestamente inconstitucional, por violação do estatuído nos artigos 27.°, n.° 4, 28.°, n.° 1, e 32.° da CRP, que impõem ao juiz que conheça das causas que determinaram a detenção e as comunique ao arguido, imediatamente e de forma compreensível das razões da sua detenção ou prisão, interrogando-o e dando-lhe oportunidade de defesa.
38. Tanto mais grave é a posição assumida porque a notificação ao recorrente e/ou seus mandatários do despacho que ordenou a sua prisão preventiva não foi acompanhada da cópia das peças processuais ali indicadas, que integram a fundamentação de facto da decisão proferida e pressuposto do direito aplicável.
39. Omissão que inquina, irremediavelmente, a notificação efectuada e constitui, igualmente, manifesta violação das garantias de defesa do arguido, aqui recorrente.
40. O Tribunal Constitucional decerto decidirá no sentido interpretativo aqui defendido pelo recorrente porquanto está em conformidade com as disposições processuais aplicáveis, mas sobretudo com as disposições constitucionais que regem esta matéria e que não suscitam quaisquer dúvidas.
41. Foram assim manifesta e ostensivamente violados os princípios constitucionais vertidos nos artigos 27.°, n.° 4, e 28.°, n.° l, da Lei Fundamental, preceitos que se reportam aos direitos fundamentais do arguido e ainda do seu artigo 32.°, n.° 1, onde se definem as garantias do processo criminal e asseguram todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
42. O arguido só podia ter exercido, efectiva e sustentadamente, o seu direito de recurso, e com a eficácia possível nesta fase processual contribuir para o debate e esclarecimento da verdade, se conhecesse os elementos probatórios indiciários, os factos concretos, em que se apoiou a decisão que impôs a medida de coacção.
43. Direito expressa, legal e constitucionalmente consagrado.
44. Porém, em momento algum foram facultados ao recorrente quaisquer dos elementos probatórios que fundamentaram a decisão sub judice.
45. Cabe agora a V. Ex.as apreciar e declarar, atento o quadro fáctico aqui traçado, a inconstitucionalidade suscitada.
46. Os fundamentos para declarar a inconstitucionalidade invocada existem, tanto mais que nem se conhece em que datas terão alegadamente ocorrido os factos agora imputados ao recorrente, elementos que se afiguram essenciais para a defesa do recorrente.
47. O que sobretudo aqui se refuta é o entendimento no sentido de que a fundamentação das decisões proferidas, assim delineada pelo Tribunal de Instrução Criminal e mantida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, é suficiente para manter o recorrente detido preventivamente, quando nunca este foi confrontado com quaisquer factos concretos que pudesse, de algum modo, contestar, com ostensiva violação dos seus mais básicos e elementares direitos de defesa.
48. Os magistrados judiciais com intervenção nos presentes autos, que deviam ter cuidado de sustentar as suas decisões num lastro factual suficientemente idóneo e seguro, antes se bastaram e tiveram por suficientes as imputações e suspeições que não só em momento algum foram transmitidas ao recorrente para que este as pudesse contraditar, como não merecem qualquer credibilidade, pelo que acima se expôs.
49. Eis o que se contesta, refuta e impugna, pois que o entendimento assim perfilhado é ilegal e inconstitucional por contender com as mais elementares e básicas garantias de defesa que ao recorrente – como a todos os arguidos – assistem.
50. Não in casu, é certo.
51. Salvo o sempre devido respeito, mal andaram o M.mo Juiz de Instrução Criminal e bem assim os Ex.mos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa.
52. Fundamentos por que deverão V. Ex.as decidir pela procedência do presente recurso e declarar a inconstitucionalidade suscitada nos termos requeridos pelo aqui recorrente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 80.° da Lei Orgânica sobre a Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, daí se extraindo todas as legais, mas sobretudo constitucionais, consequências.
Assim,
Declarando a inconstitucionalidade do artigo 141.°, n.°s 1, 4 e 5, do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes foi dada pelo M.mo Juiz de Instrução Criminal no despacho de 5 de Maio de 2003 e reafirmada no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, porque viola e contende com os preceitos constitucionais plasmados nos artigos 27.°, 28.° e 32.°, em especial o seu n.º 1, 202.°, n.° 2, 203.° e 204.°, todos da Constituição da República Portuguesa, e, consequentemente, ordenando que os autos baixem a este Tribunal da Relação para reforma da decisão, farão V. Ex.as Justiça!”
5. O representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional apresentou alegações, nas quais se preconiza o não conhecimento
(ao menos parcial) do objecto do recurso, quer por se entender não “fazer sentido a inclusão no objecto do recurso da norma constante do n.º 5 do artigo
141.º do Código de Processo Penal”, quer por se considerar que da dupla perspectiva em que a questão de constitucionalidade podia ser colocada – (i) não concretização dos factos imputados; e (ii) recusa de acesso a elementos probatórios, sendo que esta última, por seu turno, se desdobra (1) na recusa desse acesso no momento do interrogatório e (2) na mesma recusa no momento da elaboração do recurso da decisão que impôs a prisão preventiva –, a última não foi suscitada pelo arguido e, aliás, essa e a anterior careceriam de natureza normativa. A final, formula as seguintes conclusões:
“1.º – A norma constante do artigo 141.°, n.°s l e 4, do Código de Processo Penal, interpretada em termos de o juiz de instrução não ter de revelar ao arguido, aquando do interrogatório que precedeu a imposição da prisão preventiva, em termos irrestritos, a totalidade das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar que determinaram a imputação dos factos ilícitos – podendo e devendo proceder a uma ponderação concreta e casuística dos interesses conflituantes em presença, articulando o interesse do arguido em aceder irrestritamente aos autos e os interesses das vítimas e da eficácia da investigação criminal, limitadores de tal acesso –, não viola qualquer preceito ou princípio constitucional.
2.º – Ao Tribunal Constitucional apenas cabe sindicar da constitucionalidade do critério normativo acolhido no acórdão recorrido como ratio decidendi, não lhe competindo apreciar a constitucionalidade do concreto e casuístico acto ou decisão que – valorando tais interesses conflituantes à luz da peculiar situação dos autos – delimitou, em concreto, o âmbito do acesso aos meios probatórios, sujeitos ao segredo de justiça, por parte do arguido e seu defensor, especificando quais os elementos probatórios que podiam ser-lhe revelados.
3.º – Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.”
Determinada pelo relator a audição do recorrente quanto
às referidas objecções contidas na contra-alegação do Ministério Público, porque susceptíveis de conduzirem a um (ao menos parcial) não conhecimento do objecto do recurso, veio o mesmo responder, propugnando o seu desatendimento.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A) Delimitação do objecto do recurso
6. O recorrente, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, invoca as alíneas b) e i) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), mas nem nesse requerimento nem nas subsequentes alegações explicita que norma constante de acto legislativo terá visto a sua aplicação recusada pelo acórdão recorrido com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional ou terá sido aplicada em desconformidade com o anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional, pelo que não faz sentido a invocação da aludida alínea i). Limitado o fundamento do recurso à previsão da alínea b) do citado preceito, a sua admissibilidade e a delimitação do seu objecto pressupõem que a decisão recorrida haja aplicado (explícita ou implicitamente) norma (ou interpretação normativa) cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada pelo recorrente durante o processo, “de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Atendendo ao requerimento de interposição do presente recurso e subsequentes alegações, o que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie é a constitucionalidade da interpretação normativa dos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, que imputa às decisões das instâncias, no sentido de que, por um lado, no interrogatório judicial de arguido detido, é suficiente “a formulação de perguntas genéricas e abstractas, não concretizadoras das exactas circunstâncias de tempo, modo e lugar” que determinaram a imputação ao arguido dos 72 ilícitos de índole sexual por que vem indiciado (cf. conclusão 3.ª das respectivas alegações), e não está o juiz obrigado a comunicar ou expor ao arguido as provas em que se alicerça aquela imputação e que fundamentaram a sua detenção (cf. conclusão 7.ª), e de que, por outro lado, com a notificação da decisão judicial que impôs a prisão preventiva, não tem de ser facultado o acesso aos elementos probatórios, recolhidos no inquérito, que fundamentaram essa decisão, designadamente através de cópia das peças processuais invocadas nesse despacho, e que integram a sua fundamentação de facto (cf. conclusões 6.ª e 38.ª).
Os n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, invocados pelo recorrente como sendo os preceitos legais a que se reportam as interpretações normativas arguidas de inconstitucionais, dispõem o seguinte:
“1. O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.
(...)
4. Seguidamente, o juiz informa o arguido dos direitos referidos no artigo 61.º, n.º 1, explicando-lhos, se isso parecer necessário, conhece dos motivos da detenção, comunica-lhos e expõe-lhe os factos que lhe são imputados.
5. Prestando declarações, o arguido pode confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida da sanção.
(...)”
Como se referiu, nas contra-alegações apresentadas pelo representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional, preconiza-se o não conhecimento do objecto do recurso nas partes relativas:
– à norma constante do n.º 5 do artigo 141.º do CPP, por não fazer sentido a sua inclusão naquele objecto, pois não incide sobre o dever de informação ou esclarecimento a prestar pelo juiz, mas sobre o direito do arguido a prestar declarações;
– à questão da não comunicação, no decurso do interrogatório, dos elementos probatórios em que se fundamentou a imputação dos factos e a determinação da detenção, por carecer de natureza normativa, não cabendo ao Tribunal Constitucional sindicar da constitucionalidade “do concreto e casuístico acto ou decisão que – valorando tais interesses conflituantes [o interesse do arguido em aceder irrestritamente aos autos e os interesses das vítimas e da eficácia da investigação criminal, limitadores de tal acesso] à luz da peculiar situação dos autos – delimitou, em concreto, o âmbito do acesso aos meios probatórios, sujeitos ao segredo de justiça, por parte do arguido e seu defensor, especificando quais os elementos probatórios que podiam ser-lhe revelados”;
– à questão da não facultação, com a notificação do despacho que determinou a prisão preventiva, dos elementos probatórios em que este despacho se fundou, cujo conhecimento era necessário para a eficácia do recurso interposto dessa decisão, por tal questão não ter sido suscitada pelo recorrente como questão de inconstitucionalidade normativa, carecendo desta natureza a questão colocada em torno da alegada nulidade da notificação do despacho que impôs a prisão preventiva.
7. Quanto à primeira objecção do Ministério Público, há que reconhecer que a disposição legal directamente conexionada com as interpretações arguidas de inconstitucionais no que concerne ao interrogatório do arguido, é a do n.º 4 do artigo 141.º do CPP, pois é aí que se disciplina o conteúdo do interrogatório judicial do arguido detido. O n.º 1 do mesmo preceito regula a apresentação do arguido detido ao juiz de instrução e o prazo máximo para a efectivação do seu interrogatório, não se suscitando nestes autos qualquer questão de inconstitucionalidade relativamente a estes comandos legais. Por outro lado, a referência ao n.º 5 do artigo 141.º, feita pelo recorrente, compreende-se apenas porque, na tese por ele defendida, a não exposição concretizada dos factos imputados e a não comunicação dos elementos probatórios impediria o arguido de exercitar as faculdades nesse preceito previstas: ele não poderia “confessar ou negar os factos ou a sua participação neles [nem] indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida da sanção”, já que ignora quais sejam esses factos em concreto, nem sustentar a falsidade ou fragilidade da prova recolhida no inquérito, uma vez que lhe é vedado o conhecimento das provas em que se fundamenta a imputação dos factos.
Assim vistas as coisas, poderá entender-se, como vem sustentado pelo Ministério Público, não “fazer sentido a inclusão no objecto do recurso da norma constante do n.º 5 do artigo 141.º do Código de Processo Penal”, mas daí não deriva directamente qualquer redução do objecto do presente recurso na parte relativa às questões suscitadas a propósito do interrogatório do arguido. É que este objecto respeita a determinada interpretação normativa, cujos sentido e extensão se mantêm os mesmos quer ela seja reportada apenas ao n.º 4 & 8722; como, em rigor, será o mais correcto & 8722;, ou também ao n.º 1, ou ainda ao n.º 5, todos do artigo 141.º do CPP.
8. Embora nas contra-alegações do Ministério Público nada se objecte quanto ao conhecimento da primeira questão de constitucionalidade suscitada, relativa à não concretização, no decurso do interrogatório, dos factos imputados ao arguido, interessa apurar se a interpretação normativa arguida de inconstitucional foi a efectivamente aplicada pelas instâncias. Apuramento que, neste momento, será feito na perspectiva do preenchimento deste pressuposto do recurso previsto no artigo
70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, deixando-se para mais tarde (infra, n.º 13), por respeitar já ao mérito do recurso, a apreciação da conformidade constitucional dessa interpretação normativa.
Embora, como já se referiu, a questão de inconstitucionalidade agora em causa tivesse sido adequadamente suscitada pelo recorrente na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, é questionável se o acórdão recorrido dela conheceu. Da transcrição integral a que se procedeu da fundamentação do acórdão recorrido na parte relativa à apreciação das questões de inconstitucionalidade (supra, n.º 2) parece resultar que a única questão aí definida e tratada foi a da alegada violação das garantias constitucionais de defesa do recorrente “por lhe ter sido vedado o conhecimento das peças processuais essenciais à sua defesa”, já que “essas peças processuais são indicadas no despacho recorrido apenas em função da sua numeração nos presentes autos”, como se lê nos dois parágrafos introdutórios dessa parte do acórdão. É certo que, no subsequente parágrafo, se faz referência à importância, para o arguido “poder bem fundar uma correcta oposição ao decretamento de uma medida de coacção”, do “exacto conhecimento de todos os fundamentos de facto em que assenta a conclusão de Direito que pretende atacar”. No entanto, quer se entenda que esta referência aos fundamentos de facto da decisão que decretou a prisão preventiva respeita apenas à consistência dos indícios em que assenta a suspeita da prática dos crimes indiciados e à ocorrência das situações de facto que justificam a aplicação dessa medida de coacção (hipótese em que o acórdão recorrido terá omitido a apreciação da questão relativa à falta de comunicação ao arguido, no decurso do seu interrogatório, dos factos que lhe são imputados com a concretização necessária ao exercício do seu direito de defesa & 8722; omissão esta que, no entanto, não impede o arguido de suscitar perante o Tribunal Constitucional a apreciação dessa questão, não lhe sendo exigível a prévia arguição da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia), quer se entenda a apontada expressão como respeitando também à comunicação dos factos, sempre se concluirá que o acórdão recorrido confirmou, implícita ou explicitamente, o critério seguido pela decisão da 1.ª instância.
Para o apuramento da interpretação e aplicação efectivamente feitas pelo tribunal de 1.ª instância, e confirmadas pelo acórdão recorrido, da norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, no que concerne à exposição pelo juiz ao arguido “dos factos que lhe são imputados”, surge como elemento de especial relevância que o mandatário do recorrente, ao pronunciar-se contra a propugnada aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, imediatamente antes da prolação do despacho judicial que a determinou, tenha aduzido “não terem sido referidos o local das alegadas práticas sexuais, o momento em que as mesmas ocorreram, as idades dos alegados intervenientes e outros elementos aptos a permitir ao arguido um esclarecimento mínimo dos factos que agora lhe estão a ser imputados”. Esta acusação, que consubstancia manifestação de discordância com o procedimento adoptado pelo tribunal, não foi contrariada por nenhum dos restantes intervenientes processuais presentes no interrogatório nem no despacho que determinou a prisão preventiva. Essa acusação foi retomada na motivação do recurso para a Relação, não tendo o acórdão recorrido questionado a veracidade das afirmações do recorrente no sentido da não concretização dos factos imputados.
Cumpre, assim, concluir ter o acórdão recorrido acolhido, ao menos implicitamente, a interpretação normativa arguida de inconstitucional pelo recorrente, no sentido de que a exposição, pelo juiz ao arguido, dos factos que lhe são imputados, prevista no n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, se basta com a formulação de perguntas genéricas e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, local e modo em que tais factos terão ocorrido.
9. Quanto à questão de inconstitucionalidade relativa à não comunicação, no decurso do interrogatório, dos elementos probatórios em que se alicerçou a imputação dos factos e a determinação da detenção, entende-se não ser de acolher a objecção ao conhecimento dessa questão por a mesma carecer de natureza normativa. Na verdade, embora inicialmente o acórdão recorrido tenha procedido à formulação de um critério geral de ponderação a que se deveria seguir a sua aplicação concreta, tendo em conta as particulares especificidades não apenas do processo em causa, mas também dos individuais elementos probatórios cujo acesso seria relevante (os depoimentos de fls. 2096 a 2104,
2408 a 2410 e 3975 a 3981 dos autos), o certo é que este último momento de apreciação casuística não chegou a ocorrer, tendo o tribunal vindo a operar, como ratio decidendi, com outro critério, segundo o qual o acesso foi negado atendendo a factores genéricos, comuns a todos os processos em que estejam em causa crimes de abuso sexual de criança.
Não se pode, assim, aceitar que a presente questão de inconstitucionalidade se reporte à própria decisão recorrida, que, na aplicação ao caso concreto de um critério normativo previamente enunciado, teria especificado quais os elementos probatórios relativos à imputação de ilícitos de natureza sexual que podiam e quais os que não podiam ser comunicados ao arguido no decurso do seu interrogatório (especificação esta que, de todo em todo, não ocorreu). A inconstitucionalidade é imputada a um critério normativo, e não a uma decisão judicial em si mesma considerada, pelo que nenhum impedimento há ao seu conhecimento.
10. Finalmente, quanto à questão de constitucionalidade suscitada a propósito da notificação da decisão que impôs a prisão preventiva desacompanhada de cópias das peças processuais para que essa decisão remete e que integram a sua fundamentação, entende-se que da mesma não se pode conhecer, não por não ter sido suscitada (dado que as conclusões 112.ª, 113.ª e 117.ª da motivação do recurso para a Relação, embora de forma menos explícita que a propósito da questão da não concretização dos factos, suscitam a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa aí delineada e, fundamentalmente, dado que o acórdão recorrido se pronunciou expressamente sobre a questão, o que significa que se apercebeu que tinha de tratar dela & 8722; cf. artigo 72.º, n.º 2, da LTC), nem por carecer de natureza normativa (pelas razões indicadas no número anterior), mas antes por se evidenciar como inidónea a base legal escolhida pelo recorrente para suscitar esta questão de constitucionalidade. Na verdade, respeitando ela ao momento processual da notificação da decisão que determinou a prisão preventiva e subsequente impugnação dessa decisão, nenhum ponto de contacto tem com as normas do artigo
141.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CPP, que, como se viu, regulam a tramitação do primeiro interrogatório judicial de arguido detido. Os preceitos legais para este efeito relevantes seriam os relativos à fundamentação e notificação das decisões judiciais, mas não os que regulam a apresentação do arguido detido ao juiz de instrução e o prazo para a efectivação do seu interrogatório (n.º 1), as informações, explicações e comunicações que o juiz deve prestar ao arguido detido aquando do seu interrogatório (n.º 4) e os objectivos das declarações que o arguido entenda prestar (n.º 5).
Impõe-se, assim, a exclusão do objecto do presente recurso desta específica questão.
11. Conclui-se, assim, que constitui objecto do presente recurso a questão da inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas genéricas e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, local e modo em que tais factos terão ocorrido, e sem comunicação dos elementos probatórios em que se alicerça aquela imputação e que determinaram a sua detenção.
B) Apreciação do mérito do recurso
12. Dispõe o n.º 4 do artigo 27.º da CRP que “Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos”, preceituando o n.º 1 do subsequente artigo 28.º que “A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa”. Estas específicas estatuições constituem concretização, quanto aos momentos processuais nelas previstos
(privação inicial da liberdade e apreciação judicial da detenção), do princípio geral, plasmado no n.º 1 do artigo 32.º, de que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
Em consonância com aqueles comandos, o artigo 258.º do CPP determina que os mandados de detenção (emitidos na sequência de ordem do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público) devem conter “a indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam” (n.º 1, alínea c)), sendo entregue ao detido uma das cópias do mandado (n.º 3). No prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, o arguido é interrogado pelo juiz de instrução, ao qual
é presente com a indicação dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam (artigo 141.º, n.º 1), devendo, nesse interrogatório judicial de arguido detido, o juiz expor-lhe os factos que lhe são imputados (artigo 141.º, n.º 4), podendo o arguido, se optar por prestar declarações, confessar ou negar os factos ou a sua participação neles e indicar as causas que possam excluir a ilicitude ou a culpa, bem como quaisquer circunstâncias que possam relevar para a determinação da sua responsabilidade ou da medida da sanção (artigo 141.º, n.º
5).
Embora inserido na fase processual do inquérito & 8722; cujo dominus é o Ministério Público & 8722;, o interrogatório judicial de arguido detido
é um acto jurisdicional que tem funções eminentemente garantísticas e não de investigação ou de recolha de prova. Trata-se de um acto subordinado ao princípio do contraditório, em que o arguido surge como sujeito processual, e não como objecto da investigação, e em que o juiz de instrução deve tentar minorar, na medida do possível, a desigualdade inicial de que partem Ministério Público e arguido quanto ao conhecimento dos factos investigados e da prova recolhida.
13. Nesta perspectiva, surge como crucial a comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados.
Face às disposições paralelas do artigo 5.º, n.ºs 2 e 4, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem & 8722; que, respectivamente, estipulam que “qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela”, e que “qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal” & 8722;, refere Régis de Gouttes (em Louis-Edmond Pettiti e outros, La Convention Européenne des Droits de l’Homme – Commentaire article par article, ed. Economica, Paris, 1995, págs. 203-210), que “o direito de saber porque se foi detido é indubitavelmente um dos direitos primordiais do indivíduo”, pois “saber que não se pode ser detido sem conhecer as respectivas razões é a primeira condição da segurança pessoal, é o teste de que se vive numa sociedade democrática e num verdadeiro Estado de Direito”. Por outro lado,
“conhecer os motivos da detenção é também a condição sine qua non de uma verdadeira «igualdade de armas»: para se poder defender, para se poder prevalecer das garantias de um processo equitativo, é preciso primeiro saber as razões pelas quais se foi detido”, sob pena de “não apenas ser negado o princípio da presunção de inocência mas também a faculdade de a pessoa detida contestar o bem fundado das suspeitas que pesam sobre ela e de recorrer para um tribunal superior a fim de ser apreciada a legalidade da sua detenção”.
Por seu turno, Ireneu Cabral Barreto (A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra,
1999, págs. 102-103), sintetizando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recorda que “o detido deve saber a razão de ser da sua privação da liberdade” (Acórdão Fox, Campbell e Hartley, Série A, n.º 182, pág.
19, § 40), conjugando-se o n.º 2 com o n.º 4 deste artigo 5.º, pois “quem tem o direito de introduzir um recurso sobre as condições da sua privação de liberdade, só poderá utilizar eficazmente este direito se lhe forem comunicados, no mais curto prazo, os factos e as regras jurídicas invocadas para o privar dessa liberdade” (Acórdão X/Reino Unido, Série A, n.º 46, pág. 27, § 66, e Acórdão van der Leer, Série A, n.º 170-A, pág. 13, § 28). Embora a obrigação de informação prescrita no n.º 2 deste artigo 5.º seja menos estrita que a referida no artigo 6.º, n.º 3, alínea a) (relativa à comunicação da acusação), e não seja exigível que, no próprio momento da detenção, seja comunicada uma descrição completa das suspeitas que pesam sobre o detido, os factos comunicados devem, contudo, permitir-lhe contestar o bem fundado das suspeitas, sendo o grau de exigência de pormenorização variável consoante o conhecimento que a pessoa detida já tenha, devido a anteriores participações em actos processuais, do conteúdo dessas suspeitas.
Na comunicação dos factos, não se pode partir da presunção da culpabilidade do arguido, mas antes da presunção da sua inocência
(artigo 32.º, n.º 2, da CRP). Assim, o critério orientador nesta matéria deve ser o seguinte: a comunicação dos factos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico-criminal, por forma a que lhe seja dada “oportunidade de defesa” (artigo 28.º, n.º 1, da CRP).
No caso dos autos, resulta dos elementos cuja remessa foi determinada pelo relator (cf. supra, n.º 4) que, enquanto no despacho determinativo da detenção se mencionam factos concretos (a manutenção pelo arguido, durante um ano, nos anos de 1999/2000, numa vivenda em --------------, quase todos os fins de semana, pelo menos de quinze em quinze dias, de contactos sexuais com um aluno da B., cujo nome se indica), conforme resultaria de fls.
2096 a 2104, 2408 a 2410 e 3975 a 3981 dos autos, assentando nesses factos a imputação ao arguido de, pelo menos, 48 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 172.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, com pena de prisão de 3 a 10 anos, e 24 crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 172.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, com pena de prisão de
1 a 8 anos, já no subsequente mandado de detenção (reproduzido supra, n.º 1), aquela materialidade é omitida e apenas se refere o número e tipo de crimes indiciados.
Aquando da detenção do arguido foi-lhe entregue cópia deste mandado, mas não do despacho determinativo dessa detenção, e a análise do auto de interrogatório e de peças processuais posteriores permite concluir, com a necessária segurança, que aquela materialidade não foi comunicada ao arguido, mas apenas o número e tipos legais de crimes que lhe eram imputados, para além de ser possível deduzir, atento o contexto sobejamente conhecido do processo em causa, que as eventuais vítimas teriam sido alunos ou ex-alunos da B..
É certo que, na parte impressa do auto de interrogatório, se refere que o juiz “informou o arguido dos direitos e deveres que lhe são conferidos pelo artigo 61.º do Código de Processo Penal, comunicando-lhe os motivos da sua detenção, expôs-lhe os factos que lhe são imputados”. Mas, para além de se tratar de fórmula previamente impressa, que reproduz a formulação legal do n.º 4 do artigo 141.º do CPP, a própria expressão
“factos” é ambígua, bastando para tanto recordar que, no precedente mandado de detenção, ela surge para mencionar a existência de indícios da prática de crimes cujo número se indica e que se descrevem pela designação legal e pela menção dos artigos do Código Penal que os prevêem e punem.
Acresce que, quer nesse auto, quer em peças processuais posteriores, se evidencia que nem o arguido nem outros intervenientes processuais se terão apercebido de que afinal os 72 crimes respeitam à reiterada prática de actos sexuais sempre com o mesmo menor nem do período temporal em que os mesmos ocorreram.
Naquele interrogatório, ocorrido em 5 de Maio de 2003, as declarações do arguido, negando genericamente ter praticado “qualquer acto sexual com crianças menores de 16 anos ou com adolescentes entre os 16 e os 18, durante toda a sua vida” e designadamente ter praticado “qualquer acto de coito anal, masturbação ou coito oral com rapazes e/ou raparigas” e aduzindo obstáculo
à prática de determinados actos (cf. fls. 70), não evidencia conhecimento da apontada materialidade concreta, constituindo defesa passível de ser deduzida face à mera descrição legal dos tipos de crimes que lhe eram imputados. Por outro lado, a motivação do recurso do arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa evidencia não se ter ele apercebido da apontada materialidade concreta, designadamente quanto à existência de uma única vítima e quanto à data dos factos (1999/2000), que seriam elementos relevantes para contrariar a afirmação da existência de risco na continuação da actividade criminosa, alicerçada numa alegada “compulsividade que caracteriza os comportamentos pedófilos”.
Em face do exposto, impõe-se a conclusão de que o critério normativo seguido, do qual resultou a não comunicação ao arguido ora recorrente dos factos concretos que lhe eram imputados não permite assegurar a sua oportunidade de defesa em relação às causas que determinaram a sua detenção
(artigo 28.º, n.º 1, da CRP). Numa situação, como a presente, que supostamente se prolongou ao longo de um ano, com prática reiterada de actos de índole sexual, não seria, certamente, exigível uma exaustiva pormenorização, com indicação precisa das datas de cada um desses actos, do conteúdo concreto de cada um deles ou da respectiva duração. Mas seria indispensável que ao arguido fosse dado conhecimento das circunstâncias essenciais à sua defesa. O que não implicava que lhe fossem comunicados todos os elementos já conhecidos dos autos, podendo o tribunal realizar um juízo de ponderação dos interesses conflituantes, eventualmente conducentes a delimitar em concreto o alcance dessa comunicação. Ponto é que – repete-se – lhe sejam comunicados os elementos essenciais à sua defesa.
Ao interpretar a norma do n.º 4 do artigo 141.º do CPP como dispensando esta concretização mínima, as instâncias violaram o disposto nos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP.
14. Quanto à não comunicação dos elementos probatórios, o acórdão recorrido considerou-a legítima com base quer nas limitações decorrentes do segredo de justiça quer na protecção da especial vulnerabilidade das crianças que terão sido vítimas dos crimes em causa, invocando, a este propósito, a Convenção dos Direitos da Criança e o artigo 28.º, n.º 2, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho.
Relativamente ao segredo de justiça interno, aqui em causa, não se ignora que a alínea a) do n.º 4 do artigo 86.º do CPP veda, em regra, a “tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que [os participantes processuais] não tenham o direito (...) de assistir” e que o n.º 2 do artigo 89.º só lhes consente o “acesso a auto na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir”. Trata-se, porém, de uma proibição não absoluta, como o n.º 5 do artigo 86.º, para que também remete o n.º 2 do artigo 89.º, evidencia, e que parte significativa da doutrina não tem hesitado em qualificar de inconstitucional sempre que dela derive uma limitação desproporcionada dos direitos de defesa do arguido.
Como refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III vol., 2.ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 101), “relativamente aos actos jurisdicionais atinentes à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial importa que sejam públicos e que o arguido tenha efectivamente meios de se defender, o que passa pelo conhecimento das provas contra ele carreadas e que na perspectiva da acusação justificam a aplicação de medidas de segurança”. É que, como se lê no II volume da mesma obra (1993, pág.
223), “uma medida de coacção representa sempre a restrição da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes se tenha dado a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar”.
Subscrevendo essas críticas, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (“O segredo de justiça em processo penal”, Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Ministério da Justiça, Lisboa,
1995, págs. 223-234, em especial págs. 228-229) sublinha que “não conhecendo os indícios contra si reunidos, a defesa resulta extremamente dificultada, impossível muitas vezes”, sustentando que “na hipótese de serem aplicadas ao arguido medidas de coacção, especialmente no caso de ser determinada a prisão preventiva, impunha-se que lhe fossem logo comunicados os elementos de prova já recolhidos nos autos, para que ele pudesse defender-se, quer apresentando provas, quer requerendo diligências de investigação em ordem a ilidir ou enfraquecer os indícios da sua responsabilidade”, sob pena de “esta limitação do direito do arguido à informação corre[r] o risco de atentar contra o artigo
32.º, n.º 1, da Constituição”.
A conjugação entre o direito de defesa do arguido e o segredo de justiça foi objecto de tratamento por este Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 121/97 (Diário da República, II Série, n.º 100, de 30 de Abril de
1997, pág. 5148; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, pág. 146; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., pág. 313), embora o recurso onde esse aresto foi proferido respeitasse já à fase de interposição de recurso do despacho determinativo da prisão preventiva (sobre o tema, cf. Maria da Assunção E. Esteves, “A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de justiça”, em O Processo Penal em Revisão – Comunicações, Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 1998, págs. 123-131, republicado em Estudos de Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, págs. 145-154).
Após exposição da evolução do regime legal sobre segredo de justiça e de relevantes elementos de direito comparado, esse Acórdão n.º
121/97 consigna:
“10. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Lamy/Reino da Bélgica veio julgar, através de acórdão de 30 de Março de 1989, tirado por unanimidade, que não era respeitada a igualdade de armas se o arguido ou o seu advogado, que pretendesse impugnar a decisão que lhe impusera a prisão preventiva, não tivesse acesso às peças processuais onde estavam os elementos que serviram para fundamentar tal decisão, ao passo que o Ministério Público delas tinha conhecimento e delas se servia para defender a manutenção da prisão preventiva. Ao não ser respeitada a igualdade de armas entre a acusação e a defesa, daí resultava, segundo a mesma decisão, que o processo penal não era verdadeiramente contraditório, pelo que era violado o artigo 5.º, n.º 4, daquela Convenção (acórdão integralmente publicado em Sub Judice – Justiça e Sociedade, Novos Estilos, n.º 11, Novembro de 1994, págs. 201 a 208, e também parcialmente na Revue Universelle des Droits de l' Homme, vol. 1, 1989, págs. 124 e seguintes).
No caso Lamy, o arguido era um cidadão belga, gerente de uma sociedade de responsabilidade limitada que se apresentara à falência, vindo aquele a ser responsabilizado pela prática do crime de insolvência dolosa. Preso preventivamente, impugnou o arguido por recurso a decisão de aplicação dessa medida de coacção, sem ter tido acesso a todas as peças do processo. No recurso de cassação suscitou a questão da falta de acesso ao processo, ao ter-se apercebido de que o tribunal de segunda instância de Liège se baseara em relatórios da polícia judiciária cujo conteúdo era desconhecido do recorrente e do seu advogado para manter a decisão que decretara a prisão preventiva. Face à improcedência do seu recurso no Tribunal de Cassação belga, o arguido recorreu
às instâncias europeias. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem aceitou a sua tese, considerando ter sido violado o n.º 4 do artigo 5.º da CEDH. Escreveu-se nessa decisão:
«O Tribunal, tal como a Comissão, verificou que, devido à interpretação que a jurisprudência deu à lei, o advogado do requerente não pôde, durante os primeiros trinta dias da prisão preventiva, conhecer nenhum dado dos autos e especialmente dos relatórios elaborados pelo juiz de instrução e pela polícia judiciária de Verniers. Sucedeu assim concretamente no momento da primeira comparência perante a Secção que tinha de se pronunciar sobre a confirmação do mandado de prisão (...). O advogado não tinha a possibilidade de se opor eficazmente às declarações ou argumentos que o ministério público deduzira dos referidos documentos.
Era fundamental para o requerente ter esses documentos à sua disposição nesse momento crucial do processo, em que o tribunal tinha de decidir se prolongava ou dava por finda a prisão. Em especial, esta possibilidade teria permitido ao advogado do senhor Lamy expor os seus pontos de vista sobre as declarações e a atitude dos demais acusados (...). Na opinião do Tribunal, o exame dos documentos referidos era, portanto, indispensável para discutir eficazmente a legalidade do mandado de prisão.
Há uma relação demasiado estreita entre a necessidade da prisão preventiva e a posterior apreciação da culpabilidade para que se possa recusar a consulta dos autos no primeiro caso quando a lei a exige no segundo.
Ao passo que o procurador da Coroa conhecia os autos na sua totalidade, a tramitação processual não dava ao requerente a possibilidade de impugnar adequadamente os motivos invocados para justificar a prisão preventiva. Uma vez que não garantia a igualdade de armas, o processo não era realmente contraditório (veja-se, mutatis mutandis, a anteriormente citada sentença Sánchez-Reisse, série A, n.º 107, pág. 19, ponto 51).
Por conseguinte, foi violado o artigo 5.º, n.º 4.» (n.º 29)
11. (...)
12. Tendo presentes os dados doutrinais e de direito comparado carreados para os autos, importa decidir a questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente.
Ora, tem-se por seguro que o n.º 2 do artigo 89.º do CPP, conjugado com o n.º 1 do artigo 86.º do mesmo diploma, viola a Constituição quando impede, sempre e em quaisquer circunstâncias, fora das situações excepcionais previstas na primeira daquelas normas, o acesso do arguido ao auto na fase de inquérito, nomeadamente quando este pretenda impugnar por recurso o eventual despacho de manutenção da prisão preventiva.
A norma do n.º 2 do artigo 89.º do CPP procede a uma avaliação abstracta e rígida dos riscos de acesso do arguido ao auto, impedindo que o juiz possa valorar in concreto os interesses conflituantes em presença, o do arguido em conhecer os indícios que serviram de fundamento à decisão de manutenção de uma medida de coacção tão gravosa para a sua liberdade, como é a prisão preventiva, e os do Estado em assegurar as finalidades do processo penal, nomeadamente os interesses relativos à garantia de que a investigação do crime se fará em condições de eficácia, a preocupação de que o arguido não procurará subtrair-se à acção da Justiça ou cometer novos crimes, ou a pretensão de assegurar a subsistência dos meios probatórios já reunidos, evitando a sua eventual destruição.
Deve notar-se que, durante a fase de inquérito, em especial à medida que este vai decorrendo, se vão inevitavelmente consolidando ou enfraquecendo os indícios que motivaram a aplicação de uma medida de coacção ao arguido, por força das actividades de investigação que se vão desenrolando. É por isso que a lei processual penal permite ao juiz de instrução que revogue as medidas de coacção por ele decretadas (artigo 212.º do CPP), e impõe mesmo, quando tenha sido decretada a prisão preventiva, o reexame oficioso da subsistência dos pressupostos da medida pelo juiz de instrução de três em três meses (artigo
213.º do CPP).
Neste quadro legal, não é possível sustentar que os princípios do contraditório e da igualdade de armas imponham ao legislador que consagre, em todos os casos, um acesso irrestrito e ilimitado aos autos na fase de inquérito pelo arguido, seja para recorrer do despacho que impôs a prisão preventiva, seja para requerer a sua revogação ou substituição e, porventura, recorrer do despacho que sobre tal requerimento vier a ser proferido (artigo 212.º do CPP). De facto, as circunstâncias podem variar de caso para caso, no que toca ao tipo de crime investigado e ao próprio grau de desenvolvimento das actividades de recolha da prova.
Mas o princípio do asseguramento de todas as garantias de defesa ao arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) não se compatibiliza com a solução do artigo 89.º, n.º 1, do CPP na medida em que este impede que o juiz faça naqueles casos uma apreciação em concreto da possibilidade de acesso do mandatário do arguido aos autos. Na verdade, importa fazer notar que a possibilidade de o arguido, sujeito a prisão preventiva, conseguir impugnar, através de advogado, a legalidade da aplicação da medida de coacção se poderá tornar eminentemente formal, se não puder ter acesso aos autos para saber quais são os «fortes indícios da prática do crime», ou quaisquer outros elementos relevantes para a determinação ou manutenção da prisão preventiva.
É, também, seguro que o Ministério Público poderá motivar não só a resposta ao recurso como também responder aos requerimentos destinados a fazer revogar a prisão preventiva, dispondo de livre e incondicionado acesso aos autos.
Não obstante caber ao Ministério Público a direcção do inquérito e não se poder falar, em absoluto, numa igualdade de armas entre o Ministério Público e o arguido, – pondo-se, assim, ex natura rerum a questão da igualdade de armas em processo penal em moldes diversos do que em processo civil (cf., por exemplo, além do citado Acórdão n.º 497/96, os Acórdãos n.ºs 132/92, 611/94 e
223/95, publicados no Diário da República, II Série, n.º 169, de 24 de Julho de
1992, n.ºs 4, de 5 de Janeiro de 1995, e n.º 146, de 27 de Junho de 1995, respectivamente) – sempre que o arguido reaja contra a prisão preventiva, o Ministério Público pode actuar processualmente como opositor da tese sustentada por aquele. Nesse caso, vedando a lei, sempre e em qualquer caso, o acesso aos autos haverá violação dos princípios do contraditório e do acesso aos tribunais, não se garantindo ao réu todas as garantias de defesa previstas e asseguradas pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Isto só não deverá ser assim se houver razões ponderosas que impeçam, por força de uma avaliação concreta das circunstâncias do caso, a autorização de acesso aos autos, dados os riscos ligados a tal acesso, nomeadamente quanto a actividades probatórias ainda não concluídas respeitantes aos factos ilícitos investigados, não se traduzindo, em tal caso, a recusa de acesso – em despacho fundamentado – em restrição excessiva, dados os diferentes interesses e valores em jogo.
Quando a entidade recorrida sustenta, nas contra-alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, que o objectivo confessado do arguido recorrente é «o de poder sindicar a legalidade do despacho que lhe aplicou a medida de prisão preventiva, e não propriamente contrariar a imputação que lhe
é feita – e na possibilidade de o fazer é que se concretiza o direito que invoca» (a fls. 85 dos autos), há-de convir-se que esse argumento não é decisivo para a resolução do recurso sub judicio: será essencialmente na fase de instrução, se vier a ocorrer, que o arguido poderá diligenciar no sentido de infirmar a acusação e de evitar ser pronunciado; na fase do inquérito, não havendo ainda acusação, a defesa do arguido há-de ter também por objecto a medida de coacção que lhe foi imposta, se entender que a mesma lhe foi ilegalmente aplicada. Não podem, por isso, cindir-se os dois momentos processuais e dizer-se que as garantias de defesa só têm de ser asseguradas na fase de instrução.
A solução legal que resulta da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 86.º e do n.º 2 do artigo 89.º do CPP é violadora do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, impedindo, de forma desproporcionada, que o juiz autorize o acesso aos autos, quando de tal acesso não decorram riscos para as actividades de recolha da prova, ou inconvenientes sérios para a conclusão do inquérito, nomeadamente quando, como no caso dos autos, já passou um certo período de tempo após o momento de detenção do arguido.
Foi seguramente com base em idêntico juízo que, no caso Lamy, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou violador do princípio da igualdade de armas, na fase de recurso da decisão de manutenção da prisão preventiva, a privação do arguido e do seu advogado de acesso a determinados relatórios policiais referentes a actividades probatórias já concluídas, não tendo detectado razões ponderosas que obstassem a tal acesso.”
Ainda com pertinência para o presente caso, interessa referir o Acórdão n.º 147/00 deste Tribunal Constitucional (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 495, pág. 15, e Acórdãos do Tribunal Constitucional,
46.º vol., pág. 551), em que na base do juízo de não inconstitucionalidade da norma do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido de considerar mera irregularidade, sanável por falta de impugnação, o despacho que decreta a prisão preventiva fundamentado por remissão para as razões, que faz suas, de outras peças processuais (promoção do Ministério Público que, por seu turno, remetia para as razões constantes de um despacho de inspector da Polícia Judiciária), esteve a constatação de que não se tratava de um caso-limite em que se poderiam suscitar dúvidas de constitucionalidade por, “pelo facto da remissão, a acessibilidade dos fundamentos se torna[r] labiríntica ou particularmente complexa”.
Relativamente à possibilidade de acesso a elementos constantes do processo, quer para a pessoa detida poder contestar perante o juiz que irá apreciar a legalidade da detenção o bem fundado da suspeita da autoria dos factos que concretamente lhe são imputados e dos pressupostos de aplicação de medida de coacção, quer para posteriormente impugnar a decisão desse juiz que haja validado a detenção e imposto, designadamente, medida de coacção de prisão preventiva, a jurisprudência do TEDH tem-se mantido fiel, em sucessivas decisões, à linha traçada pelo citado Acórdão Lamy: cf., por último, os acórdãos de 13 de Fevereiro de 2001, nos casos Lietzow v. Alemanha, Garcia Alva v. Alemanha e Schöps v. Alemanha (todos disponíveis em www.echr.coe.int).
Em formulação repetida nesses três acórdãos, o TEDH enuncia os critérios gerais que perfilha nesta matéria nos seguintes termos (§
44 do Acórdão Lietzow, § 39 do Acórdão Garcia Alva e § 44 do Acórdão Schöps):
“44. O Tribunal recorda que as pessoas detidas ou presas têm direito a que seja examinado o respeito das exigências processuais e de fundo necessárias à
«legalidade», no sentido da Convenção, da sua privação de liberdade. Consequentemente, o tribunal competente deve verificar «quer o respeito das regras processuais da [legislação interna] e do carácter razoável das suspeitas que motivam a detenção, quer a legitimidade do objectivo perseguido por esta e em seguida pela [prisão]». O tribunal que examine o recurso interposto contra uma prisão deve revestir-se das garantias inerentes a uma instância de natureza judiciária. O processo deve ser contraditório e garantir em qualquer caso a «igualdade de armas» entre as partes, o Ministério Público e o detido. Não há igualdade de armas quando ao advogado é recusado o acesso aos documentos do processo de inquérito cujo exame
é indispensável para contestar eficazmente a legalidade da detenção do seu cliente. Se se tratar de pessoa cuja detenção se funda no artigo 5.º, n.º 1, alínea c), é obrigatória a realização de uma audiência (ver, entre outros, ao acórdãos Lamy v. Bélgica, de 30 de Março de 1989, série A, n.o 151, pp. 16-17, §
29, et Nikolova v. Bulgária [GC], n.o 31195/96, § 58, CEDH 1999-II). Estas exigências decorrem do direito a um processo contraditório garantido pelo artigo 6.º da Convenção, que, no processo penal, implica, para a acusação como para a defesa, a faculdade de tomar conhecimento das considerações ou elementos de prova produzidos pela outra parte, bem como a de os discutir. De acordo com a jurisprudência do Tribunal, resulta da formulação do artigo 6.º – e especialmente do sentido autónomo que deve ser atribuído à noção de «acusação em matéria penal» – que esta disposição é aplicável às fases anteriores do processo (acórdão Imbrioscia v. Suiça, de 24 de Novembro de 1993, Série A, n.o
275, p. 13, § 36). Daí que, face às consequências dramáticas da privação da liberdade sobre os direitos fundamentais da pessoa em causa, qualquer processo concernente ao artigo 5.º, n.º 4, da Convenção deve, em princípio, respeitar de igual modo, tanto quanto possível nas circunstâncias de uma instrução, as exigências fundamentais de um processo equitativo, tais como o direito a um processo contraditório. A legislação nacional pode preencher estas exigências de diversas maneiras, mas o método por ela adoptado deve garantir que a outra parte esteja ao corrente da entrega de considerações e goza de uma efectiva possibilidade de as comentar (ver, mutatis mutandis, o acórdão Brandstetter v.
Áustria, de 28 de Agosto de 1991, Série A, n.o 211, pp. 27-28, § 67).”
No caso Lietzow (publicado em Recueil des Arrêts et Décisions, 2001-I, págs. 371-390), consignou-se:
45. No caso, o mandado de detenção notificado ao requerente em 6 de Fevereiro de
1992 expunha um resumo dos factos com base nas imputações contra ele deduzidas, as razões que justificavam, segundo o tribunal de distrito, a detenção do interessado e uma breve remissão para as provas nas quais se fundara o tribunal, a saber, os depoimentos de dois outros suspeitos no processo, N. e W., bem como os resultados das investigações em curso, não sendo fornecido qualquer detalhe quanto ao exacto conteúdo dos elementos a que se fazia referência. Em 7 de Fevereiro de 1992, o advogado do requerente requereu ao tribunal que procedesse ao controlo jurisdicional da detenção do seu cliente. Também pediu ao magistrado do Ministério Público que lhe facultasse o acesso ao processo, ou, subsidiariamente, que pelo menos lhe fornecesse cópias dos depoimentos de N. e
W., dado que estes aparentemente tinham desempenhado um papel determinante na decisão do tribunal de distrito de ordenar a detenção do requerente. Invocando o artigo 147.º, § 2.º, do Código de Processo Penal, o magistrado do Ministério Público indeferiu este pedido, alegando que a consulta desses documentos comprometia a finalidade da instrução. Em 10 de Fevereiro de 1992, o magistrado do Ministério Público enviou ao tribunal de distrito um processo com seis volumes relativo à instrução respeitante ao requerente e a outros arguidos. Em 24 de Fevereiro de 1992, o tribunal de distrito determinou a manutenção da detenção do requerente. Declarando que continuavam a pesar fortes suspeitas sobre o requerente, não foi fornecida nenhuma especificação quanto aos factos pertinentes, limitando-se a remeter para o mandado de detenção. O tribunal acrescentou que, atentas as tentativas do requerente, anteriores à sua detenção, visando influenciar os outros suspeitos, continuava a existir grave risco de perturbação se ele fosse libertado.
46. Parece, assim, que os depoimentos de N. e W. desempenharam um papel decisivo na decisão do tribunal de distrito de manter o requerente em prisão preventiva. Contudo, enquanto o magistrado do Ministério Público e o tribunal de distrito de Francfort tivera, conhecimento desses depoimentos, o seu exacto conteúdo não havia sido, nessa fase, comunicado ao requerente ou ao seu advogado. Consequentemente, nenhum deles tivera oportunidade de contestar de modo satisfatório as considerações desenvolvidas pelo Ministério Público e pelo tribunal de distrito, nomeando pondo em causa a fiabilidade e o carácter probatório dos depoimentos de N. e W., que eram, também eles, visados pelas investigações desenvolvidas no processo do requerente.
É certo que, como sublinha o Governo, o mandado de detenção dava certas precisões quanto aos factos em que baseavam as suspeitas contra o requerente. No entanto, as informações fornecidas por este meio não constituíam mais do que um relato dos factos elaborado pelo tribunal de distrito com base no conjunto das informações comunicadas pelo Ministério Público. Na opinião do Tribunal, não
é, de todo, possível à pessoa posta em causa contestar de modo satisfatório a fiabilidade desse relato se ela ignora os elementos nos quais este se fundamenta. É, portanto, necessário que o interessado tenha possibilidade bastante para tomar conhecimento dos depoimentos e de outros elementos de prova relativos, tais como os resultados do inquérito da polícia e de outras investigações, independentemente da questão de saber se o arguido pode fornecer indicações quanto à pertinência para a sua defesa dos elementos aos quais pretende ter acesso.
47. O Tribunal constata que o Ministério Público recusou o pedido de acesso aos documentos juntos ao processo nos termos do artigo 147.º, § 2, do Código de Processo Penal, com fundamento em que decisão contrária corria o risco de comprometer o sucesso da instrução em curso, que, segundo ele, era complexa e implicava um grande número de outros suspeitos. Este ponto de vista foi secundado pelo tribunal de apelação de Francfort no seu acórdão de 24 de Abril de 1992 (...).
O Tribunal reconhece a necessidade de uma condução eficaz dos inquéritos penais, o que pode implicar que uma parte das informações recolhidas durante essas investigações devam ser mantidas secretas a fim de impedir os suspeitos de alterar as provas e de prejudicar a boa administração da justiça. No entanto, este objectivo legítimo não deve ser perseguido à custa de restrições importantes infligidas aos direitos da defesa. Consequentemente, as informações essenciais para apreciar a legalidade da detenção de uma pessoa devem ser postas à disposição do advogado do suspeito de modo adequado à situação.
48. Nestas circunstâncias, e tendo em conta a importância atribuída pelo tribunal de distrito, na sua argumentação, aos depoimentos prestados por N. e W., que o requerente não pôde contestar de modo satisfatório porque deles não tomou conhecimento, o processo perante o tribunal de distrito de Francfort, que controlou a legalidade da prisão preventiva do requerente, não respeitou as garantias previstas no artigo 5.º, n.º 4, da Convenção. Assim, ocorreu violação desta disposição.”
Idêntico entendimento foi seguido quer no Acórdão proferido no caso Garcia Alva, em que se reconheceu o carácter determinante, para a decisão de validação da detenção e decretamento da prisão preventiva, do depoimento de uma testemunha (K.), tendo sido negado ao requerente o acesso ao respectivo teor, quer no Acórdão proferido no caso Schöps, relativamente à generalidade das investigações e, em especial, quanto ao teor dos depoimentos de duas testemunhas e de escutas telefónicas.
Recordadas as orientações da jurisprudência deste Tribunal Constitucional e do TEDH, e passando a apreciar o caso do presente recurso, constata-se que basta perfilhar a orientação traçada no Acórdão n.º
121/97 & 8722; sem necessidade de acompanhar em toda a sua extensão a jurisprudência do TEDH & 8722; para concluir pela inconstitucionalidade da interpretação seguida pelo acórdão recorrido.
Não se trata de afirmar o acesso irrestrito do arguido a todo o inquérito, mas apenas aos específicos elementos probatórios que foram determinantes para a imputação dos factos, para a ordem de detenção e para a proposta de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. Ora, relativamente a estes específicos elementos de prova é constitucionalmente intolerável, como se decidiu no Acórdão n.º 121/97, que se considere sempre e em quaisquer circunstâncias interdito esse acesso, com alegação de potencial prejuízo para a investigação, protegida pelo segredo de justiça, sem que se proceda, em concreto, a uma análise do conteúdo desses elementos de prova e à ponderação, também em concreto, entre, por um lado, o prejuízo que a sua revelação possa causar à investigação e, por outro lado, o prejuízo que a sua ocultação possa causar à defesa do arguido & 8722; ponderação a que, no caso, o acórdão recorrido não procedeu.
15. Quanto ao último fundamento utilizado no acórdão recorrido, há que começar por referir que a invocação da Convenção dos Direitos das Crianças como tendo valor idêntico à lei constitucional é improcedente e desnecessária.
Na verdade, o que se discutiu na jurisprudência e na doutrina foi a eventual supremacia do direito internacional convencional sobre o direito interno ordinário, em termos de este não poder validamente revogar aquele, e nunca a paridade entre o direito internacional convencional e o direito constitucional, tese de todo em todo insustentável face à previsão da fiscalização da constitucionalidade dos tratados e acordos internacionais
(artigos 278.º, n.º 1, e 279.º, n.ºs 1 e 4, da CRP). E tal invocação era desnecessária porque a especial protecção das crianças, como incumbência do Estado, tem consagração no artigo 69.º, n.º 1, da CRP.
Por outro lado, quanto à invocação do artigo 28.º, n.º
2, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, que preconiza que, durante o inquérito, se evite, sempre que possível, a repetição da audição de testemunha especialmente vulnerável, e que faculta que se requeira o registo nos termos do artigo 271.º do CPP (faculdade que, no caso, não foi exercitada), ela não tem directa repercussão no presente caso.
De qualquer forma, mesmo tratando-se de crimes de abuso sexual de crianças, tal facto não dispensa & 8722; como no ponto anterior se referiu relativamente ao segredo de justiça & 8722; a ponderação, em concreto, dos interesses das vítimas e do interesse do arguido em conhecer os elementos probatórios relevantes. No caso, em que surgem como determinantes da imputação dos factos e das determinações da detenção e da prisão preventiva os depoimentos constantes de “fls. 2096 a 2104, 2408 a 2410 e 3975 a 3981”, impunha-se que se apurasse quem eram os autores desses depoimentos, designadamente se eram a(s) vítima(s) ou terceiros, qual a sua idade e qual as eventuais consequências danosas que para eles poderiam advir da revelação desses depoimentos. Nenhuma apreciação concreta destes factores foi feita pelas instâncias, implicando a interpretação acolhida no acórdão recorrido o entendimento de que sempre e em quaisquer circunstâncias será negado o acesso quando o processo respeitar a essa categoria de crimes, o que, pelas mesmas razões do ponto anterior, não é constitucionalmente tolerável.
Refira-se, por último, que, tendo a protecção do segredo de justiça a mesma intensidade na fase de interrogatório do arguido e na fase de recurso do decretamento da prisão preventiva, a admissibilidade do seu afastamento quando tal for necessário para assegurar o direito de defesa do arguido deve valer nas duas fases. Não faria, de facto, sentido que se reconhecesse o direito do arguido de acesso a elementos probatórios necessários para interpor recurso visando corrigir eventual erro da decisão que decretou a prisão preventiva e não se lhe facultasse esse acesso num momento em que poderia evitar o cometimento desse erro, argumentando junto do juiz de instrução, no decurso do seu interrogatório, no sentido da inconsistência das provas que fundamentam a imputação dos crimes.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não conhecer do objecto do recurso na parte relativa
à notificação da decisão que decretou a prisão preventiva desacompanhada de cópias dos elementos probatórios para que essa decisão remete, por a questão não ter sido adequadamente suscitada pelo recorrente;
b) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos
28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP, a norma do n.º 4 do artigo 141.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstractas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa; e, consequentemente,
c) Conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, na parte impugnada, e determinando a sua reformulação de acordo com o precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Setembro de 2003.
Mário José de Araújo Torres Benjamim Silva Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos