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Processo n.º 154/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária, com a seguinte fundamentação:
“(…) No requerimento de interposição de recurso, o recorrente identifica, como decisões recorridas, a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que não admitiu o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, e a decisão da reclamação deduzida nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal (CPP), proferida pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Sendo as decisões recorridas provenientes de diferentes tribunais, impunha-se que o recorrente formulasse dois requerimentos de interposição de recurso, dirigindo cada um deles ao tribunal competente para apreciar a admissão do respetivo recurso, nos termos do artigo 76.º, n.º 1, da LTC.
No presente caso, o recorrente optou por apresentar um único requerimento de interposição de recurso, dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça que, em consonância, se pronunciou sobre o mesmo, admitindo-o.
Assim, o Tribunal Constitucional apreciará o recurso, tendo apenas em conta a decisão da reclamação, datada de 29 de janeiro de 2013, como decisão recorrida, uma vez que, na parte referente à decisão anterior, datada de 11 de dezembro de 2012, a opção do recorrente impediu o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 76.º da LTC (cfr., a título de exemplo, no mesmo sentido, o Acórdão n.º 278/08, disponível em www.tribunalconstitucional.pt ).
Acrescenta-se que o conhecimento do recurso, na parte referente à mencionada decisão do Tribunal da Relação, sempre estaria prejudicado, face ao disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 70.º da LTC.
(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) No presente caso, não obstante o recorrente não enunciar, no requerimento de interposição do recurso, o específico critério normativo, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, é possível concluir que se trata da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, “na medida em que veda o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em relação a processos cujas penas sejam inferiores a oito anos de prisão”.
De facto, é este o único critério normativo que o recorrente problematiza, sob o ponto de vista da conformidade constitucional, previamente, perante o tribunal a quo.
Assim, não estando em causa qualquer interpretação normativa insólita ou surpreendente que, sendo adotada de forma imprevisível pelo tribunal a quo, poderia legitimar uma não suscitação prévia da mesma, conclui-se que o presente recurso apenas será admissível na hipótese de o seu objeto corresponder ao critério normativo cuja constitucionalidade foi questionada, junto do tribunal a quo, antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
Nestes termos, será à luz deste objeto que apreciaremos o recurso.
(…) O Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar repetidamente sobre critérios normativos reportados ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
Assim, no Acórdão n.º 189/01 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) - que julgou não inconstitucional a norma extraível de tal preceito, na redação da Lei n.º 59/98, de 25 de agosto – pode ler-se:
“(…) A Constituição da República Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
Importa, todavia, averiguar em que medida a existência de um duplo grau de jurisdição poderá eventualmente decorrer de preceitos constitucionais como os que se reportam às garantias de defesa, ao direito de acesso ao direito e à tutela judiciária efetiva.
Não pode deixar de se referir que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tratado destas matérias, estando sedimentados os seus pontos essenciais.
Assim, a jurisprudência do Tribunal tem perspetivado a problemática do direito ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, pois sempre se entendeu que a consideração constitucional das garantias de defesa implicava um tratamento especifico desta matéria no processo penal. A consagração, após a Revisão de 1997, no artigo 32º, nº1 da Constituição, do direito ao recurso, mostra que o legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal, sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa.
Porém, mesmo aqui e face a este específico fundamento da garantia do segundo grau de jurisdição no âmbito penal, não pode decorrer desse fundamento que os sujeitos processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer ato do juiz nas diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto às decisões penais condenatórias e também quanto às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº 265/94, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, 27º V., pág. 751 e ss).
Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional, o recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no nº1 do artigo 32º (O processo criminal assegura todas as garantias de defessa, incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha vindo a considerar como conformes à Constituição determinadas normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo (…), como também tenha já entendido que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo STJ (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº209/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º. V., pg. 553)
Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a instância superior da ordem judiciária acionada fique avassalada com questões de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta limitação à recorribilidade das decisões penais condenatórias tem, assim, um fundamento razoável.
(…)
Como já se referiu, mesmo em processo penal, a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer ato do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.
Ora, no caso dos autos, o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior.
Existe, assim, alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso. No caso, o fundamento da limitação – não ver a instância superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias – é um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado e que corresponde aos objetivos da última reforma do processo penal.
Tem, por isso de se concluir que a norma do artigo 400º, nº1, alínea f) do CPP não viola o princípio das garantias de defesa, constante do artigo 32º, nº1 da Constituição.
(…) Mas também não viola o princípio do acesso ao direito e à tutela judicial efetiva, constante do artigo 20º, nem o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, ambos da Constituição.
De facto, o artigo 20º estabelece que “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” e ainda que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” (nºs 1 e 4). Ora, no caso em apreço, a questão foi objeto de apreciação por duas instâncias, pelo que não se pode afirmar que tenha havido violação do preceito, uma vez que dele apenas resulta que o legislador terá de assegurar imperativamente e sem restrições o acesso a um grau de jurisdição.
Também quanto ao princípio da igualdade não foi violado uma vez que a limitação estabelecida na norma questionada não se afigura como arbitrária ou desproporcionada, sendo admissível desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido que, como de referiu, não abrangem o direito ao exame de questão já reexaminada em duas instâncias.”
Relativamente à questão da constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, igualmente já se debruçou o Tribunal Constitucional, nomeadamente no âmbito do Acórdão n.º 645/2009 (disponível no mesmo sítio da internet), onde se refere o seguinte:
“A primeira questão é a da constitucionalidade da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
No que respeita à primeira questão, importa lembrar que a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, mesmo na redação anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, foi diversas vezes sujeita ao escrutínio de constitucionalidade na perspetiva da violação do direito ao recurso, tendo o Tribunal Constitucional decidido reiteradamente no sentido da não inconstitucionalidade de dimensões normativas em que igualmente estava em causa a restrição do direito ao recurso, traduzida na limitação do acesso a um duplo grau de recurso ou triplo grau de jurisdição.
O fundamento de não inconstitucionalidade é comum às várias pronúncias do Tribunal sobre esta matéria, e pode resumir-se no seguinte entendimento, expresso no Acórdão n.º 64/2006, tirado em Plenário, que julgou não inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª Instância, o tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um crime a que seja aplicável pena superior a esse limite:
«(…) como repetidamente o Tribunal tem afirmado, a Constituição não impõe um triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso, mesmo em Processo Penal. Não se pode, portanto, tratar a questão de constitucionalidade agora em causa na perspetiva de procurar justificação para uma limitação introduzida pelo direito ordinário a um direito de recurso constitucionalmente tutelado.
A norma que constitui o objeto do presente recurso, e que define, nos termos expostos, a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, releva, assim, do âmbito da liberdade de conformação do legislador.
Como se afirmou no acórdão n.º 640/2004, não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada.
A norma em apreciação não viola, pois, qualquer direito constitucional ao recurso ou qualquer regra de proporcionalidade.
(…)
O Tribunal Constitucional também já se pronunciou sobre esta norma, na sua atual redação, no Acórdão n.º 263/2009, que julgou não inconstitucional a norma dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007 de 29 de agosto, em conjugação com o disposto no artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do mesmo Código, interpretada no sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância, proferida após a entrada em vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
Os fundamentos deste Acórdão n.º 263/2009, na parte agora relevante, podem ser assim sumariados:
«I - Não obstante a interpretação normativa em questão no presente recurso não coincidir exatamente com nenhuma das que foi objeto de anteriores Acórdãos do Tribunal Constitucional a propósito da norma do artigo 400.º n.º 1 alínea f) do Código do Processo Penal, na redação anterior à Lei n.º 48/2007 de 29 de agosto, a razão de ser da norma, mesmo após a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, continua a ser a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade, pelo que nada impede que as razões aduzidas nos anteriores arestos, designadamente no Acórdão n.º 189/01, sejam transponíveis para o caso.
II - Na verdade, é no confronto da norma com as garantias de defesa do arguido em processo penal, designadamente o direito ao recurso, e com garantia de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, que a questão de inconstitucionalidade se coloca, decorrendo a solução, uma vez mais, dos limites com que a Constituição vincula o legislador ordinário em matéria de processo penal, e do reconhecimento de que, nesta área, lhe conferiu liberdade de conformação, não impondo o estabelecimento de um triplo grau de jurisdição; a restrição ao recurso é, em suma, constitucionalmente admissível, desde que não se configure como desrazoável, arbitrária ou desproporcionada, pelo que haverá que concluir no sentido de que a interpretação normativa sindicada não viola as garantias de defesa do arguido em processo criminal, incluindo o direito ao recurso, nem o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.»
Esta jurisprudência, a que aderimos integralmente (…) é inteiramente aplicável ao caso em apreço, devendo aqui ser reiterada.
Conclui-se, por isso, pela não inconstitucionalidade da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.”
Não existindo razões para alterar o sentido da jurisprudência constitucional, a este propósito, reitera-se a fundamentação já transcrita e conclui-se, em conformidade, pela não inconstitucionalidade da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, na dimensão de vedar o recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
3. O reclamante, na reclamação apresentada, limita-se a manifestar a pretensão de reapreciação da questão pela conferência, invocando o disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, referindo apenas, para fundamentar a sua discordância em relação à Decisão sumária proferida, o seguinte: “(…) ao não permitir a subida do recurso até à instância mais alta (o Supremo Tribunal de Justiça), está-se a violar o princípio de acesso ao Direito, consagrado no artigo 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, bem como as suas garantias de defesa, asseguradas pelo artigo 32º, nº 1 do mesmo diploma legal”.
4. O Ministério Público, em resposta, refere que “o recorrente não adianta quaisquer novos fundamentos ou argumentos sobre a questão de inconstitucionalidade que constitui objeto do recurso”, pelo que a reclamação deve ser indeferida.
O reclamado B., regularmente notificado, não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. A reclamação apresentada não contém qualquer argumentação suscetível de infirmar a correção do juízo efetuado na decisão reclamada.
Na fundamentação expendida na referida decisão é afastado o desvalor constitucional do critério normativo apreciado, tendo em conta, nomeadamente, as específicas normas constitucionais aludidas na reclamação.
Assim e sendo certo que a decisão sumária proferida merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da presente reclamação.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 29 de maio de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 15 de julho de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral