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Proc. n.º 490/02 Acórdão nº 59/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A e outra interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto da decisão instrutória que as pronunciou pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punível pelos artigos 24º, n.º s 1 e 4, do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro (fls. 23), tendo na motivação respectiva (fls. 24 e seguintes) concluído, entre o mais, que '[o]s artigos 43° e 44° do RJIFNA são materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 32°, nº 4 e 5, 114° e 221º da Constituição da República Portuguesa'
(conclusão n.º 8.).
2. Na sua resposta à motivação do recurso (fls. 46 e seguintes), o Ministério Público sustentou, entre o mais, que as normas dos artigos 43º e 44º do RJIFNA não enfermavam de qualquer inconstitucionalidade, não sendo, por isso, nulo o inquérito que havia sido realizado.
3. Por acórdão de 20 de Fevereiro de 2002 (fls. 90 e seguintes), o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao referido recurso. Sobre a inconstitucionalidade suscitada disse o Tribunal da Relação do Porto:
'[...] Por via do preceituado nos arts. 43°, 44° e 51°-A, do RJINFA, originou os presentes autos a existência de um processo de averiguações conduzido pelo Núcleo de Averiguações de Ilícitos Criminais, integrado nos serviços do CRSS. Deverão interpretar-se estas normas como corporizando a «administrativização» da fase de inquérito, com a consequente subtracção aos poderes e controlo do MP? Cremos que não. Com efeito, como além do mais se fundamenta na decisão recorrida e como consta, desde logo do preâmbulo atinente ao DL nº 20-A/90, aí se refere que a atribuição aos actos levados a cabo pela Administração Fiscal da autoridade que detém os que são praticados sob «potestas do MP, não significa que se subtraia ao Ministério Público a direcção do inquérito ou que se limitem quaisquer competências e atribuições que lhe estão cometidas no âmbito penal. O que se pretende é apenas que os actos praticados no âmbito do processo de averiguações não sejam meros actos vazios de eficácia e inócuos de resultado». Como bem anota o MP na sua resposta, ...«Dada a complexidade, a especificidade e o carácter técnico de determinados crimes e da respectiva investigação (como o do autos), o legislador elegeu, devido à sua preparação técnica, determinadas entidades para coadjuvar o MP na sua investigação e, por uma questão de economia processual, entendeu atribuir-lhes, desde logo, competência para a realização da investigação..., através de uma ‘delegação presumida’ para a prática de actos do MP». Tal não preclude ou retira quaisquer poderes de direcção do inquérito ao MP, aliás de acordo com o preceituado no art. 263 ° n° 2, do CPP. Adite-se que na (nova) Lei n° 15/2001, de 15/7 que aliás veio revogar o RJINFA, legisla-se, a nosso ver em termos que clarificam e reforçam aquela delegação de poderes. Com efeito, o art. 40°, da citada Lei estabelece que a direcção do inquérito por crime tributário compete ao MP (nº 1) e que (nº 2) «Aos órgãos da administração tributária e aos da administração da segurança social cabem, durante o inquérito, os poderes e as funções que o Código de Processo Penal atribui aos
órgãos de polícia criminal, presumindo-se-lhes delegada a prática de actos que o Ministério Público pode atribuir àqueles órgãos». Daqui resulta que se não prefigurem as invocadas nulidades do inquérito, bem como as suscitadas inconstitucionalidades.
[...].'
4. Inconformada com o mencionado acórdão da Relação do Porto, A dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tendo no requerimento de interposição do recurso dito, entre o mais, o seguinte (fls. 99 e seguinte):
'[...] Na verdade, a recorrente invocou na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação que a Administração Fiscal ao concentrar em si a qualidade de parte – Ofendido – e o exercício do poder de direcção do inquérito, que é atribuição do MºPº enquanto órgão do Estado e da Justiça, não poderá agir com a independência consagrada constitucionalmente nos artigos 32°, n° 4 e 5, 114° e
221° da Constituição da República Portuguesa. Por outro lado, a Administração Fiscal quer exercendo uma competência própria, quer delegada «presumida», ao abrigo do disposto nos artigos 43° e 44° do RJIFNA, está a concentrar em si «plenos poderes», em clara violação dos princípios de objectividade, autonomia, imparcialidade e de defesa dos interesses dos cidadãos e contribuintes consagrados na Constituição da República Portuguesa. Em matéria fiscal, o MºPº fica assim esvaziado das funções materiais e específicas que lhe são constitucionalmente atribuídas – cfr. artigo 221° da CRP.
[...].'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 103 v.º.
Nas alegações que produziu perante o Tribunal Constitucional (fls.
107 e seguintes), a recorrente concluiu do seguinte modo:
'1. O inquérito é nulo por ter sido realizado, em exclusivo, pela própria Administração Fiscal.
2. Ao admitir a Administração Fiscal a intervir nos autos como assistente, a lei reconhece-lhe também a qualidade de OFENDIDO.
3. E como OFENDIDO a Administração Fiscal tem competência própria para iniciar o processo, não carecendo de conhecimento ou autorização ou delegação de poderes – artigo 43°, n° 1 do RJIFNA;
4. O que viola o disposto no artigo 48° do Código de Processo Penal, nos termos do qual o dever de promover a acção penal é exclusivo do MºPº:
5. Norma essa de valor constitucional na medida em que constitui emanação do postulado de que o MºPº é um órgão do Estado e da Justiça – artigo 221° da Constituição da República Portuguesa;
6. A Administração Fiscal ao concentrar em si todos estes poderes e funções – promover a acção penal e prosseguir com os actos de Inquérito – não está a agir, nem a orientar-se por princípios de objectividade, autonomia e, obviamente, muito menos, de imparcialidade.
7. Desta forma. os direitos e garantias dos contribuintes saem necessariamente prejudicados.
8. Os artigos 43° e 44° do RJIFNA são materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 32°, nº 4 e 5, 114° e 221º da Constituição da República Portuguesa.'
5. Nas suas contra-alegações (fls. 115 e seguintes), o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional suscitou a seguinte questão prévia:
'[...] Quer o acórdão da Relação do Porto (fls. 90 a 94), quer a precedente decisão do Tribunal de Guimarães (fls. 54 a 64), bem como as posições do Ministério Público nas respectivas instâncias (fls. 46 a 52 e 87) são claros e elucidativos na abordagem da matéria em apreço, relativamente à não existência de qualquer nulidade do inquérito e à não violação do estatuto do Ministério Público, conforme o configura a Constituição. Refere concretamente a decisão recorrida que as citadas normas do RJIFNA não retiram quaisquer poderes de direcção do inquérito ao Ministério Público, não podendo, por isso, suportar qualquer interpretação violadora da Constituição, no sentido de corporizarem a «administrativização» daquela fase processual. Aliás, sendo esta a tese defendida pela Relação do Porto e ancorando-se o recurso interposto no artigo 1º, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, poderá inclusivamente colocar-se a questão da verificação dos pressupostos da sua própria admissibilidade, uma vez que as normas em causa materialmente comportam uma plena conformidade constitucional, não tendo em si ou como resultado da sua aplicação concreta, o recorte e a dimensão normativa que lhes são dados pela recorrente.
[...].'
E nas contra-alegações conclui-se do seguinte modo:
'1 – As normas dos artigos 43º e 44º do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro em nada colidem com a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, nos termos do artigo 268º do Código de Processo Penal, nem com a direcção efectiva do inquérito, que detém, deixando intocáveis quer as suas funções como titular do exercício da acção penal, quer o seu estatuto de autonomia, em conformidade com o artigo 219º da Constituição.
2 – Não contendem com as garantias de defesa asseguradas pelo processo penal, nos termos do artigo 32º da Lei Fundamental.
3 – A faculdade da Administração Fiscal poder constituir-se assistente no processo não viola quaisquer princípios constitucionais, designadamente a norma do artigo 111º.
4 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
6. Tendo em conta a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público, foi ordenada, por despacho da relatora de fls. 121, a notificação da recorrente para se pronunciar, querendo, no prazo legal.
Decorrido o prazo, a recorrente não respondeu (fls. 121 v.º).
Cumpre apreciar.
II
7. Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 4.), constitui seu pressuposto processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Caso não esteja preenchido tal pressuposto processual não poderá, nos termos gerais, conhecer-se do objecto do recurso.
Decorre do requerimento de interposição do recurso e alegações produzidas junto deste Tribunal que a recorrente questiona a conformidade constitucional das normas dos artigos 43º e 44º do Decreto-Lei n.º 20-A/90, de
15 de Janeiro (RJIFNA), numa determinada vertente ou interpretação: a de que, em matéria fiscal, tais normas subtrairiam ao Ministério Público os poderes que, nos termos do artigo 48º do Código de Processo Penal, lhe são cometidos em ordem ao exercício da acção penal. É sintomática desta abordagem do problema a circunstância de a recorrente, nas conclusões das alegações, concluir que as normas cuja conformidade constitucional questiona 'viola[m] o disposto no artigo
48° do Código de Processo Penal, nos termos do qual o dever de promover a acção penal é exclusivo do MºPº'.
Não tendo a recorrente questionado a conformidade constitucional das normas dos artigos 43º e 44º do RJIFNA na estrita medida em que cometem aos
órgãos da Administração Fiscal determinados poderes em sede de inquérito mas, diferentemente, a conformidade constitucional dessas mesmas normas na medida em que subtraem ao Ministério Público determinados poderes de direcção do inquérito e os atribuem aos órgãos da Administração Fiscal, torna-se patente que não é possível conhecer-se do objecto do presente recurso, atendendo a que a decisão recorrida não aplicou tais normas nessa interpretação.
Com efeito, diz-se claramente no texto da decisão recorrida (supra,
3.) que não devem interpretar-se tais normas como corporizando a
'administrativização' da fase do inquérito, com a consequente subtracção aos poderes e controlo do Ministério Público e ainda que tais normas não precludem ou retiram quaisquer poderes de direcção do inquérito ao Ministério Público.
Não tendo a decisão recorrida aplicado as normas indicadas pela recorrente na dimensão interpretativa por si questionada, conclui-se que não está preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Julga-se assim procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público no sentido do não conhecimento do objecto do presente recurso (supra, 5.).
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Pamplona de Oliveira José Manuel Cardoso da Costa