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Proc. nº 622/02 TC – 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – O Ministério Público interpõe recurso para este Tribunal ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea a) da LTC da sentença do Tribunal do Trabalho de Braga que recusou a aplicação da norma contida no artigo 56º nº 1 alínea a) do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, com fundamento na violação do disposto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
Nas suas alegações, o Magistrado recorrente formulou as seguintes conclusões:
'1 – Não pode configurar-se como traduzindo a consagração de uma solução legislativa arbitrária o estabelecimento do princípio da obrigatória remição das pensões vitalícias de reduzido montante, quer delas sejam titulares os próprios sinistrados, quer outros beneficiários legais.
2 – Na verdade, tal solução jurídica visa facultar ao titular da pensão a disposição de um capital, susceptível de ser utilizado em aplicações mais rentáveis do que a percepção, ao longo dos anos, de uma pensão de valor manifestamente degradado e irrisório.
3 – Não constituindo arbítrio ou discriminação a circunstância de – como decorrência inelutável do efeito extintivo da dita remição – o interessado ou beneficiário ficar privado da expectativa de futuras e eventuais actualizações da pensão.
4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.'
Não houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
2 – A sentença recorrida foi proferida em acção com processo especial, emergente de acidente de trabalho, referente ao sinistrado A, sendo entidade responsável a Companhia de Seguros B'.
Na referida sentença foi fixada ao sinistrado a incapacidade permanente parcial de 41,25 %, correspondente à incapacidade de 27,5 % bonificada com uma multiplicação pelo factor 1,5 de acordo com o nº 5 alínea a) dos Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades.
Considerando o montante anual de retribuição do sinistrado e o grau de incapacidade fixado, foi reconhecido ao sinistrado o direito a uma pensão anual vitalícia do montante de 1.411,48 euros, sendo esta de montante inferior ao sextuplo da remuneração mínima mensal garantida para o ano em curso.
Nestas condições e nos termos do artigo 56º do Decreto-Lei nº
143/99, de 30 de Abril a pensão estaria sujeita a remição obrigatória; não a decretou, porém, a decisão impugnada, porquanto nela se recusou a aplicação do disposto no artigo 56º nº 1 alínea a) do Decreto-Lei nº 143/99 por ofensa ao disposto no artigo 13º nº 2 da CRP.
Escreveu-se, a propósito na sentença recorrida:
'(...) entendemos que a pensão em causa não deve incluir-se no grupo das 'obrigatoriamente remíveis.
Com efeito, o nº 1 do artº 6º do Dec.-Lei nº 142/99, de 30/4 estabelece uma actualização anula das pensões 'nos termos em que o forem as pensões do regime geral da segurança social'.
Esta medida insere-se na filosofia subjacente à nova legislação dos acidentes de trabalho, com a qual se pretendeu 'a melhoria do sistema de protecção e de prestações conferidas ao sinistrado', como se diz no preâmbulo do Dec.-Lei nº 143/99.
As pensões são calculadas com base na retribuição auferida pelo sinistrado. Deste modo, quanto menor for a retribuição, menor é o montante da pensão.
Os salários mais baixos são pagos aos trabalhadores de estrato social e económico igualmente mais baixo. Deste modo, a aplicar-se aquela alínea a) do nº 1 do artº 56º do referido Dec.-Lei nº 143/99, estes nunca vêm a beneficiar das actualizações consagradas no Dec.-Lei nº 142/99.
É de fácil confirmação a conclusão de que a remição da pensão prejudica o sinistrado que, recebendo, embora, o capital de uma só vez, acaba por receber uma importância bem menor do que a que lhe é paga se não houver remição, atendendo a que a média das idades no que se refere à esperança de vida, está a aumentar.
Destarte, criou-se uma disparidade de tratamentos, prejudicando quem, por auferir salários mais baixos, beneficia de pensões menos elevadas.
Com efeito, enquanto quem aufere altos salários e, consequentemente, recebe pensões elevadas, vê esta pensão actualizada anualmente, recebendo-a até ao fim da vida, os que auferem salários mais baixos, porque as suas pensões são também mais baixas ficam prejudicados não só porque tais pensões não são actualizadas, mas também porque, recebendo o capital de remição, acabam por receber menos do que receberiam se a pensão lhes fosse paga até ao final da vida.
A desigualdade é flagrante se atentarmos na hipótese de um mesmo acidente vitimar dois trabalhadores com categorias profissionais diferentes e, consequentemente, com salários também diferentes. O que recebe salário mais elevado poderá até ficar com uma I.P.P. de 30 % e o outro com uma incapacidade para o trabalho habitual. Enquanto aquele fica a receber uma pensão vitalícia, que é anualmente actualizada, este apenas recebe um capital cujo montante não compensa o que deixa de receber se a pensão lhe for paga nas mesmas condições daquele.
Esta situação viola o princípio da igualdade.
O princípio da igualdade vem consagrado no artº 13º da Constituição e este princípio aplica-se igualmente ao poder legislativo.
A igualdade perante a lei impõe que situações semelhantes recebam tratamento semelhante.
Como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira, entendimento, de resto, igualmente veiculado pelo Tribunal Constitucional, 'o princípio da igualdade contém uma directiva essencial dirigida ao próprio legislador: tratar por igual aquilo que é essencialmente igual e desigualmente aquilo que é essencialmente desigual'.
Nos termos do nº 2 daquele artº 13º, ninguém pode ser prejudicado em razão da situação económica ou condição social.
Ora, é claramente apenas em razão da situação económica que se baseia a discriminação acima apontada.
Deste modo, e por a considerarmos inconstitucional, recusamos a aplicação da alínea a) do nº 1 do artº 56º do Dec.-Lei nº 143/99, de 30/4.
............................................................................................................'
Está, assim, em causa, como objecto do presente recurso, a norma
ínsita no artigo 56º nº 1 alínea a) do Decreto-Lei nº 143/99 que prevê a remição obrigatória de pensões vitalícias, devidas a sinistrados ou aos beneficiários das pensões de montante não superior a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão.
Ora, precisamente sobre esta norma, pronunciou-se já este Tribunal no Acórdão nº 379/02 no sentido da sua não inconstitucionalidade.
Tratou-se, é certo, de uma particular dimensão dessa norma, não totalmente idêntica à que agora se questiona, no ponto em que a remição obrigatória legalmente prevista se referia a pensão de que era titular o cônjuge do sinistrado (falecido).
A verdade, porém, é que, então, na sentença recorrida, também fôra recusada a aplicação da norma por violação do princípio da igualdade, com argumentação semelhante à que se aduz na decisão ora impugnada, (no sentido de concretizar o prejuízo resultante da remição obrigatória argumentava-se ainda com o acréscimo da pensão a partir do momento em que o beneficiário atingisse 65 anos de idade).
A diferença não altera, contudo, os dados fundamentais da questão de constitucionalidade, sendo transponíveis para o caso o que no citado Acórdão nº
379/02 se disse para fundamentar o juízo de não inconstitucionalidade.
E porque assim, louva-se o presente acórdão no que ali se decidiu de que se transcreve o seguinte trecho:
'3. - O regime aprovado pela Lei nº 100/97, relativo aos acidentes de trabalho, ao estabelecer, em matéria de remição de pensões, a remição obrigatória das pensões vitalícias de reduzido montante, como explicitamente se preceitua no citado nº 1 do artigo 33º, consentiu, no entanto, uma remição parcial das pensões correspondentes a graus de incapacidade severos
(30% ou mais), desde que a pensão sobrante assegure um mínimo de remuneração mensal ao respectivo beneficiário (nº 2 do preceito).
O artigo 56º do Decreto-Lei nº 143/99, no desenvolvimento daquela norma, veio prever, no seu nº 1, casos de remição obrigatória:
a) quanto a pensões vitalícias, devidas aos sinistrados ou aos beneficiários das pensões, de valores não superiores a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão;
b) quanto a pensões que, independentemente do seu valor, compensem uma incapacidade reduzida, que não afecte em termos drásticos e irremediáveis a capacidade de ganho remanescente do trabalhador (quando a incapacidade permanente e parcial seja inferior a 30%).
Por sua vez, o nº 2 do artigo 56º prevê a remição parcial das pensões, se pedida pelos interessados, desde que haja prévia autorização do tribunal e a garantia de um rendimento sobrante garantido mínimo.
A filosofia subjacente é a de permitir que a compensação correspondente à pensão fixada ao trabalhador vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional, não impeditivos de posterior exercício da sua actividade, possa converter-se em capital e, assim, ser aplicada porventura de modo mais rentável do que a permitida pela mera percepção de uma renda anual.
Se a via que o legislador encontrou é válida perante uma incapacidade diminuta, a que corresponda montante de pensão reduzido, já não o será em casos de maior gravidade, de modo a colocar, porventura, em causa, dada a álea inerente, a aplicação do capital. Daí o não se aceitar que, nos casos de incapacidade de trabalho fixada em maior percentagem, com natural repercussão no montante da pensão, se estabeleça uma limitação ao poder de o trabalhador pedir ou não a remição, reflectida na obrigatoriedade de a esta se proceder.
4. - O Tribunal Constitucional pronunciou-se já quanto à adequação constitucional das disposições que vedam a remição de certas pensões
'a requerimento dos pensionistas ou das entidades responsáveis', julgando-as inconstitucionais por violação das disposições conjugadas dos artigos 13º, nº 1,
59º, nº 1, alínea f), e 63º, nº 3, todos da lei fundamental: casos dos acórdãos nºs. 302/99 e 482/99, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de
16 de Julho de 1999 e o segundo inédito.
Considerou-se, então, que a limitação ao poder de o trabalhador ponderar se, atento o diminuto quantitativo da pensão, se não revelaria mais compensador a efectivação da remição, 'redunda, verdadeiramente, na consagração de uma discriminação materialmente infundada, actuando como um obstáculo a que o sistema de segurança social proteja adequadamente [...] o direito dos trabalhadores à justa reparação, quando vítimas de acidentes de trabalho ou de doença profissional [artigo 59º, nº 1, alínea f), do diploma básico]'.
Nos arestos mencionados pesou, decisivamente, a constatada limitação ao poder de o trabalhador ponderar se, tendo em conta o diminuto montante da pensão, não se revelaria mais compensador efectuar a remição. Surpreendeu-se nessa limitação, enquanto materializadora de um obstáculo ao direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou doença profissional, uma diferenciação irrazoável e materialmente infundada, repreensível, como tal, no plano jurídico-constitucional.
5. - A inconstitucionalidade oficiosamente suscitada não decorre de uma situação normativa semelhante à contemplada na jurisprudência constitucional citada, de modo a subsumir-se-lhe.
No caso sub judice o beneficiário da pensão não é o próprio sinistrado, uma vez que este morreu, mas poder-se-á defender que, também aqui, haverá que proceder a idêntica ponderação: se, face a um quadro em que as pensões tendem inevitavelmente a degradar-se, se consideraram inconstitucionais as normas que estabelecem 'uma limitação ao poder do trabalhador de pedir ou não a remição', justificar-se-ia também um juízo de inconstitucionalidade para uma interpretação normativa que, por morte do trabalhador, impõe a remição obrigatória das pensões, sujeitas a actualizações anuais e ajustes por idade dos beneficiários, para assim se salvaguardar a liberdade de o beneficiário correr os riscos do capital de remição, como nas decisões referidas.
6. - A jurisprudência mencionada pronunciou-se sobre a proibição de remir, nas circunstâncias legalmente estatuídas que foram julgadas inconstitucionais. Como tal se representou a limitação do poder de o trabalhador ponderar se não lhe seria mais vantajoso optar pela efectivação da remição, considerando o valor diminuto da pensão em causa, o que, de outro modo, consagraria como discriminação materialmente infundada com eventual reflexo no direito à justa reparação.
No entanto, o que está ora em causa respeita à imposição legal da remição das pensões devidas por morte do trabalhador. Ou seja, naqueles casos tiveram-se por inconstitucionais normas consideradas como estatuindo uma limitação do poder do trabalhador pedir ou não a remição; agora discute-se uma interpretação normativa que impõe, obrigatoriamente, a remição de pensões devidas por morte dos trabalhadores acidentados, independentemente das bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição e das tabelas práticas desses capitais de remição.
A norma em sindicância, com efeito, assenta na actualização do valor presumivelmente recebido, de harmonia com as bases técnicas aplicáveis ao cálculo do capital de remição e, bem assim, com as respectivas tabelas práticas, fixadas por portaria do Ministério das Finanças, de acordo com o artigo 57º do diploma. E a lógica que lhe subjaz conforta a conversão em capital de pensões de valor anual reduzido de modo a permitir aos beneficiários, sem prejuízo da álea inerente, que assim se obtenha uma aplicação mais rentável e útil do valor percebido.
Não se vislumbra, nesta perspectiva, que se encontre violado o princípio da igualdade. Como observa o Ministério Público, nas suas alegações, o regime jurídico em causa 'não traduz seguramente qualquer
‘discriminação’ dos beneficiários da pensão, no caso de morte, e do próprio sinistrado: é que a privação de futuras e eventuais actualizações da pensão, como consequência da respectiva remição, é inelutável, funcionando quanto a todos os sinistrados ou beneficiários que dela são titulares, e tendo como contrapartida a possibilidade de o interessado (privado de tal actualização potencial) dispor de imediato de um capital (de valor bem mais significativo que o correspondente às ‘atomísticas’ prestações parcelares que fossem sendo vencidas ao longo dos anos)'. '
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 56º nº 2 alínea a) do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, devendo, consequentemente, ser reformada a sentença impugnada de acordo com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003 Artur Maurício Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa