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Processo n.º 694/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
l. A deduziu, nos termos do n.° 4 do artigo 76.° da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.°
13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), reclamação para o Tribunal Constitucional do despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Junho de 2002, que não admitiu o recurso por ele deduzido do acórdão de 22 de Maio de 2002, que, concedendo provimento ao recurso penal interposto pelo Ministério Público, revogou a suspensão da execução da pena imposta ao ora reclamante.
Fundamentou a reclamação nos seguintes termos:
'l – Os princípios gerais de direito processual, bem como a legislação processual civil, aplicável por força da remissão do artigo 69.° da LTC, impõem que seja dada oportunidade de interposição de recurso a todos os intervenientes processuais destinatários de uma decisão judicial e que para tal sejam legitimados.
2 – O interessado, tal como veio invocar no n.° 5 do requerimento de interposição de recurso, não suscitou antes a questão da inconstitucionalidade, por não lhe ser exigível que antevisse a possibilidade de aplicação da norma no sentido em que veio a ser aplicada, de forma a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão.
3 – E, cabendo ao TC, em último grau, aferir o sentido e a interpretação de normas conformemente à Constituição, controlando esse sentido e essa interpretação seguidos pelas instâncias, interpôs-se o recurso e
4 – Aludiu-se à etnia, entre outros factores, para melhor enquadrar o comportamento que veio a preencher o tipo legal de crime e por se afigurar ser importante na apreciação global.
5 – E, se é certo que invocou a alínea b) do n.° l do artigo 70.° da Lei n.° 28/82, o facto é que, perante o invocado no n.° 5 do requerimento de interposição de recurso, estamos perante notório lapso de escrita.
6 – E, que assim não fosse, se o TC não está vinculado à qualificação operada pelas instâncias recorridas em matéria de inconstitucionalidade, por igual ordem de razão, o não está relativamente à qualificação operada pelo interessado.
7 – Assim, nos termos em que foi invocada a impossibilidade de não ter sido antes suscitada a questão da inconstitucionalidade, não tem qualquer justificação a não admissão do recurso.'
Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Setembro de 2002, foi mantido o despacho reclamado.
Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu parecer no sentido do indeferimento da reclamação.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2. O acórdão recorrido incidiu sobre recurso interposto pelo Ministério Público contra o acórdão de 15 de Fevereiro de 2002 da 2.ª Vara de Competência Mista de Guimarães, que condenara o arguido, ora reclamante, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo prazo de 3 anos, consistindo a única questão suscitada nesse recurso na justificação da suspensão da execução da pena. O acórdão recorrido concedeu provimento ao recurso com a seguinte fundamentação:
'O artigo 50.°, n.° l, do Código Penal, estatui o seguinte: «O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a
3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam deforma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Será que, no caso vertente, se verificam os indicados requisitos que justifiquem a suspensão da execução da pena de prisão, como se decidiu na 1.ª Instância?
Entendemos que não.
Com efeito, resulta dos factos dados como provados que o arguido, na data atrás mencionada, pela madrugada, empunhando uma pistola de calibre 7,65 mm, carregada, entrou violentamente, na casa habitada por B e por seus irmãos, os ofendidos, sempre empunhando a pistola constrangeu o C a indicar-lhe o quarto onde dormia o ofendido D, após o que entrou no quarto deste e, apontando-lhe a dita arma – que não se encontrava manifestada nem registada, e sem que possuísse a necessária licença de uso e porte de arma – contra ele disparou quatro tiros, atingindo-o nas coxas, e produzindo-lhe as lesões examinadas nos autos.
O arguido já anteriormente fora julgado no 3.° Juízo Criminal de Guimarães, processo n.° 329/94, perante o Tribunal Colectivo, e condenado, por acórdão de 2 de Fevereiro de 1995, como autor de um crime de ofensas corporais com dolo de perigo (artigo 144.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal de 1982), na pena de 10 meses de prisão, e de um crime de detenção e uso de arma (artigo 260.° do Código Penal de 1982), na pena de 4 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, foi condenado na pena única de 12 meses de prisão, declarada perdoada ao abrigo da Lei n.° 15/94, de 11 de Maio.
Esta condenação, bem como as outras condenações sofridas anteriormente (v. g. no processo n.° 28/91, do 4.° Juízo, 2.ª Secção, da Comarca de Braga, por sentença de 14 de Fevereiro de 1991 – ver certificado do registo criminal de fls. 36 e 37), não foram suficientes para afastar o arguido da criminalidade.
Acresce que os crimes pelos quais o arguido vem condenado nos presentes autos e as circunstâncias em que foram praticados evidenciam que o arguido é portador de uma personalidade socialmente deformada e violenta, sendo certo, ainda, que dos autos não consta que a pistola de calibre 7,65 mm, utilizada pelo arguido, houvesse sido apreendida...
Por outro lado, o arguido agiu com dolo directo intenso e muito elevado grau de culpa; sendo, outrossim, de considerar o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução destes e a gravidade das suas consequências.
Acresce que condutas criminosas como as praticadas pelo arguido e que estão na base dos presentes autos causam grande temor, espanto e intranquilidade nos cidadãos, avolumando o generalizado clima de insegurança existente na sociedade portuguesa, pelo que os Tribunais, em casos como o dos autos, têm de actuar com a necessária energia, para punir os delitos e manter a ordem pública.
Desta sorte, entendemos que a pena única aplicada ao arguido não pode, nem deve, ficar suspensa na sua execução. Do que vem de ser exposto resulta que o recurso do Ministério Público merece inteiro provimento.'
Notificado deste acórdão, dele pretendeu o arguido interpor recurso para o Tribunal Constitucional através da apresentação de requerimento do seguinte teor:
'1 – O recurso é interposto ao abrigo do artigo 70.°, n.° l, alínea b), da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro.
2 – Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma ínsita no artigo 50.° do Código Penal, com a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, no sentido de que a execução da pena não deve ser suspensa a indivíduo de etnia cigana que, em estado de exaltação, por pretender falar com ofendido, que tencionava manter relacionamento com uma sua filha menor, irrompe pela casa e lhe causa lesões nos membros inferiores, por se considerar, na sequência directa desta realidade e com o intuito de prevenir males maiores para a sua filha, que tem personalidade deformada e violenta.
3 – A pretensão alicerça-se ainda no facto da atitude do arguido, percuta-se, cigano, preencher um estado de necessidade desculpante previsto no artigo 35.° do Código Penal, por, em confronto com o comportamento do arguido estar um outro do ofendido muito próximo de um eventual preenchimento de crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 172.° do Código Penal.
4 – A norma no sentido em que foi aplicada viola os artigos 9.°, alíneas d) e h), 13.°, n.° 2, e 32.°, n.° 1, da CRP.
5 – A questão da inconstitucionalidade da norma não foi antes suscitada por ser de todo imprevisível a aplicação no sentido em que veio a ser aplicada, atendendo à materialidade de facto dada como provada no que diz respeito quer à motivação do seu comportamento delituoso, quer quanto à sua postura social e comportamento no seio da sua comunidade, com as vertentes económicas e familiares.'
O recurso não foi admitido por despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Junho de 2002, porquanto: 'O arguido, no decurso do processo, nunca suscitou a inconstitucionalidade de qualquer norma, nem no nosso acórdão de fls. 297 a 304 se faz qualquer alusão à etnia a que pertencerá o arguido, pelo que, à face do disposto no artigo 70.°, n.° 1, alínea b), da Lei n.° 28/82, de 15 de Setembro, o recurso é inadmissível'.
3. O admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.° l do artigo 70.° da LTC depende, além do mais, da verificação do requisito de a questão da inconstitucionalidade da norma (ou da interpretação normativa) aplicada na decisão recorrida ter sido suscitada 'durante o processo', isto é, em regra, antes de ter sido proferida a decisão recorrida, o que no presente caso não ocorreu, como o próprio reclamante expressamente reconhece.
Excepcionalmente admite-se tal recurso nas hipóteses anómalas em que o interessado não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, mas essa situação não ocorre no presente caso, contrariamente ao sustentado pelo recorrente. Na verdade, nada tem de surpreendente ou imprevisível a interpretação e aplicação feitas pelo acórdão recorrido da norma do artigo 50.°, n.° 1, do Código Penal, correspondendo essencialmente à preconizada na motivação do recurso do Ministério Público. Teve, assim, o ora reclamante oportunidade processual de, na resposta ao recurso penal, suscitar eventual inconstitucionalidade da interpretação da aludida norma que veio a ser acolhida no subsequente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Acresce que, como se salienta no parecer do Ministério Público, 'vistos os próprios termos do requerimento de interposição do recurso, o que o recorrente verdadeiramente pretende questionar não é qualquer critério normativo, ínsito na norma constante do artigo 50.° do Código Penal, mas a concreta sanção penal aplicada ao arguido, na específica situação dos autos, matéria obviamente desprovida de carácter
«normativo» e situada fora da competência e dos poderes cognitivos deste Tribunal'.
Assim, o recurso interposto era inadmissível, como bem decidiu o despacho reclamado, dado que a questão da inconstitucionalidade da interpretação normativa pretensamente aplicada pelo acórdão recorrido não foi suscitada, podendo tê-lo sido, 'durante o processo', em termos processualmente adequados.
4. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003. Mário José de Araújo Torres (Relator) Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida