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Processo n.º 592/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A recorrente A, deduziu reclamação para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), contra a decisão sumária de não conhecimento do presente recurso, subscrita pelo primitivo Relator.
Essa decisão sumária é do seguinte teor:
'A, sociedade comercial com sede em Lisboa, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, «nos termos conjugados do artigo 72.°, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei n.° 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei (Orgânica) n.° 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei (Orgânica) n.° 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei
(Orgânica) n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro) e do artigo 104.°, n.º 1, da LPTA, e ao abrigo dos artigos 280.°, n.º 1, alínea a), da CRP e 70.°, n.º 1, alínea a), e 75.°-A, n.° 1, da referida Lei do Tribunal Constitucional (LTC)», do acórdão da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo,
«proferido em 11 de Abril de 2002, que concedeu provimento ao recurso jurisdicional interposto por Câmara Municipal de Lisboa, A, e B, C, D e E da sentença de 15 de Março de 1994 do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa. Esta sentença decidiu pela improcedência do recurso contencioso (acção popular) da deliberação da Câmara Municipal de Lisboa que deferiu pedido de licenciamento de obras apresentado pela ora recorrente para os terrenos envolventes do Cinema Tivoli, com fundamento em que a obra licenciada obedece aos parâmetros definidos no Plano Morfológico e de Cérceas da Avenida da Liberdade, designado por Plano Vieira de Almeida, aprovado por despacho do Secretário de Estado do Urbanismo e Habitação de 22 de Fevereiro de 1974, que julgou plenamente válido e eficaz».
E acrescenta a sociedade recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade: «O douto acórdão ora recorrido revogou a sentença recorrida e ordenou a baixa dos autos ao Tribunal recorrido, 'a fim de se conhecer dos vícios imputados à deliberação contenciosamente impugnada, se a tal, entretanto, nada obstar', pelo que a presente interposição de recurso assenta na recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade por violação do princípio da publicidade consagrado no artigo 122.° da CRP (actual artigo 119.°), do referido Plano Vieira de Almeida por esse Supremo Tribunal Administrativo. Com efeito, o carácter normativo do Plano Vieira de Almeida, enquanto parâmetro conformador de decisões individuais e concretas como a que está em causa nos autos, resulta da própria fundamentação do acórdão recorrido, determinando o Supremo Tribunal Administrativo que a validade da licença de construção seja novamente aferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo, já não com base no Plano Vieira de Almeida – dada a invocação de desconformidade superveniente deste Plano com o artigo 122.° da CRP (actual artigo 119.°) e sua consequente ineficácia jurídica (artigo 122.°, n.º 2) – mas com base em diferentes parâmetros normativos, pelo que se verificou recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, pressuposto de interposição do presente recurso».
2. O acórdão recorrido, depois de enunciar que «as questões a decidir são duas: em primeiro lugar, a de saber se a sentença padece ou não de nulidade, por omissão de pronúncia, e, em caso negativo, saber se o denominado Plano Vieira de Almeida estava ou não sujeito a publicação, sob pena de ineficácia jurídica», pronunciou-se quanto a esta última questão do modo seguinte:
«Como refere o acórdão de 11 de Maio de 2000 (recurso n.º 44 128), a necessidade da publicação dos planos de urbanização, e designadamente dos planos de pormenor, era referida no Decreto-Lei n.º 77/84, de 8 de Março, e mantida no Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março, que parcialmente o revogou.
O artigo 18.º deste último diploma legal (Decreto-Lei n.º 69/90), vigente na data da deliberação contenciosamente impugnada, dispõe que '1. A planta de síntese e o regulamento dos planos municipais ratificados ou registados, quando se trate de planos não sujeitos a ratificação, são publicados em simultâneo na 2.ª série do Diário da República e no boletim municipal ou, quando este não exista, por editais nos lugares de estilo'. E o n.º 3 do mesmo artigo 18.º preceitua que 'O plano entra em vigor na data da sua publicação no Diário da República, adquirindo plena eficácia'.
Para além disso, o artigo 122.º, n.º 2, da Constituição da República
(artigo 119.º, na actual redacção), invocado pelos recorrentes, dispõe que 'a falta de publicidade (...) de qualquer acto de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, implica a sua ineficácia jurídica'.
Como anotam G. Canotilho / V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 551, a expressão 'acto de conteúdo genérico' é suficientemente ampla para abranger não apenas os regulamentos não abarcados no n.º 1 (v. g., regulamentos dos órgãos do poder local) mas também os actos administrativos de carácter genérico (mesmo que sem natureza regulamentar) dos órgãos de soberania ou do poder local.
Na doutrina é pacífico o reconhecimento da índole jurisgénica dos planos, designadamente, as respectivas disposições directa e imediatamente vinculativas dos particulares, apesar de se discutir se terão natureza materialmente regulamentar ou deverão ser havidos como actos administrativos gerais de conteúdo normativo, preceptivo ou conformativo (vide Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, vol. I, pág. 401).
Por seu turno, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem afirmado, reiteradamente, o entendimento de que os planos municipais de ordenamento do território, em que se integram os planos de pormenor (vide artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 69/90, citado), têm a natureza de regulamento administrativo
(vide acórdão de 17 de Outubro de 1995, recurso n.º 27 930, de 17 de Outubro de
1995, recurso n.º 35 829, de 8 de Abril de 1997, recurso n.º 38 991, de 8 de Julho de 1997, recurso n.º 38 632, e de 30 de Setembro de 1997, recurso n.º 39
991).
Em face do que haverá de concluir-se que o questionado Plano Vieira de Almeida, embora anterior à Constituição de 1976 e, por isso, não vinculado ao requisito formal de publicação no Diário da República estabelecido no citado artigo 122.º, estava abrangido pela exigência de publicação decorrente do princípio da publicidade consagrado no citado preceito constitucional.
É que 'este princípio – o princípio da publicidade – é, também ele, uma exigência material, e não apenas formal, do Estado de direito; neste, os cidadãos têm, de facto, o direito de conhecer facilmente o ordenamento jurídico que regula a vida em sociedade' (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 234/97, Diário da República, II Série, de 25 de Junho de 1997, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol. (1997), pág. 525 e seguintes).
No mesmo sentido, afirmam G. Canotilho / V. Moreira (obra citada, pág.
547) que 'o princípio da publicidade dos actos com conteúdo genérico dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como dos principais actos políticos, é uma exigência do Estado de direito democrático. É elemento irrenunciável do sistema jurídico democrático que os cidadãos conheçam e tenham fácil acesso ao direito vigente e fiquem a saber das principais decisões dos
órgãos do poder político'.
Ora, como refere a sentença recorrida, é incontroverso que quer o Plano Vieira de Almeida quer o despacho do membro do Governo que o aprovou nunca foram objecto de publicação.
Pelo que, ao contrário do que decidiu aquela sentença, tal plano não era juridicamente eficaz e não podia, em consequência, servir de parâmetro de legalidade do projecto aprovado pela deliberação contenciosamente impugnada.
Neste sentido, como refere o já citado acórdão de 11 de Maio de 2000,
é o entendimento jurisprudencial maioritário deste Supremo Tribunal, que, repetidamente, tem sublinhado a necessidade da publicação dos planos de urbanização como condição da sua eficácia jurídica (cf., por todos, os acórdãos de 17 de Outubro de 1995, recurso n.º 27 930, de 6 de Novembro de 1997, recurso n.º 41 156, e do Pleno de 5 de Março de 1997, recurso n.º 26 340).»
3. Da leitura do transcrito acórdão recorrido resulta que, contrariamente ao que alega a sociedade recorrente, não foi recusada a aplicação do «questionado Plano Vieira de Almeida», com fundamento em inconstitucionalidade, «por violação do princípio da publicidade consagrado no artigo 122.º da CRP (actual 119.º)». Antes e só se considerou no acórdão que esse Plano, sendo anterior à Constituição de 1976, não estava vinculado «ao requisito formal de publicação no Diário da República estabelecido no citado artigo 122.º», mas como não foi respeitado o «princípio da publicidade consagrado no citado preceito constitucional», tal plano «não era juridicamente eficaz e não podia, em consequência, servir de parâmetro de legalidade do projecto aprovado pela deliberação contenciosamente impugnada».
Foi, portanto, no estrito plano da eficácia jurídica dos planos de urbanização que se situou o decidido no acórdão, para aferir a «legalidade do projecto aprovado pela deliberação contenciosamente impugnada».
Ora, isto não consubstancia nenhum juízo de desconformidade com a Constituição do citado Plano, aceitando «o reconhecimento da índole jurisgénica dos planos», tal-qualmente se expressa o acórdão recorrido.
Falta, assim, o pressuposto processual específico do tipo de recurso de que se serve a sociedade recorrente, o da recusa de aplicação de norma jurídica com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Com o que não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.
4. Termos em que, decidindo, não tomo conhecimento do recurso e condeno a sociedade recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em seis unidades de conta.'
2. Na sua reclamação, a recorrente desenvolve a seguinte argumentação:
'1. A decisão sumária de rejeição (Decisão Sumária) assenta na consideração de que o Supremo Tribunal Administrativo (STA), através do acórdão em crise, situou o decidido no «estrito plano da eficácia jurídica dos planos de urbanização», o que, assim sendo, «não consubstancia nenhum juízo de desconformidade com a Constituição do citado Plano» (isto é, do Plano Morfológico e de Cérceas da Avenida da Liberdade, também designado por Plano Vieira de Almeida, aprovado por despacho do Secretário de Estado do Urbanismo e Habitação, de 22 de Fevereiro de 1974).
2. Recorde-se que a questão controvertida consiste, no que agora interessa, em averiguar qual o parâmetro urbanístico nos termos do qual se deve aferir a legalidade da deliberação da Câmara Municipal de Lisboa, de 22 de Janeiro de 1992, que aprovou o projecto de construção n.º 21022/08/91 para os terrenos envolventes do Cinema Tivoli, deferindo assim o pedido de licenciamento de obras: o Plano Vieira de Almeida (atrás referido) ou o Regulamento Geral das Construções Urbanas vigente nessa data.
3. O STA explicitamente considerou no douto Acórdão que o
«questionado Plano Vieira de Almeida, embora anterior à Constituição de 1976 e, por isso, não vinculado ao requisito formal de publicação no Diário da República estabelecido no artigo 122.° da Constituição, estava abrangido pela exigência de publicação decorrente do princípio da publicidade consagrado no citado preceito constitucional».
É, assim, patente, que o STA, literalmente, deixou de aplicar o normativo constante do Plano Vieira de Almeida em virtude da desconformidade do mesmo com o princípio constitucional da publicidade.
4. Ora, foi com base em tal fundamento literal do Acórdão do STA que a recorrente fundou o seu recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.°, n.° l, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Na Decisão Sumária, no entanto, veio a considerar-se que o STA – não obstante a expressa fundamentação atrás referida – se limitou a tratar da ineficácia do Plano Vieira de Almeida e não da sua desconformidade à Constituição. Salvo o devido respeito, tal análise não parece ser a mais correcta.
Com efeito, antes de mais, é claro que, do ponto de vista substantivo, o STA se recusou a aplicar as normas do Plano Vieira de Almeida, em virtude da desconformidade das mesmas face ao princípio constitucional da publicidade. Ora, o facto da desconformidade em causa se poder colocar no plano da eficácia (uma vez que está em causa, apenas, a falta do requisito da publicidade), do ponto de vista substancial, tal interpretação produz exactamente a mesma consequência que a invalidade das normas em causa, termos em que se não pode aceitar a subtil distinção efectuada na Decisão Sumária. Aliás, não é demais recordar que o artigo 204.° da Constituição impõe aos tribunais a não aplicação das normas que «infrinjam» o disposto na referida Constituição, não se exigindo que tal «desconformidade» se traduza em invalidade das normas em causa. Na realidade, atenta a fórmula lata do dito artigo 204.°, parece claro que, também nas situações em que a desconformidade à Constituição se reporta, apenas, à ineficácia da norma, ainda assim o que está em causa é um juízo sobre constitucionalidade normativa que, como tal, deve ser sindicado pelo Tribunal Constitucional.
6. A isto acresce que, mesmo aceitando a análise da Decisão Sumária, a verdade é que, implicitamente, tal decisão acabou (tal como o STA, também, implicitamente fizera) por excluir a aplicação das normas relativas à publicação dos planos de pormenor, as quais, no caso, seriam o artigo 14.º, n.° 2, do Decreto-Lei n.º 560/71, de 17 de Dezembro, e o Decreto n.° 365/70, de 5 de Agosto, nomeadamente o respectivo artigo 1.°, que indicava quais os diplomas a publicar na 1.ª série do Diário do Governo. Com efeito, foi em virtude do regime destes diplomas que o STA veio a concluir que, efectivamente, o Plano Vieira de Almeida não estava sujeito ao requisito formal da publicação, para em seguida considerar que as normas que consagravam tal dispensa de publicação eram materialmente inconstitucionais em virtude da aplicação (retroactiva) do princípio constitucional da publicidade.
7. Aliás, a recorrente, na fundamentação do seu recurso, implicitamente invocou esta situação, na medida em que expressamente referiu que a questão se colocava no plano da desconformidade superveniente do Plano Vieira de Almeida (e implicitamente das normas que regulavam as exigências relativas à respectiva publicidade) com o disposto na Constituição. Aliás, atento o carácter literal do Acórdão do STA, não podia a recorrente justificar de forma diferente a interposição do recurso em causa.
Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser admitido o recurso.'
Os recorridos não apresentaram resposta à reclamação.
Redistribuído o processo, por o primitivo Relator ter cessado funções neste Tribunal, cumpre apreciar e decidir.
3. Da leitura da fundamentação do acórdão recorrido, transcrita no n.º 2 da decisão sumária reclamada, resulta que aí, após se recordar a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que reconhece natureza regulamentar aos planos municipais de ordenamento do território, se atribuiu ao preceituado no artigo 122.º, n.º 2 (actual artigo 119.º, n.º 2), da CRP uma dupla dimensão:
– enquanto estabelece um requisito formal, exigindo a publicação de certos diplomas em determinados locais; e
– enquanto consagra o princípio da publicidade como uma exigência material, e não apenas formal, do Estado de direito democrático, pois neste os cidadãos têm o direito de conhecer facilmente o ordenamento jurídico que regula a vida em sociedade.
Ora, se é certo que o acórdão recorrido entendeu que o questionado 'Plano Vieira de Almeida', por ser anterior à Constituição de 1976, não estava vinculado ao requisito formal de publicação no Diário da República estabelecido no citado artigo 122.º (seguramente de acordo com o princípio de aplicação das normas constitucionais no tempo, que restringe aos actos praticados após o início da sua vigência a vinculação às regras de índole formal e orgânica), não menos certo é que o mesmo acórdão explicitamente reconheceu aplicável àquele regulamento a 'exigência de publicação decorrente do princípio da publicidade consagrado no citado preceito constitucional', isto é, considerou-o abrangido pela segunda dimensão (material) ao mesmo assinalada. E foi justamente por considerar que este princípio constitucional de índole material (aplicável ao direito ordinário pretérito) teria sido violado que o acórdão recorrido recusou a aplicação do dito Plano para 'servir de parâmetro de legalidade do projecto aprovado pela deliberação contenciosamente impugnada'.
Assim sendo, mostra-se preenchido o requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT
– ter o tribunal recorrido recusado a aplicação de uma norma, com fundamento em inconstitucionalidade –, sendo irrelevante, para este efeito, que o acórdão recorrido haja considerado que a inconstitucionalidade detectada geraria ineficácia (e não invalidade); aliás, a CRP começou, na sua versão originária, por considerar que a falta de publicidade implicava a inexistência jurídica do acto, e, desde a revisão de 1982, associa a esse vício a ineficácia jurídica.
4. Em face do exposto, acordam em, deferindo a reclamação, revogar a decisão sumária reclamada e determinar o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
Lisboa, , 12 de Fevereiro de 2003. Mário José de Araújo Torres (Relator) Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida