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Proc. nº 54/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que figuram como reclamante A e como reclamado B, foi proferida, em 29 de Outubro de 2002
(fls. 19), decisão que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional que a ora reclamante pretendeu interpor de um acórdão daquele Tribunal, de 3 de Outubro de 2002 (fls. 11 a 16), que, por sua vez, havia negado provimento a um recurso interposto de uma anterior decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Loures, que condenara a ora reclamante a despejar um imóvel (identificado nos autos) e a entregá-lo, livre de pessoas e bens, ao ora reclamado. Para não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, o Ex.mo Desembargador Relator do processo no Tribunal da Relação de Lisboa escudou-se na seguinte fundamentação:
'Nos articulados da presente acção não foi levantada qualquer inconstitucionalidade. Nos termos dos artigos 70º, b), 72º e 75º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, não se admite o recurso uma vez que a inconstitucionalidade apenas foi equacionada na alegação para este Tribunal'.
2. É desta decisão que vem interposta a presente reclamação (fls. 3 a 5), em que a reclamante conclui, em síntese – e ao contrário do que foi decidido na decisão reclamada - ser suficiente a suscitação da questão de inconstitucionalidade na alegação de recurso para o tribunal que profere a decisão recorrida, no caso o Tribunal da Relação de Lisboa.
3. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido da improcedência da reclamação apresentada (fls. 22 v. e
23), o que fundamentou nos seguintes termos:
'A suscitação da inconstitucionalidade «durante o processo» apenas exige e implica que, no âmbito dos recursos fundados na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º 28/82, tal questão de constitucionalidade normativa seja levada à consideração do Tribunal antes de ser proferida a decisão que se pretende impugnar perante este Tribunal Constitucional. E, nesta perspectiva, nada obriga a parte interessada a suscitar logo a questão em sede de articulados, podendo perfeitamente fazê-lo no âmbito das alegações de recurso para a Relação. Questão é, porém, que tenha suscitado tal matéria em termos procedimentalmente adequados, o que não ocorre manifestamente no caso dos autos, em que a recorrente se limitou a afirmar nas conclusões do seu recurso de apelação – que delimitam o elenco das questões a apreciar em 2ª instância – que «se assim não se entender, está-se manifestamente a fazer uma interpretação em clara violação dos princípios fundamentais da CRP» (cfr. fls. 12). Ora, como é evidente, tal afirmação, vaga, indeterminada e inconclusiva, não traduz suscitação adequada de uma questão de inconstitucionalidade de normas – cumprindo naturalmente ao recorrente especificar, em termos claros e inteligíveis, quais as concretas dimensões normativas que pretende questionar, especificando quais as interpretações ou sentidos da norma que, no seu entendimento, padecem da invocada inconstitucionalidade. Nestes termos – e por inverificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso interposto – terá de improceder a presente reclamação.
Dispensados os vistos, cumpre decidir. II. Fundamentação.
4. Vem a presente reclamação interposta da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Outubro de 2002, que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional que o ora reclamante pretendeu interpor através do requerimento de fls. 8 e 9. Para o efeito considerou-se, na decisão reclamada, que 'a inconstitucionalidade apenas foi equacionada na alegação para este Tribunal' (o Tribunal da Relação de Lisboa) e não nos articulados apresentados em 1ª instância, o que, no entender da Relação, seria insuficiente. Não assiste, porém, nesta parte, razão à decisão reclamada, como expressamente resulta hoje do n.º 2 do artigo 72º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, que apenas exige que 'a parte (...) haja suscitado a questão de inconstitucionalidade (...), perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (sublinhado nosso), e tem sido desde sempre afirmado pelo Tribunal Constitucional.
5 Importa, porém, averiguar se estão verificados os demais pressupostos processuais do recurso interposto, já que, como se afirma no Acórdão deste Tribunal n.º 641/99 (inédito), 'destinam-se as reclamações sobre não admissão dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional a verificar a eventual preterição da devida reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade, em sede de recurso de constitucionalidade'. Pelo que, continua o Acórdão citado, 'mais que apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, há, pois, que verificar o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor', sendo certo que, ao decidir a reclamação, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, n.º 4, da Lei n.º
28/82. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado, repetidamente, nada obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Porém, nesses casos, tem o recorrente o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.) 'tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º
269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental'. A verdade, porém, é que - como, bem, evidencia o Ministério Público - nas conclusões da alegação de recurso apresentadas perante o Tribunal da Relação de Lisboa não se mostra identificada, nos termos claros e perceptíveis que vêm sendo exigidos por este Tribunal, a exacta dimensão normativa do artigo 64º, n.º
1 al. i) e n.º 2 do RAU, cuja inconstitucionalidade a recorrente pretendia ver apreciada, limitando a mesma a afirmar, a dado ponto, que «se assim não se entender, está-se manifestamente a fazer uma interpretação em clara violação dos princípios fundamentais da Constituição da República Portuguesa – arts. 13º e
208º da Constituição da República Portuguesa ». Ora, tal forma de proceder é, de acordo com a jurisprudência antes referida, manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade. III – Decisão Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) UC. Lisboa, 7 de Fevereiro de 2003 Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida