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Proc. n.º 576/02 Acórdão nº 58/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em 24 de Julho de 2001, o Hospital F, com sede no Barreiro, propôs, junto do Tribunal de Família e de Menores e de Comarca do Barreiro, acção com processo sumário contra o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia de 446.600$00, acrescida de juros de mora, correspondente a serviços prestados pelo autor a uma vítima de acidente de viação.
Na contestação (fls. 12 e seguintes), o Fundo de Garantia Automóvel sustentou, entre o mais, a inconstitucionalidade orgânica do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, e a consequente incompetência em razão do território do tribunal onde havia sido proposta a acção.
Notificado da apresentação da contestação, o autor respondeu, dizendo que a alegada inconstitucionalidade não se verificava (fls. 27).
2. Por despacho de 30 de Abril de 2002 (fls. 44 e seguintes), o juiz do Tribunal de Família e de Menores e de Comarca do Barreiro declarou os juízos de competência especializada civil do Tribunal Judicial da Comarca do Barreiro incompetentes em razão do território para conhecer da mencionada acção, ordenando a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca da Moita.
A decisão fundamentou-se num juízo de inconstitucionalidade do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, nos seguintes termos;
'[...] Da inconstitucionalidade orgânica
[...]
[...] as normas que visem modificar a competência dos tribunais (onde se inclui a competência em razão do território) são da competência relativa da Assembleia da República (artigo 165°, nº 1 al. p) C.R.P). O Governo pode legislar sobre esta matéria desde que munido de autorização legislativa, sob pena de inconstitucionalidade orgânica. A norma constante do artigo 7º DL n° 218/99 de
15-6 consagra, como resulta do que ficou exposto, uma alteração das regras de competência territorial dos tribunais e foi emitida pelo Governo sem precedência de autorização legislativa. Por inobservância da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República estabelecida no artigo 165°, nº 2 al. p) da Constituição é necessariamente inconstitucional quando interpretada no sentido de que incumbe ao tribunal do local onde se situa a sede dos hospitais, e que coincide com o local onde deve ser cumprida a obrigação de pagamento decorrente do contrato de prestação de cuidados de saúde, o processamento e o conhecimento das acções de cobrança de dívidas hospitalares em que é demandado o terceiro responsável pelo facto ilícito ou pelo risco que determinou a assistência médica-hospitalar . Da inconstitucionalidade material: Do que ficou exposto, conclui-se ainda que a norma constante do artigo 7º DL n°
218/99 impede a boa administração da justiça, a produção de prova pelas partes, precludindo assim o direito de defesa dos RR. Torna-se ainda impossível a realização de diligências que o tribunal possa considerar fundamentais, tais como a inspecção judicial ao local com reconstituição dos factos, como muitas vezes acontece neste tipo de acções. O exposto implica a inexistência de um processo equitativo a que as partes têm direito, pelo que, por inobservância do preceituado no artigo 20°, nº 1 e 4 da Constituição, o citado artigo 7º padece ainda de inconstitucionalidade material. Com fundamento na inconstitucionalidade orgânica e material da norma constante do artigo 7º do DL nº 218/99 de 15-6, impõe-se a recusa da sua aplicação, recorrendo-se, na falta de regra especial à regra geral prevista no artigo 74°,
2 CPC. No presente caso o facto ilícito alegado ocorreu na EN 11 que liga Alhos Vedros e a baixa da Banheira, sendo competente em razão do território para conhecer da presente acção o Tribunal da Comarca da Moita. A existência desta excepção obsta a que este tribunal conheça do mérito da causa, impondo a remessa dos autos ao Tribunal competente (art. 493°, 2 e 111º,
3 CPC).
[...].'
3. Do referido despacho interpôs o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Comarca do Barreiro recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, cuja aplicação fora recusada na decisão recorrida (fls. 52 e seguinte).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 54.
4. Nas alegações (fls. 64 e seguintes), concluiu assim o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
'1 – Não colide com o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa a norma que, em sede de determinação do elemento de conexão relevante para fixação da competência territorial, opta por local diverso daquele em que ocorreu o facto gerador dos danos invocados como base da pretensão, já que as regras procedimentais em vigor facultam às partes e ao tribunal a realização das diligências probatórias necessárias à justa composição do litígio.
2 – Situa-se no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República a matéria atinente à «competência dos tribunais», não sendo constitucionalmente admissível que norma inserida em diploma não credenciado por autorização legislativa disponha inovatoriamente nesta sede, nomeadamente derrogando a regra de competência territorial imperativa estabelecida no nº 2 do artigo 74º do Código de Processo Civil.
3 – Configura-se como acção destinada a efectivar a responsabilidade civil extra-contratual, para os efeitos de tal preceito legal, aquela em que certo estabelecimento hospitalar exige do Fundo de Garantia Automóvel o ressarcimento das despesas decorrentes do tratamento ou assistência à vítima de acidente de viação, invocando – como núcleo essencial da causa de pedir complexa em que se funda a pretensão – a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual do desconhecido autor do acidente.
4 – Termos em que – face a tal configuração da acção declaratória – é inovatória, relativamente ao disposto imperativamente no nº 2 do artigo 74º do Código de Processo Civil, a interpretação normativa que – fundando-se na norma desaplicada – considera territorialmente competente o tribunal da sede da entidade credora.
5 – Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade orgânica, formulado pela decisão recorrida.'
Notificado das alegações do Ministério Público, o Hospital F, ora recorrido, declarou aderir, fazer suas e reproduzir na íntegra essas alegações, bem como as respectivas conclusões (fls. 73).
Cumpre apreciar. II
5. O Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, que 'estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados' (cfr. artigo 1º), determina o seguinte no seu artigo 7º:
'Artigo 7º Competência territorial As acções previstas no presente diploma devem ser propostas no tribunal da sede da entidade credora.'
É a apreciação da conformidade constitucional da norma deste artigo
7º que constitui o objecto do presente recurso.
6. Começar-se-á pela questão da eventual inconstitucionalidade orgânica, que é sustentada, não só na decisão recorrida, como também nas alegações produzidas junto deste Tribunal (supra, 2. e 4.). O Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, foi emitido ao abrigo do disposto no artigo 198, n.º 1, alínea a), da Constituição, preceito que estabelece competir ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República. Ao fazer tal decreto-lei, o Governo não legislou, portanto, ao abrigo de qualquer autorização legislativa conferida pela Assembleia da República, mas no uso de competência que considerou concorrente. Tal já havia sucedido, aliás, aquando da emissão do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, entretanto revogado pelo diploma ora em apreço (cfr. artigo 14º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho), que também regulava a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde. Ora, no presente recurso, coloca-se precisamente o problema de saber se o Governo, ao legislar sobre a competência territorial para as acções previstas no Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho – decretando a citada norma do artigo 7º deste diploma –, carecia de autorização da Assembleia da República, atento o disposto na primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição.
É que este preceito constitucional consagra uma reserva relativa de competência legislativa à Assembleia da República nas matérias que dizem respeito à competência dos tribunais, entre as quais se insere naturalmente a repartição da competência na ordem interna.
7. A resposta à questão da eventual violação do preceito da primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso implica a análise do carácter inovatório desta mesma norma face à norma do Código de Processo Civil que seria potencialmente aplicável na determinação do foro territorialmente competente para a acção de que emergiram os presentes autos. Tal carácter inovatório corresponde ao critério de aferição da conformidade constitucional seguido no acórdão deste Tribunal n.º 376/96, de 6 de Março
(publicado no Diário da República, II Série, n.º 160, de 12 de Julho de 1996, p.
9416), no qual se observou o seguinte, a propósito da norma do artigo 10º do
(revogado) Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, relativa ao foro competente para a execução:
'[...]
[...] se bem se atentar, tal norma, comparativamente com aqueloutra constante do artº 94º, nº 1, do Código de Processo Civil, e tendo por referência o disposto no artº 774º do Código Civil, não veio estabelecer, de per si, uma regra diferente no tocante à competência territorial do tribunal caso o credor esteja munido de um qualquer título dotado de força executiva que não o decorrente de sentença judicial.
[...].'
8. No caso da norma que constitui o objecto do presente recurso, considerou o tribunal recorrido que ela inova relativamente à norma que, na sua falta, se aplicaria à acção intentada pelo ora recorrido: a norma do artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil (reguladora da competência territorial para a acção destinada a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco). E inova, porque a norma que constitui o objecto do presente recurso estabelece como territorialmente competente o tribunal da sede da entidade credora e a norma do artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil estabelece como territorialmente competente o tribunal do lugar onde o facto ocorreu.
Sustenta o representante do Ministério Público neste Tribunal
(supra, 6.) que para dirimir a questão de constitucionalidade ora em apreço seria essencial tomar posição sobre a natureza da acção proposta e identificar a respectiva causa de pedir, atendendo a que, caso ela se enquadrasse na previsão do artigo 74º, n.º 1, do Código de Processo Civil (preceito que regula a competência territorial para as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento), nenhuma inovação substancial, relativamente a tal preceito, representaria a norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, impondo-se, consequentemente, a conclusão da não inconstitucionalidade desta norma.
Todavia, afigura-se que, independentemente da posição que se adopte acerca da precisa natureza da acção dos autos e dos concretos elementos constitutivos da respectiva causa de pedir, a circunstância de se tratar de uma acção destinada a exigir o pagamento de uma indemnização por serviços prestados a uma vítima de acidente de viação, sem que entre o autor e o réu tivesse sido previamente celebrado qualquer contrato e sem que o réu se tivesse, de algum modo, obrigado em virtude de negócio jurídico (supra, 1.), sempre redundaria na impossibilidade de aplicação do disposto no artigo 74º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dado que este preceito tem em vista a responsabilidade contratual ou, eventualmente, a responsabilidade emergente de negócio jurídico em sentido amplo.
Portanto, se a norma que constitui o objecto do presente recurso não estivesse em vigor, ao intérprete apenas restaria a opção entre o critério estabelecido no já mencionado artigo 74º, n.º 2, do Código de Processo Civil
(lugar onde o facto ocorreu) – que foi aquele que na decisão recorrida se considerou potencialmente aplicável – e, caso se considerasse que a responsabilidade do réu dos presentes autos não deriva de facto ilícito nem se funda no risco, o critério geral consagrado no artigo 85º, n.º 1, do mesmo Código (domicílio do réu).
Ora, optando-se por um ou por outro destes critérios, a solução seria sempre diversa daquela a que se chega pela aplicação do artigo 7º do Decreto-Lei n.º
218/99, de 15 de Junho, pois que este preceito estabelece como critério de aferição da competência em razão do território o da sede da entidade credora. Conclui-se, assim, que este preceito inova relativamente à norma do Código de Processo Civil que seria potencialmente aplicável na determinação do foro territorialmente competente para a acção de que emergiram os presentes autos, pelo que infringe o disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição.
9. Atingida esta conclusão, desnecessário se torna analisar a questão da inconstitucionalidade material, também colocada na decisão recorrida (supra,
2.).
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição, a norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, negando-se, consequentemente, provimento ao presente recurso. Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Pamplona de Oliveira José Manuel Cardoso da Costa [Vencido. Com efeito, sempre entendi – e exprimi-o logo na declaração de voto conjunta que subscrevi para o Acórdão nº 230/86 (nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., p. 125) – que a reserva de lei parlamentar consignada (hoje) na alínea p) do nº 1 do artigo 165º da Constituição da República não abrange a definição, em toda a sua extensão possivel, da competência dos tribunais, mas apenas num certo nível ou grau: naquele nível ou grau que poderá qualificar-se, provavelmente, de 'estatutário', e que por isso assume uma relevância que justifica a necessidade e a conveniência de a respectiva definição e regulamentação serem precedidas do debate e se revestiram da publicidade que são característicos da legislação parlamentar, e por esta assegurados. Ora, em meu modo de ver, não se situa nesse nível a simples definição ou delimitação da competência 'territorial' de cada tribunal, dentro da respectiva ordem e hierarquia de jurisdição: trata-se aí, antes, segundo creio, de matéria que releva meramente da ordenação 'processual'
(a qual, no que toca, ao menos, ao processo civil, não é da reserva parlamentar), sendo essa, verdadeiramente a 'qualificação' que há-de caber-lhe. Entretanto, em sentido convergente com o agora expresso, estão já – ainda que reportadas a uma situação não inteiramente idêntica – as declarações de voto que apus, entre outros, aos Acórdãos 240/92 (Acórdão, cit., 22º vol.) e 367/92
(Acórdão cit. 23º vol.)]