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Proc. nº 703/02
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por decisão da 8ª Vara Criminal da Comarca de Lisboa foram os ora reclamantes, A e B, condenados, respectivamente: i) o primeiro na pena de 5 anos de prisão, pela prática, em co-autoria, de um crime continuado de burla agravada, previsto e punido pelo art. 313º e 314º, al. c) do Código Penal; ii) o segundo na pena de 4 anos de prisão, pela prática, em co-autoria, de um crime de burla agravada, previsto e punido pelo art. 313º e 314º, al. c) do Código Penal; Além disso foram ainda condenados (juntamente com outro) a pagarem ao Estado a quantia de 31.920.000$00, acrescidos de juros legais, desde Abril de 1984 até integral pagamento. O Réu A foi ainda condenado (juntamente com outro) a pagar ao Estado a quantia 50.780.000$00, desde Fevereiro de 1985 até integral pagamento.
2. Inconformados com esta decisão os arguidos e o Ministério Público recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 7 de Maio de 1996, decidiu, para que agora interessa, negar provimento ao recurso dos Réus B e A e, consequentemente, condenar o primeiro na pena de 4 anos de prisão, 'mas como co-autor material de um crime de fraude na obtenção de subsídio, particularmente grave' e condenar o segundo como co-autor material 'de um crime de fraude na obtenção de subsídio, particularmente grave, e sob a forma reiterada, na pena
(...) de cinco anos de prisão.
3. Novamente inconformados os arguidos recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado, a concluir a sua alegação, designadamente as seguintes conclusões: A. O arguido B:
'1ª - O crime de «fraude na obtenção de subsídio» é um crime de «dano», só relevando na concessão, as condutas (manobras fraudulentas e erros) que antecedem essa concessão e a predeterminam causalmente. Daí que o Acórdão recorrido tenha desrespeitado o «princípio da aplicação da Lei no Tempo», violando, assim, o disposto no nº 1 do art. 29º da Const. Repª.'.
B. O arguido A:
'(...)
7. Porém, como sustentam predominantemente a jurisprudência e a melhor doutrina citadas no corpo desta alegação, a fraude na obtenção de subsídio ou subvenção consuma-se no momento em que foi dado o despacho de aprovação do projecto de candidatura do arguido. A partir desse despacho, a importância concedida sai da esfera patrimonial do concedente, passando para a do «concedido», certo que o primeiro já não poderia dispor dessa verba.
8. O depósito de numerário em conta do arguido e o caminho dado por este ao mesmo são irrelevantes. O «iter criminis» mostra-se preenchido independentemente do local onde o montante concedido venha a ser percebido.
9. A fraude na obtenção de subsídio consuma-se não no momento coincidente com a entrega efectiva do subsídio previamente concedido, mas sim – e apenas – no momento em que foi dado o despacho de aprovação do pedido de concessão do mesmo subsídio.
10. O que ocorreu com a prolação, pelo Secretário de Estado das Pescas, do despacho de concessão do subsídio, em 31 de Dezembro de 2003 (cfr. fls. 1272 e vº e resposta aos quesitos 19 a 21 e 59).
11. É pois esse – e não outro – o momento do «resultado», da consumação do crime: aquele em que se produziu o dano que o legislador quis prevenir; dano esse consubstanciado pelo despacho favorável de concessão do subsídio, proferido em consequência das manobras fraudulentas e dos erros que o pré-determinaram.
12. Os princípios da tipicidade e da legalidade prescritos no art. 29º da Constituição, são postos em causa quando se condena alguém pela prática de um crime ainda não previsto nem punido.
13. Ao decidir como decidiu, o douto acórdão recorrido fez, pois, errada interpretação e aplicação não só do preceito do direito penal económico do art.
36º do DL 28/84, de 20 de Janeiro como – e fundamentalmente – dos princípios constitucionais básicos da legalidade e da tipicidade prescritos no art. 29º da CRP, art.s 1º e 2º do CP e 146 e segts. E 673 e sgts. Do CPP.
(...)
34. Atentas as diferenças típicas, sua repercussão no tema da prova e no objecto do processo, a incriminação adequada aos factos provados é a correspondente ao art. 36º, nº 1, al. a), nº 2, nº 3 e nº 8 do DL 28/84, e não aquela que foi adoptada no acórdão recorrido, em convolação para o crime de burla agravada, na forma continuada.
35. Nos termos do art. 86º do citado Dec. Lei 28/84, de 20 de Janeiro, o aludido diploma apenas entrou em vigor em 1 de Março de 1984.
36. À data da consumação do crime consubstanciado pelos factos imputados ao R. A
– 31 Dez. 83 – ainda não se encontrava em vigor o aludido Dec. Lei; que é o
único a tipificar e a correctamente enquadrar juridicamente a punibilidade de tais factos.
37. Constitui princípio fundamental consagrado no art. 29º da Constituição da República Portuguesa que«ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão...'
38. Preceito que contém o essencial do regime constitucional da lei criminal – NULLUM CRIMEN SINE LEGE, NULLA POENA SINE LEGE – aliás também consagrado nas disposições penais dos artigos 1º e 2º do CP; art.s 146º e ss e 673º e ss. do CPP.
39. Constitui um impossível jurídico - constitucional, além de também juridico-penal -, condenar o R. A pela prática de factos não previstos e punidos criminalmente à data em que tenham sido presumivelmente praticados.
(...)'.
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 30 de Abril de 1998, decidiu não conhecer dos recursos que haviam sido interpostos pelos arguidos, por considerar que os mesmos não haviam cumprido o convite que lhes foi feito ao abrigo do disposto no art. 690º, nº 3, do CPC.
5. Desta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, foi interposto pelo arguido A, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, recurso de constitucionalidade, para apreciação da inconstitucionalidade da norma que, na interpretação da decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 1998, se extrai do nº 3 do artigo 690º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à resultante dos Decretos-Lei nºs 329/A-95 e 180/96.
6. O Tribunal Constitucional, por Acórdão de 5 de Maio de 1999, decidiu:
' (...) b) julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20º, e 32º, nº 1, da Constituição, a norma do artigo 690º, nº 3, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à resultante dos Decretos-Lei nºs 329/A-95 e 180/96, e quando subsidiariamente aplicável em processo penal ainda regido pelo Código de 1929), quando interpretada no sentido de considerar relevante - para efeitos de decidir se um determinado conteúdo integrante de uma peça processual tem ou não a natureza de 'conclusões' - qualquer outro critério normativo de decisão - designadamente um critério puramente formal traduzido no número de artigos ou de páginas utilizadas pelo recorrente para expor os pontos em que discorda e os fundamentos porque discorda da decisão recorrida, bem como os fundamentos da solução que sustenta - que não seja um critério lógico ou funcional, que faça assentar a decisão na questão de saber se o conteúdo da peça processual apresentada permite ou não realizar as funções que legitimam a exigência de conclusões, sob a cominação de não se conhecer do objecto do recurso; c) julgar inconstitucional o artigo 690º, nº 3, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à resultante dos Decretos-Lei nºs 329/A-95 e 180/96, e subsidiariamente aplicável a processo penal ainda regido pelo Código de 1929), por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado nos nºs 2 e 3 do artigo 18º, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição, quando interpretado no sentido de que não incorpora, ao nível da consequência processual prevista - o não conhecimento do recurso - uma regra de redução desse efeito processual à parte das conclusões que se mostre efectivamente afectada'.
7. Na sequência do assim decidido baixaram os autos ao Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 1 de Julho de 1999, decidiu manter o despacho reclamado, indeferindo a reclamação do arguido A e, em consequência, não conhecer do seu recurso.
8. Inconformado com esta decisão o arguido A apresentou, ao abrigo das alíneas b) e g) do nº 1 do artigo 70º da LTC, novo recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, recurso que, por decisão do Ex.mo Conselheiro Relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça, não foi admitido, com fundamento em que seria manifestamente infundado.
9. Desta decisão foi interposta, ao abrigo do disposto nos artigos 76º, nº 4 e
77º da LTC, reclamação para o Tribunal Constitucional, que, pelo Acórdão nº
184/01, tirado em plenário, julgou a mesma procedente.
10. Em cumprimento desta decisão do Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 7 de Fevereiro de 2002, decidiu ordenar o prosseguimento dos autos, com o consequente julgamento do recurso que havia sido interposto pelo arguido A. Nessa sequência proferiu, em 11 de Abril de 2002, acórdão com o seguinte teor:
'Pelos fundamentos expostos no parecer do relator exarado a fls. 2300 e segs., que aqui se dão por inteiramente reproduzidos, acorda-se, quanto às questões suscitadas pelo réu A no seu recurso, em julgá-lo manifestamente infundado no que concerne às seguintes questões: momento da consumação do crime de fraude na obtenção de subsídio (conclusões 1ª a 13ª e 32ª a 39ª) e omissão de pronúncia e falta de fundamentação do acórdão da Relação acerca dos perdões (conclusões 40ª a 45ª), e em não conhecer dele no que toca às seguintes questões: medida concreta da pena (em termos de atenuação especial) e suspensão da respectiva execução (conclusões 14ª a 21ª) e violação do disposto no art. 447º do CPP de 1929 (conclusões 22ª a 31ª), sem embargo de, quanto a esta última questão, se acordar ainda em julgar o recurso manifestamente infundado, assim se confirmando, inteiramente, o decidido pela Relação de Lisboa no que respeita ao recorrente'.
11. Notificado desta decisão o arguido A veio reclamar da mesma para a Conferência, por nulidades, em virtude de ter deixado de apreciar questões que deveria ter apreciado, reclamação que foi indeferida pelo Acórdão de 27 de Junho de 2002.
12. O mesmo acórdão decidiu ainda indeferir uma reclamação do arguido B, visando impugnar o despacho que mereceu um seu requerimento, apresentado em 29 de Abril de 2002, no qual pedia a correcção de um erro que, no seu entender, consta do Acórdão da Relação de Lisboa quanto à data da conduta que lhe é imputada, e ainda, corrigido o erro, se julgasse prescrito o procedimento criminal por terem decorrido 18 anos sobre aquela data. Para indeferir esta reclamação, escudou-se o Supremo Tribunal de Justiça, designadamente, na seguinte fundamentação:
'No referido despacho, o relator disse, fundadamente, que o pedido de rectificação do invocado erro não podia ser atendido, por ser totalmente extemporâneo. Mais disse o relator que o acórdão de fls. 2308 (de 11-4-2002), que se louvou no seu parecer de fls. 2300 e segs. (de 15-3-2002), fixou claramente a data da consumação do crime de fraude na obtenção de subsídio por cuja prática foram condenados os réus B, A e F, sendo tal data Fevereiro de 1985. Acrescentou ainda o relator que sobre esta matéria ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal, nos termos do art. 666º, nº 1 do CPC, aplicável ex vi do art. 1º, § único, do CPP de 1929, ficando completamente prejudicada a pretensão do requerente. De facto, ainda que houvesse erro da Relação, a sua correcção não teria a virtualidade de alterar o referido acórdão deste Supremo Tribunal acerca da data da consumação do crime em apreço, matéria sobre a qual o relator se debruçou atentamente e com fundamentação correcta, aprovada por unanimidade, naquele acórdão.
(...) Acresce dizer que, como já por diversas vezes foi afirmado, o presente processo não se rege pelo CPP de 1987, mas sim pelo CPP de 1929, pelo que lhe é absolutamente inaplicável o artigo 380º daquele primeiro diploma que, por isso, não foi aplicado pelo despacho reclamado. Por outro lado, não percebemos porque é que a interpretação e aplicação dada ao art. 667º do CPC é inconstitucional, por violação do nº 4 do art. 29º e do nº 1 do art. 32º, ambos da Constituição. De resto, o reclamante nada esclarece a este respeito. O nº 2 do citado 667º é bem claro e foi aplicado nos seus precisos termos, não podendo aproveitar ao reclamante a sua ignorância acerca do que tal normativo dispõe. Aliás, a invocação de erro material antes do recurso subir tem toda a lógica, pois permite aos interessados a alegação perante o tribunal superior do que tiverem por conveniente, no tocante à rectificação. Sendo assim, onde é que se violam os art.s 29º, nº 4 e 32º da Constituição ?'.
13. Inconformado com esta decisão de 27 de Junho de 2002 (fls. 99 a 101 dos presentes autos), o arguido B apresentou, ao abrigo da alínea b) do nº 1, do art. 70º da LTC, recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 102 a 105). Pretende o recorrente ver apreciada, nos termos do respectivo requerimento de interposição, a inconstitucionalidade da 'interpretação que o Tribunal deu aos artigos 380º do Cod. Proc. Penal e art. 667º do Cod. Proc. Civil, por violação do nº 4 do art. 29º e do nº 1 do art. 32º, ambos da CRP'. No mesmo requerimento, acrescenta ainda o recorrente: 'Onde ocorre a inconstitucionalidade. Ocorre precisamente no seguinte: O art. artigos 380º do CPP e art. 667º do CPC conferem o direito à correcção do erro. O R. invocou esse direito, pedindo a correcção. Esse direito não foi reconhecido, nem atendido, nos termos do acórdão proferido em conferência. A negação desse direito, na interpretação e aplicação que foi dada aos citados normativos, denega o direito ao R. em se defender, violando o nº 1 do art. 32º e leva a que o R. cumpra pena de prisão, quando é certo, se o erro for corrigido, não cumpre, porque se verifica a extinção do procedimento criminal por prescrição. Daí que; Quer na interpretação quer na aplicação dos normativos citados, haja inconstitucionalidade, por violação do nº 4 do art. 29º da CRP, uma vez que o R. não vê declarada a prescrição do procedimento criminal (pela não correcção e reconhecimento do erro) e nessa medida sofre o cumprimento da pena, devido a um erro, o qual é contributivo, da não aplicação do princípio da «retroactividade de Lei no Tempo», violando, assim, o nº 4 do art. 29º da CRP'.
14. Por sua vez o arguido A veio igualmente recorrer para o Tribunal Constitucional, apresentado um requerimento de interposição que conclui nos seguintes termos:
'A) O presente recurso funda-se na alínea b) do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional e da fiscalização da constitucionalidade; B) A decisão recorrida é o douto acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2002, que, confirmando anterior acórdão da Relação de Lisboa, condenou o ora recorrente em pena de prisão pela prática de um crime de fraude na obtenção de subsídio previsto e punido no nº 1 do art. 36º do Decreto-Lei
28/84 de 20/01; C) A norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, é a do art. 36º do Decreto-Lei 28/84 de 20/01, na interpretação e aplicação que dela foi feita pelo Tribunal a quo (cfr. art. 80º nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional); D) As normas violadas foram as dos art.s 2º, 3º, 18º e 29º da CRP e as dos art.s
1º 2º e 3º do Código Penal, que consagram os princípios do Estado de direito, da Legalidade e Tipicidade Penal e da Força Jurídica dos Preceitos Constitucional; E) O recorrente suscitou a questão perante o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso entrado em 03.06.97, com apresentação de novas conclusões em 29.07.97; mas a questão fora já aflorada perante o Tribunal da Relação de Lisboa, nas alegações ali entradas em 24.04.95; F) O Recorrente dispõe de legitimidade (art. 72º, nº 1, alínea b)) e está em prazo, nos termos do disposto no nº 1 do art. 75º da Lei nº 28/82 de 15.11'.
14. Por parte do Supremo Tribunal de Justiça foi proferida decisão que não admitiu os recursos para o Tribunal Constitucional. Escudou-se aquele Tribunal, para tanto, na seguinte fundamentação:
'I - O Réu A veio a fls. 2362 2 segs. Interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça com a data de
11-4-2002. Sucede que o réu veio anteriormente reclamar daquele acórdão para a conferência, por nulidades. Ora, no acórdão de 27-6-02 que se pronunciou sobre tal reclamação disse-se, claramente, que não existe a figura processual de reclamação do acórdão da conferência para a mesma conferência. Mais se disse naquele acórdão, também de forma clara, que o réu em causa, na referida reclamação, não arguiu, em concreto, qualquer nulidade do acórdão de
11-4-2002, limitando-se a manifestar a sua discordância quanto ao aí decidido, pelo que a reclamação adequada seria o recurso e não uma pretensa arguição de nulidades. Significa isto que o Réu A usou de meios processualmente ilegais para reagir contra o acórdão de 11-4-2002. Ora, por serem ilegais, tais meios não têm, obviamente, a virtualidade de deferir o início do prazo do recurso para o Tribunal Constitucional para depois da notificação do acórdão de 27-6-2002, que se pronunciou sobre a reclamação do réu. O entendimento contrário levaria a um alargamento ilegal do prazo do recurso. Verifica-se, assim, que o recurso ora intentado pelo réu A, cujo prazo é de 10 dias (art. 75º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15-11) está manifestamente fora do prazo legal (notificação do acórdão de 11-4-2002 que se presume feita em
15-7-2002 (fls. 2319) e interposição do recurso e, 15-7-2002 (fls. 2371). Temos, assim, que o acórdão de 11-4-2002 já transitou em julgado, sendo, pois, absolutamente inadmissível o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, por ser intempestivo. Por conseguinte, não admito tal recurso. II – Também o réu B veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 27-6-2002, quanto à parte deste que lhe diz directamente respeito e que tem a ver com matéria decidida pelo acórdão de 11-4-2002, o qual, como se decidiu no despacho I supra, já transitou em julgado. Assim, o eventual provimento do recurso interposto por este réu para o Tribunal Constitucional do referido acórdão de 27-6-2002 não pode provocar qualquer alteração do decidido por este Supremo Tribunal através do acórdão de 11-4-2002, que é a decisão final destes autos também quanto ao réu D. De resto, constitui jurisprudência constante do Tribunal Constitucional a de que o recurso para ele interposto tem natureza instrumental, ou seja, tem de ter utilidade prática. E é isso o que não sucede aqui, pelo que o recurso ora interposto pelo Réu D para o Tribunal Constitucional constitui um acto inútil, cuja prática não é permitida pelo disposto no art. 137º do CPC. Por outro lado, o art. 380º do CPP de 1987 não foi aplicado pelo acórdão recorrido – nem pelo despacho reclamado – pelo que, fundando-se o recurso no art. 70º, nº 1, b) da Lei 28/82, de 15-11, o mesmo não poderia ser admitido nesta parte. Finalmente, o recorrente veio suscitar a inconstitucionalidade daquele art. 380º e do art. 667 do CPC, por violação do nº 4 do art. 29º e do nº 1 do art. 32º da Constituição, na reclamação para a conferência que deu lugar ao acórdão de
27-6-2002, mas não explanou as razões da invocada inconstitucionalidade. Logo, o recorrente não permitiu que este Supremo Tribunal apreciasse tal inconstitucionalidade, pelo que tudo se passa como se não a tivesse suscitado atempadamente. Assim, também nos termos do art. 70º, nº 1, b) da Lei 28/82, o acórdão recorrido não admite recurso para o Tribunal Constitucional. Por conseguinte, não admito o recurso do réu Pinto Leal para o Tribunal Constitucional'.
15. É desta decisão que vêm interpostas, pelos arguidos A e B , as presentes reclamações. O reclamante A, na reclamação que apresentou (fls. 1 a 19 dos presentes autos), veio, em síntese, sustentar a tempestividade do recurso que não foi admitido, por o prazo para a sua interposição só se iniciar com a notificação do acórdão que indeferiu a arguição de nulidades. Por sua vez o Reclamante B conclui a sua reclamação da seguinte forma:
'1º - O recurso interposto pelo R. A, de acordo com o art. 663º do CPC de 1929, aproveita ao R. B.
2º - De acordo com o normativo citado o Tribunal, oficiosamente deveria ter reconhecido e sanado o erro face ao disposto no art. 380º do CPP de 1987.
3º - Ao sanar o erro, deveria nessa sequência ter declarado a prescrição.
4º - O despacho sob reclamação retira ao R. o direito de interpôr recurso para o Trib. Const.
5º - Esse despacho é fundamentado com violação: a. Art. 380º do Cód. Proc. Penal de 1987. b. Art. 663º do Cod. Proc. Penal de 1929'.
16. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido da improcedência das reclamações apresentadas, conclusão que fundamentou nos seguintes termos:
'Parece-nos manifesto que carece de fundamento o despacho reclamado quando considera intempestiva a interposição dos recursos de constitucionalidade, por previamente os recorridos terem arguido, perante o Supremo, alegadas nulidades do acórdão proferido – aguardando pela respectiva dirimição e só então interpondo recurso para este Tribunal Constitucional. Na verdade, o regime constante do art. 686º do CPC tem de aplicar-se também aos casos em que a parte, antes de interpor recurso de fiscalização concreta, tratou de arguir, perante o Tribunal a quo, certa nulidade da sentença ou acórdão: é que, como é evidente, atento os limites quanto aos poderes de cognição do TC, nunca será aplicável o preceituado no nº 3 do art. 668ºdo CPC, carecendo as nulidades de ser invocadas autonomamente, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida – e só com a notificação do acórdão que dirime tais nulidades se iniciando o prazo para recorrer para este Tribunal (neste sentido, cf. ac.
79/2000). Importa, porém, verificar - atento o âmbito e os efeitos da reclamação deduzida em processo constitucional – se estarão preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade dos recurso interpostos pelos ora reclamantes. E a resposta a tal questão é negativa o que conduz à improcedência das reclamações deduzidas. Assim – e no que respeita ao recurso do arguido B (fls. 102) – não se mostra identificada e especificada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta: na realidade, o recorrente limita-se a pugnar pela existência de um «erro das instâncias» quanto à determinação da «data» em que o crime teria sido consumado, pretendendo que o STJ (que naturalmente não tem poderes para valorar a matéria de facto) proceda à respectiva «correcção» - e sendo manifesto que tal situação não tem qualquer conexão com os regimes adjectivos que constam, quer do art.
380º do CPP (aliás, nem sequer invocado e aplicado pelo STJ, já que se trata de processo regido pelo CPP de 1929), quer do art. 667º do CPC, que naturalmente apenas admite a rectificação de lapsos ou erros ostensivos, resultantes do próprio teor «interno» das decisões judiciais – e não de uma rediscussão da matéria de facto, apurada definitivamente pelas instâncias, a pretexto de estar inquinada de «erro» na apreciação das provas. Quanto ao recurso do arguido A (a fls. 1906), verifica-se identicamente que a questão de constitucionalidade suscitada se prende com os princípios da tipicidade e legalidade na interpretação dos elementos do tipo penal que ditou a respectiva condenação, pretendendo que a interpretação «correcta» do art. 36º da Lei nº 28/82 é a que considera relevante para a consumação do crime de fraude na obtenção de subsídio o momento em que ocorreram as «manobras fraudulentas» e os
«erros» que antecederam a concessão do subsídio – e não o ulterior e consequente
«pagamento efectivo» da última parcela de tal subsídio. Deste modo – e na óptica do recorrente – o Supremo, ao fazer apelo, como elemento decisivo, à data do pagamento efectivo do subsídio, teria violado os princípios da tipicidade e legalidade penais, traduzindo-se tal interpretação numa inadmissível extensão do tipo penal. Só que – como resulta do decidido no ac. 674/99, para cuja fundamentação inteiramente se remete – tal questão carece de carácter normativo, já que não é possível ao TC sindicar o processo interpretativo acolhido pelo STJ – e sendo certo que o resultado interpretativo alcançado não colide seguramente com qualquer outra norma ou princípio constitucional: dito por outras palavras, é evidente que numa eventual consagração legislativa da fisionomia daquele tipo legal de crime que o Supremo lhe atribuiu não padeceria, seguramente, de qualquer inconstitucionalidade. E sendo manifesto, por outro lado, que a interpretação acolhida pelo STJ não traduz aplicação aos factos da lei que só posteriormente haja entrado em vigor – já que a aplicação da Lei nº 28/84 teve naturalmente como pressuposto lógico a dita visão substancial do tipo em causa e a relevância – decisiva para a consumação – da efectiva obtenção do subsídio – facto ulterior à entrada em vigor desse diploma legal. Nestes termos – e pelas razões apontadas – somos de parecer que as reclamações deduzidas devem ser julgadas improcedentes'.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir. II. Fundamentação.
17. A reclamação do arguido A
17. 1. Vem a presente reclamação interposta da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Setembro de 2002, que não admitiu, com fundamento na sua intempestividade, o recurso para o Tribunal Constitucional que o ora reclamante pretendeu interpor através do requerimento de fls. 106 a 114. Para o efeito considerou-se na decisão reclamada que o prazo de 10 dias para a interposição do recurso se conta a partir da notificação do acórdão recorrido e não da notificação do acórdão que indeferiu a arguição de nulidades daquele. Porém – como, bem, evidencia o Ministério Público no seu parecer – não assiste, nesta parte, razão à decisão reclamada. No Acórdão deste Tribunal nº 79/2000
(ainda inédito), e numa questão em tudo idêntica à dos presentes autos, ponderou o Tribunal Constitucional:
'(...) a disciplina estabelecida pelo Código de Processo Civil em matéria de recursos, designadamente a regra constante do artigo 686º que regula a interposição de recursos no caso de ser requerida a «rectificação, aclaração ou reforma» da decisão recorrida – disciplina essa aplicável subsidiariamente ao processo constitucional –, tem de ser adaptada à especificidade dos recursos de constitucionalidade e ao carácter circunscrito dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, limitados à apreciação da questão de inconstitucionalidade normativa suscitada'.
(...) Tendo em conta a natureza do recurso de constitucionalidade e o carácter circunscrito dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, não pode o recurso perante este Tribunal ter como fundamento as nulidades da decisão recorrida, nos termos da segunda parte do nº 3 do artigo 668º do Código de Processo Civil. Importa assim adaptar a norma do artigo 686º do Código de Processo Civil – sobre a interposição do recurso quando haja rectificação, aclaração ou reforma da sentença – às características próprias do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interpretando-a no sentido de abranger igualmente na sua previsão a arguição de nulidade da decisão de que se pretende interpor recurso de constitucionalidade. Tal interpretação por analogia tem como consequência que a arguição de nulidades de uma decisão opera também a prorrogação do prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. No caso dos autos, independentemente da questão de saber se o incidente suscitado pelo arguido perante o tribunal a quo configura uma autêntica arguição de nulidades do despacho de pronúncia, certo é que o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa apreciou tal arguição, indeferindo as invocadas nulidades «por falta de fundamento». Nestas circunstâncias, aplicando ao caso, por analogia, o regime fixado no artigo 686º do Código de Processo Civil, o prazo para interposição do recurso de constitucionalidade apenas se inicia com a notificação do despacho que indeferiu as nulidades suscitadas, por falta de fundamento'. Esta fundamentação - que, por manter inteira validade, agora se reitera - conduz a que tenha de considerar-se tempestiva a interposição do recurso para o Tribunal Constitucional pelo ora reclamante.
17.2 Importa, porém, averiguar desde já se estão verificados os demais pressupostos processuais do recurso interposto, já que, como se afirma no Acórdão deste Tribunal nº 641/99 (inédito), 'destinam-se as reclamações sobre não admissão dos recursos intentados para o Tribunal Constitucional a verificar a eventual preterição da devida reapreciação, pelo Tribunal Constitucional, de uma questão de constitucionalidade, em sede de recurso de constitucionalidade'. Pelo que, continua o Acórdão citado, 'mais que apreciar a fundamentação do despacho de indeferimento do recurso, há, pois, que verificar o preenchimento dos requisitos do recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor', sendo certo que, ao decidir a reclamação, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, nº 4, da Lei nº 28/82. O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - que o ora reclamante pretendeu interpor – pressupõe, consequentemente, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, ou de uma sua interpretação normativa. Vejamos, pois, se tal aconteceu no caso dos autos. Tal como delimitado pelo reclamante A no requerimento de interposição do recurso, o mesmo teria por objecto a norma do artigo 36º do Decreto-Lei nº
28/84, de 20 de Janeiro, na interpretação segundo a qual 'o que releva para a consumação do crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção é a obtenção efectiva do subsídio ou da subvenção e não a concessão destes por despacho da entidade competente para o efeito, e ainda que o crime se consuma com o pagamento efectivo da última tranche de subsídio concedido'. A verdade, porém, é que só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional a questão de inconstitucionalidade surge equacionada deste modo. Com efeito, verifica-se que durante o processo - concretamente nas conclusões da alegação apresentada perante o Supremo Tribunal de Justiça - o reclamante não suscitou propriamente a inconstitucionalidade de uma norma com uma determinada interpretação, antes imputou o vício de inconstitucionalidade à própria decisão recorrida. Para o demonstrar transcrevem-se as conclusões das alegações de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça onde o reclamante se refere à alegada inconstitucionalidade:
'(...)
12. Os princípios da tipicidade e da legalidade prescritos no art. 29º da Constituição, são postos em causa quando se condena alguém pela prática de um crime ainda não previsto nem punido.
13. Ao decidir como decidiu, o douto acórdão recorrido fez, pois, errada interpretação e aplicação não só do preceito do direito penal económico do art.
36º do DL 28/84, de 20 de Janeiro como – e fundamentalmente – dos princípios constitucionais básicos da legalidade e da tipicidade prescritos no art. 29º da CRP, art.s 1º e 2º do CP e 146 e segts. E 673 e sgts. Do CPP.
(...)
37. Constitui princípio fundamental consagrado no art. 29º da Constituição da República Portuguesa que«ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão...'
38. Preceito que contém o essencial do regime constitucional da lei criminal – NULLUM CRIMEN SINE LEGE, NULLA POENA SINE LEGE – aliás também consagrado nas disposições penais dos artigos 1º e 2º do CP; art.s 146º e ss e 673º e ss. do CPP.
39. Constitui um impossível jurídico - constitucional, além de também juridico-penal -, condenar o R. A pela prática de factos não previstos e punidos criminalmente à data em que tenham sido presumivelmente praticados (sublinhados nossos).
(...)'.
Ora, das transcrições feitas resulta que o ora reclamante não imputa o juízo de inconstitucionalidade a uma norma jurídica, mas ao próprio acto (decisão judicial) de aplicação, no caso concreto, do artigo 36º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro. O que, naquela peça processual, o ora reclamante verdadeiramente questiona é o processo interpretativo (e, nesse sentido, a decisão judicial) que permitiu ao tribunal recorrido subsumir à descrição típica os factos que lhe são imputados. Dito de outra forma, o que o ora reclamante ali impugnou foi a aplicação ao caso do artigo 36º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro – a norma que define os elementos do tipo do crime de fraude na obtenção de subsídio e estabelece a respectiva punição. Efectivamente, ao referir-se, durante o processo, a uma eventual violação da Constituição, o ora reclamante invocou afinal a inconstitucionalidade da decisão judicial na parte em que considerou subsumível a sua conduta ao tipo de crime previsto e punido por aquela norma, e não a inconstitucionalidade da norma jurídica em que a decisão se fundamentou. Dessa forma, não tendo sido suscitada durante o processo pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa, conclui-se que não se encontram verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. E isto independentemente da questão de saber se, neste ponto, ainda assim seríamos confrontados com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa. Por tudo o exposto, entende-se que a presente reclamação deve ser indeferida.
18. A reclamação do arguido B. O reclamante B pretendia, nos termos do requerimento de interposição do recurso que apresentou no Supremo Tribunal de Justiça, ver apreciada a inconstitucionalidade da 'interpretação que o Tribunal deu aos artigos 380º do Cód. Proc. Penal e art. 667º do Cód. Proc. Civil, por violação do nº 4 do art.
29º e do nº 1 do art. 32º, ambos da CRP'.
É, porém, manifesto, como vai ver-se, que não estão verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso que o ora reclamante pretendeu interpor. Com efeito, no que especificamente se refere ao artigo 380º do Código de Processo Penal, tal norma não foi sequer aplicada pela decisão recorrida, que expressamente teve o cuidado de afastar a sua aplicação, por se tratar de processo ainda regido pelo Código de 1929. Por outro lado, no que se refere ao art. 667º do Código de Processo Civil, como afirma o Ministério Público, 'não se mostra identificada e especificada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta: na realidade, o recorrente limita-se a pugnar pela existência de um «erro das instâncias» quanto à determinação da «data» em que o crime teria sido consumado, pretendendo que o STJ (que naturalmente não tem poderes para valorar a matéria de facto) proceda à respectiva «correcção»'. Não está, assim, identificada, da forma clara e perceptível que vem sendo exigida por este Tribunal, a dimensão normativa que considera inconstitucional. Tanto basta para que se não possa conhecer do objecto do recurso. Por tudo o exposto, entende-se que também a presente reclamação deve ser indeferida.
III – Decisão Nestes termos, decide-se indeferir as presentes reclamações e, em consequência, confirmar a decisão reclamada na parte em que não admitiu os recursos para o Tribunal Constitucional. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta, por cada um. Lisboa, 27 de Janeiro de 2003 Gil Galvão Bravo Serra Luís Nunes de Almeida