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Proc. n.º 574/02 Acórdão nº 64/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por sentença de 8 de Junho de 2001 (fls. 256 e seguintes), foram julgados improcedentes os embargos que A deduzira à falência que contra si havia sido decretada. Desta sentença apelou A para o Tribunal da Relação de Coimbra, que por acórdão de 4 de Dezembro de 2001 (fls. 292 e seguintes) negou provimento ao recurso. Interposto novo recurso por A, foi suscitada pelo recorrente nas respectivas alegações a questão da inconstitucionalidade dos artigos 27º, 147º, 148º e 149º do Código de Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 4 de Junho de 2002 (fls. 362 e seguintes), negou a revista.
2. Deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorreu A para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 368 e seguintes):
'[...] O presente recurso é instaurado nos termos da alínea b) do art. 70° da CRP. O recorrente entende que as inibições dos arts. 147°, 148° e 149° do CPEREF, decorrentes da declaração de falência padecem de:
- Inconstitucionalidade formal, por não terem respaldo material no conteúdo do art. 4° da Lei de Autorização Legislativa n° 16/92 de 6 de Agosto;
- Inconstitucionalidade material por ofenderem o preceituado no art. 18° n° 2 da Constituição. Aliás, tais normas estão em absoluta contradição com o estatuído no art. 824° n°
1 al. a) do Código Processo Civil, perguntando-se como é possível que ex vi do n° 1 al. a) do art. 824° do Código Processo Civil – esteja proibida a penhora de dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado e, depois, através do CPEREF, seja, possível «atirá-lo» – o mesmo executado – para a falência com as consequências previstas e punidas nos arts. 147°, 148° e 149° do mesmo diploma legal? A ser possível tal situação algo vai mal no tão apregoado Estado de Direito! Sendo nessa medida inconstitucional o próprio CPEREF. O recorrente entende que são inconstitucionais as normas retro-mencionadas, inclusive, o próprio CPEREF, se, e enquanto não distinguir o devedor não comerciante, do devedor comerciante, ainda por cima, «pune» mais severamente, o não comerciante do que o comerciante. Com efeito, interpretar o art. 1º nºs 1 e 2 e 27° nºs 1 e 2 do CPEREF, eliminando-se a distinção entre insolvência e falência, e, depois, afirmar que quando se trata de devedor físico (art. 9°) permite que seja decretada a sua falência enquanto vivo for e se for devedor jurídico (não pessoa humana), então, já só pode decretar-se a falência até um ano após a cessação da actividade, é, distinguir duas pessoas (jurídicas) perante a lei, e esta não quer tal distinção. Logo tal interpretação é forçosamente, inconstitucional, donde, o destino do avalista tem, minimamente, de acompanhar o destino do avalado. O recorrente suscitou as inconstitucionalidades na 1ª e 2ª instâncias e neste Supremo Tribunal de Justiça.
[...].'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 373.
3. Nas alegações (fls. 376 e seguintes), concluiu A do seguinte modo:
'[...] m) [...] só por mera argumentação se concede que o art. 27° do Cód. das falências é aplicável qua tale ao recorrente, atendendo as inibições que para o mesmo advém de tal aplicação, estatuídas nos arts. 147°, 148° e 149° do Cód. das Falências, não podem deixar de ser consideradas inconstitucionais. n) Sê-lo-ão, formalmente, dado que a autorização constante do art. 4° do Dec. Lei n° 16/92 de 6/8, não tem respaldo material no conteúdo dos ínsitos dos arts.
147°, 148° e 149°, o que constitui uma inconstitucionalidade formal que desde já se invoca. o) Sê-lo-ão, materialmente, porque ofende o estatuído no n° 2 do art. 18° da CRP, o que determina uma inconstitucionalidade material, que desde já se invoca. p) Donde, não deve o Mais Alto Pretóreo admitir uma interpretação do «Novo» Código das Falências, aprovado pelo Dec. Lei n° 132/93 de 23/04, que acabando com a distinção entre falência e insolvência, permite estender a todo e qualquer
«devedor», sem cuidar da origem e natureza do crédito e a sua posição face ao processo crediticio, não possa cumprir ou não tenha bens suficientes para solver o débito doutrém e vir a ser julgado falido, pelo menos, desacompanhado desse outrém, ou seja antes deste ser declarado em estado de falido, assim não devendo acontecer, pelo menos, quando esteja em causa um dever civil ou garante
(avalista ou fiador) pelo pagamento da divida de outrém. q) Assim, o Código das Falências, nomeadamente, os seus arts. 1°, 2°, 3°, 27°,
147°, 148° e 149° aprovado pelo Dec. Lei n° 132/93 de 23/04 que, acabando com a distinção entre falência e insolvência, deve ser interpretado no sentido de que o mesmo só se aplica ao devedor que «exercendo, a titulo individual ou legal representante duma empresa (pessoa colectiva, sociedade comercial ou civil, associação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa) exerça uma qualquer actividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços, e, por carência de meios e por falta de crédito, se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações, resultantes dos créditos que lhe foram concedidos para financiamento de tal actividade produtiva, sob pena de ser considerado inconstitucional, por violação dos ínsitos dos arts. 18° n° 2 da CRP. Por outro lado, o mesmo diploma, nomeadamente os citados artigos devem ser declarados inconstitucionais, formalmente, por violação do disposto nos nºs 1 e
2 do art. 185° do Código Processo Civil, atento que o art. 4° do Dec. Lei n°
16/82 de 6/8 que não autorizou o Governo a plasmar no Cód. das Falências as inibições constantes dos arts. 147°, 148° e 149° do C. das Falências, conjugado com o art. 27° ex vi art. 168° da CRP. Para os outros casos de penhorabilidade a execução dos bens do «devedor» que não integrando, que não exerça uma actividade agrícola, comercial, industrial ou de prestação de serviços, vale o disposto no Código Processo Civil, quanto à penhorabilidade e execução dos seus bens.'
4. A recorrida Massa Falida de A, representada por liquidatário judicial, apresentou também alegações, tendo assim concluído:
'1. Improcedem todas as doutas alegações e conclusões do recorrente, talqualmente apresentadas;
2. Deve considerar-se inconstitucional a indisponibilidade de rendimentos futuros provenientes do trabalho e de pensões que, no seu conjunto, não excedam o montante equivalente ao salário mínimo nacional.'
O recorrido Banco Comercial Português não alegou (fls. 401).
Cumpre apreciar.
II
5. O objecto do presente recurso de constitucionalidade cinge-se às normas dos artigos 27º, 147º, 148º e 149º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-lei n.º
132/93, de 23 de Abril, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 28 de Outubro. Não obstante no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal o recorrente fazer ainda referência a outras disposições do mesmo Código (supra,
2.), a verdade é que não pode apreciar-se também a conformidade constitucional dessas outras normas, atendendo a que a questão da respectiva inconstitucionalidade não foi suscitada no processo (cfr. alegações para o Supremo Tribunal de Justiça de fls. 313 e seguintes, maxime fls. 328 a 341 e conclusões m), n) e o)) e, como tal, não está, em relação a elas, preenchido o pressuposto processual a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
6. São do seguinte teor as normas impugnadas:
'Artigo 27º
(Devedor não titular de empresa)
1 – O devedor insolvente que não seja titular de empresa ou cuja empresa não exerça actividade à data em que o processo for instaurado pode ser declarado em situação de falência, mas não pode beneficiar do processo de recuperação; ser-lhe-á, contudo, possível evitar a declaração de falência, mediante a apresentação de concordata que o juiz homologue nos termos dos artigos 240º a
245º.
2 – É aplicável ao devedor insolvente não titular de empresa, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos anteriores relativos à falência. Artigo 147º
(Limitações resultantes da declaração de falência)
1 – A declaração de falência priva imediatamente o falido, por si ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, pelos órgãos que o representem, da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial.
2 – O liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência. Artigo 148º
(Consequências imediatas da declaração)
1 – A declaração de falência determina o encerramento dos livros do falido e implica a sua inibição para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, sem prejuízo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 238º.
2 – No caso de declaração de falência de sociedade ou de pessoa colectiva, a inibição a que se refere o número anterior será aplicada pelo juiz ouvido o liquidatário judicial, aos gerentes, administradores ou directores a que se referem os artigos 126º-A e 126º-B.
3 – A pessoa que for objecto da inibição pode, no entanto, ser autorizada pelo juiz, a seu pedido ou sob proposta do liquidatário judicial, a exercer as actividades referidas no número anterior, desde que a autorização se justifique pela necessidade de angariar os meios indispensáveis de subsistência e não prejudique a liquidação da massa. Artigo 149º
(Dever de apresentação) O falido e, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, os seus administradores são obrigados a apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo liquidatário, a fim de prestarem os esclarecimentos necessários, salvo a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazerem representar por mandatário.'
7. A conformidade constitucional destas normas foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional.
No acórdão n.º 414/02, de 10 de Outubro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 291, de 17 de Dezembro de 2002, p. 20622 ss), remetendo aliás para a fundamentação de decisões anteriores (condensada no acórdão nº
194/01, publicado no Diário da República, II Série, n.º 163, de 17 de Julho de
2002, p. 12708 s), o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade dos artigos 27º, 147º, 148º e 149º do CPEREF.
7.1. A propósito da invocada inconstitucionalidade orgânica, disse o Tribunal Constitucional no mencionado acórdão nº 414/02:
'[...] A questão deve ser resolvida tendo como parâmetro a Constituição na sua versão emergente da revisão de 1989 que vigorava à data da [...] Lei n.º 16/92, concretamente o artigo 168º da CRP, naquela versão. As normas que vêm questionadas reportam-se à aplicação ao devedor insolvente dos dispositivos que: Privam o falido da administração e poder de disposição dos seus bens presentes e futuros (artigo 147º, n.º 1); Inibem o falido do exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa (artigo 148º, n.º 1); Obrigam o falido a apresentar-se em tribunal, sempre que lhe seja determinado pelo juiz, para prestar os esclarecimentos necessários (artigo 149º). Ora, no que concerne às primeira e última normas, não se vê razões para inflectir o que se decidiu já no citado Acórdão n.º 194/2001 [...], pelo que se dá aqui por integralmente reproduzida a respectiva fundamentação; e tanto basta para julgar improcedente a invocada inconstitucionalidade. No que concerne ao disposto na segunda norma, impõe-se, desde logo, atentar no que dispõe o artigo 4º da Lei n.º 16/92 e que representa credencial parlamentar suficiente para o Governo editar uma tal norma. Amplia-se, de facto, a inibição que anteriormente constava do artigo 1191º do CPC; simplesmente, tal ampliação está expressis verbis autorizada no referido artigo 4º da Lei n.º 16/92. Relativamente a todas as normas em causa e com a ressalva da apontada ampliação da inibição constante do artigo 148º, n.º 1, do CPEREF, nem se poderá dizer que a anterior declaração de insolvência (do não comerciante) não implicava para o insolvente os mesmos efeitos. Na verdade, por força do disposto no artigo 1315º do CPC, aplicavam-se à insolvência as disposições respeitantes à falência, «na parte não relacionada com o exercício da profissão de comerciante», o que compreenderia esses efeitos. No que respeita à unificação do processo de falência, passando a abranger também o anterior processo de insolvência, o artigo 1º da Lei n.º 16/92 não deixa de, implicitamente, credenciar o Governo para o efeito, no ponto em que alude à
«cessação da distinção entre insolvência e falência contida no futuro diploma relativo aos processos especiais de recuperação da empresa e da falência». Resta acrescentar que, muito recentemente, o Acórdão n.º 377/02 (inédito) deste Tribunal se pronunciou, também, no sentido de o artigo 27º do CPEREF não enfermar de inconstitucionalidade orgânica.'
7.2. A propósito da alegada inconstitucionalidade material, lê-se no já referido acórdão nº 414/02:
[...] Sustenta, ainda, o recorrente que a norma do artigo 27º do CPEREF é materialmente inconstitucional, por permitir a declaração de falência de um mero garante de obrigações de uma sociedade comercial, com violação do disposto nos artigos 13º, 18º, 21º, 26º e 27º da CRP. Do mesmo vício padeceriam as normas dos artigos 147º, 148º e 149º do mesmo Código, permitindo aplicar a esse garante de obrigações as «inibições» neles previstas. Cumpre, em primeiro lugar, deixar claro que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar se, no caso de um devedor (por força de um aval a uma livrança) não comerciante, impossibilitado de cumprir as suas obrigações, é possível, ao abrigo do CPEREF, declarar a sua falência. Com efeito, decidido pelo acórdão recorrido, no estrito plano daquele Código, que à situação em causa se pode aplicar o processo de falência, a este Tribunal apenas compete apreciar se uma tal interpretação ofende preceitos constitucionais. Em segundo lugar, a questão de constitucionalidade colocada só poderá ser resolvida se se tiver em conta os termos em que se processa o pertinente meio processual e, em particular, os efeitos decorrentes da declaração da falência. Com efeito, é em tal âmbito que os direitos do cidadão que se encontra em situação de insolvência sofrem condicionamentos ou limitações que, eventualmente, poderão pôr em causa direitos fundamentais.
[...]
[...] uma das principais medidas que o CPEREF estabeleceu foi a de unificar num tipo de processo a situação de insolvência de comerciantes e não comerciantes
(caracterizada como a situação de impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações por insuficiência do activo disponível para satisfação do passivo exigível, nos termos do artigo 3º, n.º 1) o que, aliás, era já adiantado, como se viu, pelo artigo 1º, n.º 1, da Lei de autorização legislativa n.º 16/92. Ora, perpassa por toda a alegação de inconstitucionalidade do recorrente, uma
«desvalorização» da situação de incumprimento da obrigação do avalista de uma livrança – a que indiciou a situação de insolvência do recorrente – para justificar a declaração de falência com todo o cotejo de efeitos («limitações» ou «inibições») dela decorrentes. A verdade é que, desde logo, cabe, nesta matéria, ao legislador uma considerável margem de liberdade de conformação, na escolha dos índices que considera relevantes das situações que, pela incapacidade de gestão patrimonial revelada pelos devedores e os riscos inerentes para o funcionamento dos mercados e para outros credores, devem ser sujeitas ao processo de falência. De todo o modo, o dador do aval é um responsável solidário e cumulativo pelo cumprimento do obrigação pecuniária em causa, nos mesmos termos que a pessoa por ele avalizada; ele assume uma obrigação com conteúdo patrimonial, o que necessariamente implica o dever de gerir o seu património de modo a poder cumprir essa obrigação se for chamado a solvê-la. A incapacidade que o avalista revela na gestão do seu património não só para cumprir a obrigação de que é credor o requerente da falência como a
«generalidade das suas obrigações» – o que dá causa à instauração do processo de falência – acaba por consubstanciar um caso paralelo ao da «empresa» ou de um outro qualquer devedor principal que se coloquem na mesma situação, muito particularmente tendo em atenção a finalidade de protecção dos credores do falido e a prevenção de novas situações de insolvência. O tratamento de todos estes casos segundo um regime unificado nada tem assim de desproporcionado ou arbitrário, como adiante melhor se verá. Por outro lado, impõe-se realçar que, para o preenchimento desses índices – em particular do que consta do artigo 8º, n.º 1, alínea a), do CPEREF –, e como se deixou já entender, não basta o incumprimento de uma obrigação (no caso, da referida obrigação de avalista), exigindo-se que a obrigação não cumprida «pelo seu montante, ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações», o que, no caso, se entendeu como verificado, sem que ao Tribunal Constitucional caiba sindicar um tal juízo. Nesta conformidade, adianta-se, desde já, que se não reconhece qualquer inconstitucionalidade material das normas em causa. Em primeiro lugar, pese embora as divergências doutrinais sobre a exacta qualificação de cada um dos efeitos, para o falido, decorrentes da declaração de falência, admite-se que a perda de administração e disposição dos bens que integram a massa falida e a inibição para o exercício de determinadas funções afectem alguns dos direitos fundamentais consagrados na Constituição. Não seguramente o direito de resistência consagrado no artigo 21º da CRP, pois não se vislumbra em que é que aqueles efeitos ponham em causa o direito de o recorrente resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos liberdades e garantias. Nem igualmente os artigos 25º, 26º e 27º uma vez que a declaração de falência nada tem em si de infamante ou que atinja a integridade moral, o bom nome ou reputação do falido (basta recordar que a falência pode ser casual); nem tão pouco afecta o seu direito à capacidade civil, mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há unanimidade na doutrina, no sentido de que se não trata de uma situação de «incapacidade») nem contende com o seu direito à liberdade. Já tendo em conta os direitos de livre escolha de profissão e de propriedade
(artigos 47º, n.º 1, e 62º, n.º 1, da CRP), se admite que eles sejam condicionados ou afectados por aqueles efeitos. No que concerne ao primeiro, deve, contudo, salientar-se que o preceito constitucional ressalva «as restrições legais impostas pelo interesse colectivo». Ora, desde logo, o fundamento da inibição do exercício de determinadas actividades, constante do artigo 148º, n.º 1, do CPEREF, radica claramente em razões de interesse colectivo, constitucionalmente atendíveis. Enquanto aplicável a pessoas singulares, ele visa evitar a ocorrência de futuras falências, impedindo aquele que revelou incapacidade para gerir o seu património de exercer funções que possam colocar em risco a solvabilidade económica das empresas ou, de novo, do próprio falido em prejuízo dos seus credores que têm o direito de ver satisfeitos os seus créditos. Trata-se, de facto, de uma medida perfeitamente justificada, atendendo ao seu fim e à incumbência do Estado em «assegurar o funcionamento eficiente dos mercados» [artigo 83º, alínea e), da CRP] e, em geral, aos objectivos de política agrícola, comercial e industrial, plasmados no título III, parte II, da Constituição. Note-se, aliás, que a preocupação de justa medida do legislador foi ao ponto de admitir a possibilidade de o falido exercer as actividades previstas no citado n.º 1 do artigo 148º do CPEREF quando «se justifique pela necessidade de angariar os meios indispensáveis de subsistência» desde que não prejudique a liquidação da massa, mediante autorização do juiz, sob proposta do liquidatário ou a pedido do próprio falido (n.º 3 do mesmo artigo 148º). Trata-se, assim, de uma limitação dos direitos do falido consentida pelo citado artigo 47º, n.º 1, da CRP, não sendo arbitrária nem desproporcionada. Quanto ao disposto no artigo 147º, n.º 1, do CPEREF, a privação do poder de administração e disposição corresponde, na execução universal e colectiva em que se traduz o processo de falência, à situação em que fica o executado relativamente aos bens penhorados nas execuções individuais. Constitui esse efeito uma medida absolutamente necessária para salvaguardar o acervo patrimonial do falido como garantia do pagamento dos credores nos termos dos artigos 209º e seguintes do CPEREF. Efectivamente, reconhecida, com a declaração de falência, a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade das suas obrigações, impunha-se que a totalidade dos bens do falido fosse apreendida, como garantia mínima do pagamento, ainda que não integral, dos credores, privando aquele que se revelara incapaz de gerir o seu património de agravar, ainda mais, a sua situação patrimonial. A situação dos titulares dos direitos de crédito, não satisfeitos, sobre o falido justifica, assim, de uma forma proporcionada e justa, a restrição imposta aos direitos do falido, sem ofensa dos preceitos constitucionais invocados. No que concerne, finalmente, ao disposto no artigo 149º, n.º 1, do CPEREF, preceito que corresponde rigorosamente ao artigo 1193º do CPC, já aplicável ao
«insolvente» por força do artigo 1315º do mesmo Código, não traduz ele, enquanto consagra o dever de apresentação pessoal do falido em tribunal, mais do que a concretização, no caso, do dever geral das partes de cooperação com o tribunal e, em particular do dever de comparência em tribunal nos termos do artigo 266º, n.º 3, do CPC. Não se trata aqui sequer de uma qualquer restrição a um direito fundamental, pelo que é até impertinente a invocação do disposto no artigo 18º da Constituição. Por fim, mal se compreende a alegação de violação do artigo 13º, n.º 2, da CRP, uma vez que é dado tratamento igual a todos os que se encontrem na situação em que se colocou o recorrente. Poderá, porventura, entender-se que o recorrente, com tal alegação, pretende evidenciar, uma vez mais, a situação específica daquele que responde apenas por uma obrigação principal que não contraiu e, assim, merecedora de um tratamento diferenciado. Mas o que acima se expendeu sobre a relevância que o recorrente dá à situação geradora da falência decretada é suficiente para se concluir que aquela não oferece especiais particularidades em termos de se poder considerar violado o princípio da igualdade em tal vertente; o tratamento igualitário dado pelo legislador, no âmbito dos seus poderes de conformação, não é, pois, arbitrário ou destituído de um fundamento racional. Improcedem, deste modo, todas as alegações de inconstitucionalidade.
[...].'
8. Sendo plenamente transponível, para o presente recurso, a fundamentação constante do acórdão mencionado e não tendo o recorrente apresentado, nas suas alegações (supra, 3.), qualquer argumento susceptível de a abalar, cumpre agora reafirmar a não inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 27º, 147º, 148º e 149º do CPEREF. Assinale-se, por último, que em acórdão ainda mais recente – o acórdão n.º
464/02, de 12 de Novembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 2, de
3 de Janeiro de 2003, p. 73 s) – o Tribunal Constitucional de novo apreciou a questão da conformidade constitucional do n.º 2 do artigo 27º do CPEREF, tendo igualmente concluído no sentido de que tal norma não é inconstitucional.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa