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Processo n.º 289/2013
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O arguido A. recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão do Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa que indeferiu reclamação deduzida, nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal (CPP), contra a decisão que rejeitou o recurso interposto para aquela instância de recurso da decisão que o pronunciou pela prática dos factos constantes da acusação deduzida, nos autos, pelo Ministério Público. Pretendia, através do recurso, ver apreciada a questão de inconstitucionalidade do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, «interpretado no sentido de ser irrecorrível o segmento da decisão instrutória que se pronuncie sobre a questão do ne bis in idem, na vertente que proíbe que um arguido possa ser julgado duas vezes pelo mesmo crime (artigo 29.º, n.º 5, da CRP)».
O relator entendeu que a questão de inconstitucionalidade, objeto do recurso, era simples, por já ter sido objeto de decisões anteriores do Tribunal Constitucional, razão pela qual proferiu decisão sumária a negar provimento ao recurso, por simples remissão para anterior jurisprudência constitucional (decisão sumária n.º 264/2013), condenando-o, a final, no pagamento da taxa de justiça devida, que fixou em 7 unidades de conta.
O recorrente, inconformado, dela reclamou para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, invocando, em síntese, que a impossibilidade de recorrer imediatamente da decisão de pronúncia, na parte em que conhece da questão do ne bis in idem, implica necessariamente violação do princípio constitucional consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, na vertente que proíbe que o arguido seja duplamente julgado pelos mesmos factos, quer na hipótese de vir a ser condenado, quer na hipótese de vir a ser absolvido, pelo que a sua efetiva tutela constitucional em tempo útil (artigo 20.º, n.º 4, da CRP) impunha o reconhecimento ao arguido do direito de dela recorrer (artigo 32.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, não questionando a legalidade da decisão sumária, no segmento decisório que o condenou no pagamento das custas devidas, fixando a taxa de justiça em 7 unidades de conta, invocou, ainda, a inconstitucionalidade do julgado, nessa parte, por violação das normas dos artigos 18.º e 20.º, n.º 1, da CRP, e do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), alegando não ser justificável, à luz dos princípios nelas consagrados, o regime de custas agravadas aplicável, em seu próprio proveito, pelo Tribunal Constitucional.
O Ministério Público defendeu, em resposta, que a reclamação apresentada pelo arguido apenas evidenciava discordância com a jurisprudência constitucional para a qual remete a decisão sumária do relator, pelo que, não se questionando a simplicidade da questão de inconstitucionalidade que justificou a sua prolação nem se aduzido argumentos novos que justificassem a reponderação dessa jurisprudência, era de indeferir a reclamação. Por outro lado, era de manter a decisão reclamada, também no que respeita à condenação em custas, por estar em conformidade com o regime legalmente previsto e não violar a Constituição.
2. Cumpre apreciar e decidir.
O reclamante pretende que a especificidade da questão prévia apreciada pela decisão de pronúncia (questão da violação do ne bis in idem) impõe, sob pena de violação do princípio constitucional consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, o reconhecimento do direito de dela recorrer imediatamente, nessa parte, pois que, a não ser assim, será sujeito a novo julgamento por factos pelos quais já está a ser julgado, quer venha a ser absolvido, quer venha a ser condenado, sendo que o protelamento do direito ao recurso para fase processual posterior (julgamento) não assegura a tutela efetiva e em tempo útil do direito fundamental consagrado no citado artigo 29.º, n.º 5, da Lei Fundamental. Nisso faz assentar o essencial das razões de discordância com a decisão sumária do relator.
Na perspetiva reiterada pelo Tribunal Constitucional, nos diversos acórdãos que se pronunciaram sobre a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 310.º, n.º 1, do CPP, para os quais remeteu a decisão sumária do relator, não releva, contudo, a natureza específica da questão prévia ou incidental apreciada pela decisão instrutória. As questões prévias ou incidentais, todas elas, são suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa e a decisão que sobre elas incide tem por finalidade sanear a instância e, se possível, assegurar a estabilidade processual necessária ao prosseguimento do processo e ao conhecimento do mérito do respetivo objeto: no caso, saber se o arguido deve ou não ser submetido a julgamento pela prática dos factos por que foi acusado.
E estando em causa domínio normativo que, seja na vertente adjetiva, seja na vertente substantiva, assume particular sensibilidade constitucional, por contender diretamente com matéria de direitos fundamentais, sejam os da vítima, sejam os do arguido, é evidente que a solução de irrecorribilidade consagrada no artigo 310.º, n.º 1, do CPP, poderá sempre implicar a restrição de direitos fundamentais do arguido, entre eles o direito consagrado no invocado n.º 5 do artigo 29.º da CRP. Ponto é saber se uma tal restrição, no complexo de valores constitucionais que o processo penal pretende conciliar, é imposta, e na justa medida, pela necessidade de garantir a tutela constitucional de direitos e valores de sinal oposto.
Ora, analisando a referida jurisprudência constitucional, verifica-se que, mesmo nos casos em que estava em causa a invocação de questões prévias atinentes à validade da prova indiciária, que o arguido reputava proibida por violar diretamente o disposto no artigo 32.º, n.º 7, da CRP, e cuja procedência, em sede de recurso, implicaria necessariamente a não pronúncia do arguido, por falta de indícios suficientes da prática do crime, o Tribunal Constitucional não deixou de dar prevalência aos direitos e valores constitucionais cuja proteção reclama a garantia de um processo penal célere e eficaz, considerando, a essa luz, constitucionalmente legítima a norma que não admite o recurso da decisão de instrução, no segmento que as aprecia, em face da possibilidade de o tribunal de julgamento vir a reapreciar tais questões, nos termos conjugados dos artigos 310.º, n.º 2, e 311.º, n.º 1, do CPP, e o arguido vir a sindicar, pela via do recurso, a decisão que o tribunal de julgamento vier a tomar sobre tal matéria.
No caso vertente, e sendo claro que o que a Constituição pretende evitar, com a proibição do duplo julgamento (artigo 29.º, n.º 5), é que alguém seja condenado depois de ter sido definitivamente absolvido pela prática da infração ou sujeito à aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, volume I, 4.ª Edição Revista, 2007, pág. 497), não se afigura que a específica solução normativa de irrecorribilidade ora em sindicância reclame uma diferente visão das coisas.
É que, também aqui – e não se olvide que a norma sindicada (artigo 310.º, n.º 1, do CPP) é uma norma criminal adjetiva cuja avaliação constitucional deve ser feita, sobretudo, em função dos parâmetros que integram a Constituição Processual Criminal, que tem o seu assento fundamental no artigo 32.º da Constituição – não está em causa a impossibilidade de o arguido ver reapreciada, em sede de recurso, a decisão judicial de dada questão prévia suscitada nos autos. O que está apenas em causa é, no pressuposto de que o arguido pode renová-la em fase de julgamento e o tribunal de julgamento reapreciá-la (artigos 310.º, n.º 2, e 311.º, n.º 1, do CPP) – que foi o adotado pelo tribunal recorrido –, a compressão do correspondente direito em termos de admitir o seu exercício apenas numa fase ulterior do processado, em face da decisão que a esse propósito o juiz de julgamento venha a proferir, «de modo a não paralisar ou introduzir bloqueamentos relevantes no desenrolar de um processo (criminal) que visa assegurar a proteção de direitos fundamentais ofendidos com a prática do crime», como sustentou o relator, em aplicação da citada jurisprudência constitucional.
Por outro lado, e devendo o processo criminal assegurar todas as garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), assumindo-se, assim, na perspetiva garantística da Lei Fundamental, como um instrumento de realização, não apenas dos direitos fundamentais da vítima, mas também dos direitos fundamentais do arguido, entre os quais o consagrado no n.º 5 do artigo 29.º da CRP, é evidente que a questão a que deve ser dada resposta, no presente recurso, é apenas uma: se a norma constante do n.º 1 do artigo 310.º do CPP, mesmo aplicada ao caso dos autos, em que a questão prévia que se discute é da violação do ne bis in idem, ao impedir o recurso da decisão instrutória, no segmento que a aprecia, deixa carecido de proteção o direito fundamental do arguido de não ser condenado por um crime de que foi (ou pode vir a ser) absolvido ou de não ser sujeito a renovadas sanções penais pela prática de crime pelo qual já foi (ou virá a ser) punido.
Ora, a resposta não pode deixar de ser negativa, atentas as razões consolidadamente afirmadas pelo Tribunal Constitucional, para que o relator remeteu, pois que em fase posterior do processo criminal, a do julgamento, poderá sindicar perante uma instância de recurso a decisão proferida pelo juiz de julgamento sobre tal questão prévia, garantindo-se, assim, pela intervenção de duas instâncias jurisdicionais diferentes, a tutela judicial efetiva, em tempo útil, do direito que ora invoca em juízo (tal como sucede com todos os outros direitos que os arguidos invocam, a título de questão prévia, perante o juiz de instrução), sem prejudicar a celeridade do processo criminal em curso e a defesa dos direitos fundamentais que, também com assento constitucional, a reclamam.
Nada do que o arguido invoca em sentido contrário, na presente reclamação, assume, pois, caráter verdadeiramente inovatório, não se justificando, por isso, que o recurso prossiga para reponderação da jurisprudência constitucional antes firmada sobre a matéria.
No que respeita à condenação do recorrente em 7 unidades de conta, a título de custas processuais, cuja legalidade o reclamante não questiona, não se afigura padecer o julgado, nessa parte, de qualquer inconstitucionalidade, como pretende o reclamante. Com efeito, e como o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de sublinhar, a Constituição não consagra, no seu artigo 20.º, n.º 1, o direito de acesso a uma justiça gratuita, pelo que, acautelado que esteja, como está, a concessão do benefício de apoio judiciário a quem dele comprovadamente careça, nos termos legais, e um regime de isenções materialmente fundado, não merece qualquer censura constitucional a exigência do pagamento, como contrapartida do serviço público prestado, mesmo no âmbito dos recursos de constitucionalidade, de quantias que não se revelem desproporcionais ao serviço concretamente prestado nos autos, considerando, além do mais, a natureza e a complexidade do processo.
Sendo este o caso, não há razão para modificar o julgado, também nesta parte, por se mostrar conforme com o disposto nos artigos 6.º, n.º 2, e 9.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro – diploma legal que justificadamente consagra um regime especial de custas no Tribunal Constitucional, por razões atinentes à especificidade da sua configuração jurídico-constitucional –, e não implicar, pelas aludidas razões, violação dos princípios consagrados nos artigos 20.º, n.º1, e 18.º da Constituição, e no artigo 6.º, n.º 1, da CEDH.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 15 de julho de 2013. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.