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Processo nº 701/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que são recorrente A e recorrido o Ministério Público, foi proferida, em 11 de Novembro último, decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquele diploma legal, na qual não se tomou conhecimento do objecto do recurso.
2. - Escreveu-se, na oportunidade:
'1. - A, identificado nos autos, foi condenado, por acórdão do Tribunal Colectivo da comarca de Vila Nova de Foz Coa, de 4 de Abril de 2002, pela prática, como instigador, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 205º, nºs. 1 e 4, alínea b), e 26º do Código Penal, na pena de quatro anos de prisão, declarando-se-lhe perdoado um ano dessa pena de prisão, ao abrigo do disposto no nº 1 da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, sob a condição resolutiva a que alude o artigo 4º do mesmo diploma. Interposto recurso pelo arguido foi, nas respectivas alegações, suscitado um problema de constitucionalidade. Na verdade, para além das nulidades alegadas – que ora desinteressam – teve-se por inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal,
'na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados na 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do Tribunal, por violação do disposto no nº 1 do artº 205º da C.R.P., conjugado com as normas do artº 410º nº 2, b) e c) do C.P. Penal, e por violação do direito ao recurso consagrado no artº 32º, nº 1, da C.R.P.'
2. - O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 19 de Junho último, negou provimento ao recurso e confirmou, na íntegra, o acórdão recorrido. Deduzidas nulidades que foram indeferidas em novo aresto, de 2 de Outubro seguinte, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade das seguintes normas: a) Artigo 374º, nº2, do Código de Processo Penal (em si mesma considerada e conjuntamente com a norma do nº2 do artigo 410º), interpretada e aplicada de modo a aceitar-se 'como exigíveis apenas a indicação das provas ou meios de prova e já não a exposição dos factos que fundamentaram a decisão (...) ou a atenuação desta exigência quando exista gravação da prova'. Considera violados, com essa interpretação e aplicação, os artigos 13º, 18º, nº
2, 32º, nº 1, e 205º, nº 1, da Constituição; b) Artigo 205º do Código Penal, 'ao considerar o abuso de confiança em apreço nos autos, agravado ou qualificado e, portanto, um crime de natureza pública'. Entende que essa interpretação ofende os artigos 13º, 18º, 32º, nº 1, e 205º da Constituição. c) Artigo 417º do Código de Processo Penal, 'quando se permite que a resposta ao parecer do Ministério Público não se encontre junta aos autos antes de ser proferido o acórdão final e portanto insusceptível de ser apreciada'. Defende que a interpretação dada ofende o artigo 32º citado. O recurso foi recebido o que, no entanto, não vincula o Tribunal Constitucional
– nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
3. - Considera-se ser caso de proferir decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da citada Lei nº 28/82, dado não ser possível conhecer do objecto do recurso.
4.1.1.- No tocante à primeira das questões suscitadas, o acórdão recorrido não aplicou a norma com a interpretação invocada pelo recorrente. Na verdade, não resulta do aresto o entendimento que a fundamentação se basta com a indicação das provas ou meios de prova, dispensando a exposição dos factos que fundamentaram a decisão. Com efeito, escreveu-se, a este respeito, no acórdão:
' (...) a obrigação de fundamentação/motivação da decisão de facto, a qual se concretiza através do exame crítico das provas, traduz-se no dever de o julgador expressamente consignar os elementos probatórios que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos (art.127º), constituem o substracto racional que conduziu a que a sua convicção se formasse em determinado sentido e valorasse de determinada forma os meios de prova apresentados e produzidos nas diversas fases do procedimento com destaque para o contraditório, posto que só assim a decisão é susceptível de apreensão, permitindo aos seus destinatários compreender os juízos de valoração e de apreciação da prova, possibilitando, concomitantemente, ao tribunal de recurso uma efectiva actividade de fiscalização e de controlo sobre a forma como o tribunal de 1ª instância valorou e apreciou a prova produzida, designadamente para efeitos do n.º. 2, do art.º
410. Nesta conformidade, no cumprimento daquela obrigação o tribunal deve não só indicar as provas a partir das quais formou a sua convicção, mas também fundamentar a decisão de facto que assumiu, para o que deverá expor os motivos que o levaram a eleger aquelas provas, ou seja, a considerá-las idóneas e relevantes, eventualmente em detrimento de outras, bem como tornando-se necessário, de expor os critérios utilizados na apreciação daquelas e o substracto racional que conduziu à convicção concretamente formada.
É evidente, porém que nos casos ou situações em que tenha havido lugar a documentação da prova produzida no contraditório ou em que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão proferida sobre a matéria de facto (als.a) e b), do art.431°), casos em que esta decisão pode ser modificada pelo Tribunal da Relação, a obrigação de motivação a que vimos de aludir não assume o mesmo rigor nem a mesma importância. Com efeito, visando aquela obrigação ou imposição legal a transparência da decisão e a possibilidade de fiscalização e de controlo da decisão pela instância superior, certo é que constando do processo todas as provas que serviram de base à decisão e a fundamentam, esbate-se significativamente a exigência de motivação da decisão de facto, posto que a fiscalização e o controlo a efectuar far-se-ão através da sindicação da prova e não da motivação da decisão. No caso vertente, porém, conquanto a prova produzida em julgamento haja sido documentada, a verdade é que o tribunal a quo fundamentou/motivou exaustivamente a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que fez ao longo de seis páginas, de forma ponderada, clara e detalhada, pelo que dúvidas não restam de que o acórdão impugnado não enferma da nulidade arguida.'
4.1.2.- Ou seja, os parágrafos segundo e terceiro transcritos não integram a causa decidendi, vertida e concentrada que se encontra esta no último parágrafo, não sendo os outros mais do que meros obiter dicta, sem relevância para o juízo finalmente emitido, o qual, por sua natureza, escapa ao controlo dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, como é óbvio e pacífico.
4.2.1.- No concernente à segunda das questões colocadas é de notar que sobre ela não se pronunciou o acórdão, nem aliás essa questão lhe foi colocada, limitando-se o mesmo a consignar que:
'Relativamente à primeira questão é mais que notório que o recorrente B carece de razão. Com efeito, só o crime de abuso de confiança (simples) previsto e punível pelo n.º. 1, do art.205°, do Código Penal, reveste natureza semi-pública, isto é, depende de queixa, conforme o n.º. 3 do mesmo artigo, sendo certo que o crime de abuso de confiança (agravado ou qualificado) punível pelos n.ºs. 4 e 5, do art. 205°, crime pelo qual o recorrente foi condenado, assume natureza pública'.
4.2.2.- Na verdade, o recorrente, apesar de nas alegações de recurso para a Relação ter invocado a falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal relativamente ao crime em causa nos autos, não invocou a questão de constitucionalidade, de modo a que a mesma pudesse ser conhecida pelo tribunal recorrido, o que só por si obsta ao conhecimento do recurso, como é jurisprudência uniforme e reiterada do Tribunal Constitucional. Mesmo que assim não fosse, não se poderia conhecer do recurso porquanto o que se pretende é discutir a subsunção dos factos à norma e discutir a natureza do crime previsto nas normas do artigo 205º do Código Penal, o que não é objecto do recurso de constitucionalidade.
4.3.1- Em relação à ultima das questões enunciadas, invocada no requerimento de arguição de nulidades do acórdão de 19 de Junho, é manifesto que a norma do artigo 417º não foi aplicada com a interpretação propugnada pelo recorrente.
4.3.2.- Na verdade, tendo o acórdão da Relação sido proferido em 19 de Junho de
2002 e estando a resposta do recorrente ao parece [pretendeu escrever-se parecer] do Ministério Público junta aos autos antes da decisão final e com data de carimbo de 4 de Junho, não se compreende a afirmação de que aquela resposta não era susceptível de ser apreciada por não ter sido junta aos autos antes de proferido o acórdão final. Ou seja, são [pretendeu escrever-se não] se surpreende a aplicação da norma com a interpretação invocada pelo recorrente, sendo certo que a falta de alusão à resposta do recorrente no acórdão recorrido, como se refere no acórdão de 2 de Outubro de 2002, que indeferiu a arguição de nulidades, 'não significa que a mesma não tenha sido examinada pelo tribunal'.
5. - Em face do exposto, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso, por não ser legalmente possível fazê-lo. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 unidades de conta.'
3. - Notificado, reclamou o arguido para a conferência, nos termos do nº 3 do citado artigo 78º-A, formulando a pretensão de revogação da decisão sumária proferida, a ser substituída por acórdão que receba o recurso interposto.
Em síntese, vem reequacionar as três questões de constitucionalidade já por si suscitadas – a que a decisão sob reclamação alude
– e insistir na sua relevância e correspondente procedência.
Ouvido, o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da manifesta falta de fundamento da reclamação que, em seu entender, só pode explicar-se 'pela circunstância de o reclamante não ter na devida conta a natureza e as finalidades da fiscalização concreta de constitucionalidade cometida a este Tribunal'.
4. - O magistrado do Ministério Público, na resposta à reclamação do recorrente, sublinha não competir ao Tribunal Constitucional, neste tipo de recurso, sindicar a concreta tramitação processual levada a efeito no Tribunal recorrido, cabendo-lhe, tão só, verificar se na decisão proferida se aplicaram, ou não, como critério normativo decisório, com o sentido especificado pelo recorrente, as normas sindicandas.
Esta é, na verdade, a perspectiva legalmente correcta, como, de resto, flui de constante, massiva e uniforme jurisprudência constitucional.
Com efeito, é patente o inconformismo do recorrente com a decisão judicial, em si considerada, contra a qual se insurge, ou seja, o que está em causa é, na verdade, o acto de julgamento do concreto caso subjacente, tomado na sua singulariedade e a subjacente subsunção do caso concreto à norma – o que não é sindicável por este Tribunal.
Nesta leitura se quadra, manifestamente, a alegada questão de inconstitucionalidade referente ao artigo 205º do Código Penal, que outra coisa não pretende senão rediscutir a qualificação feita dos actos tidos como provados na tipologia do crime de abuso de confiança.
E o mesmo se diga do imputado sentido à norma do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal. Como decorre do parágrafo final da transcrição feita do acórdão recorrido, o Tribunal a quo nem sequer interpretou aquela norma com o sentido que o recorrente pretende atribuir à decisão, na suposição que esta se contentou com a mera indicação das provas ou dos meios de prova, não exigindo a exposição dos factos que fundamentaram a decisão.
Finalmente, e no que toca à norma do artigo 417º deste
último Código, é manifesto que, não estando em causa a honorabilidade profissional da mandatária do reclamante, nos termos que se convocam, não é ao Tribunal Constitucional que compete o apuramento de matéria de facto no sentido de se surpreender irregularidade na tramitação processual, de modo a permitir-se ajuizar de eventual junção atrasada de resposta ao parecer do Ministério Público.
De qualquer modo, nada há a acrescentar, na ôntica do presente recurso, ao que sobre uma alegada violação do contraditório se ponderou no acórdão recorrido: o facto de nele se não referir expressamente à resposta do recorrente 'não significa que a mesma não tenha sido examinada pelo tribunal'.
5. - Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação, mantendo-se a decisão sumária oportunamente proferida.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa, 7 de Janeiro de 2003 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida