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Proc. nº 310/02
1ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. A deduziu, no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, embargos à execução de sentença que lhe fora intentada por B e outra, alegando, nomeadamente, a nulidade da citação efectuada na acção declarativa contra si movida por estas últimas, e no final da qual foi condenado, à revelia, no pagamento da quantia de 5.250.000$0.
As embargadas responderam, manifestando-se no sentido da validade da citação efectuada naquela acção e concluindo pela improcedência dos embargos.
Por sentença de 6 de Junho de 2000, o Tribunal de Oeiras julgou os embargos parcialmente procedentes no tocante a parte dos juros peticionados e determinou o prosseguimento da execução quanto ao valor do capital (no montante de 5.250.000$00), acrescido apenas dos juros relativos aos últimos cinco anos até essa data.
Considerou a sentença que a citação efectuada na acção declarativa de condenação fora inteiramente válida.
Inconformado, o recorrente interpôs recurso de apelação dessa decisão.
Nas suas alegações suscitou novamente a questão da nulidade da citação efectuada na acção declarativa, decorrente do facto de o tribunal a quo
«descuidar o cumprimento das formalidades previstas nos artigos 239º, nº 3 e
483º do C.P.C.», considerando que «os direitos de defesa do Recorrente foram totalmente negados e impedidos», e concluiu assim que o tribunal a quo incorreu em «falta de citação e nulidade de citação [...], por violação do dever de cuidado e ainda dos deveres constitucionais de defesa do Réu».
As recorridas manifestaram-se, nas respectivas alegações, no sentido da total improcedência do recurso e, no tocante à questão da falta e nulidade da citação, entenderam que a mesma se mostrava efectuada de forma válida.
2. Por acórdão de 2 de Outubro de 2001 o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.
Inconformado, o recorrente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas suas alegações, o recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade do artigo 239º, n.º 3, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 242/85, e do artigo 483º, ambos do CPC.
Afirmou nas suas alegações:
Salvo o devido respeito, a interpretação restritiva que o Tribunal da Relação de Lisboa faz do referido art.º 239º, n.º 3 do C.P.C. vai ao arrepio do entendimento que resulta não só da própria letra da lei que fala expressamente em «autoridades administrativas», como ainda do entendimento dominante da doutrina da época (Cfr. entre outros Cons. Lopes Cardoso).
[...]
Em qualquer caso, sempre se dirá que o âmbito da letra e do espírito do art.º 239º, n.º 3 do C.P.C. na redacção anterior ao D.L. 242/85 deve ser interpretada de acordo com o espírito do artigo 20º da Constituição que consagra expressamente o direito à defesa e do acesso à Justiça, e ainda o princípio da proibição da indefesa.
[...]
Uma vez que o recurso às entidades administrativas Direcção Geral de Viação, Serviços de Identificação Civil e Direcção Geral das Contribuições e Impostos justifica-se enquanto tentativa do tribunal de 1ª instância para apurar a residência do réu, negar a possibilidade legal dessa tentativa, quando o próprio 239º, n.º 3 não o exclui, é violar o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Antecipadamente desde já se suscita a questão de uma eventual inconstitucionalidade de interpretação igualmente restritiva do âmbito de previsão do artigo 483º do C.P.C., na interpretação aqui defendida em I.2) supra das presentes alegações.
Na realidade, o artigo 483º do C.P.C. deve ser interpretado com o sentido de que, se antes da data de audiência e julgamento mas após a realização da citação edital, o tribunal se apercebe de que outras medidas se poderão efectuar no sentido de apurar a residência do Réu Revel, em virtude de terem sido juntos aos autos novos elementos que assim o possibilitem, deve mandar repetir a citação.
Mutatis mutandis com o já referido sobre a inconstitucionalidade do disposto no art. 239º, n.º 3 do C.P.C. na redacção anterior ao D.L. 242/85, defender o contrário é violar o artigo 20º da C.R.P. que consagra o direito à defesa e o princípio da indefesa.
E formulou as seguintes conclusões:
Qualquer interpretação diferente da exposta na conclusão f) relativamente ao âmbito de aplicação do art.º 483º do C.P.C. implica necessariamente uma violação ao princípio da defesa e do acesso à Justiça, consagrados no art. 20º da C.R.P., bem como do princípio da proibição da indefesa que também resulta desse preceito constitucional.
Com efeito, se até no próprio C.P.C. os factos supervenientes acerca da relação material subjacente são admissíveis, nos termos do seu art.º 506º POR MAIORIA DE RAZÃO serão também atendíveis, à luz do art.º 483º do C.P.C. e 20º da C.R.P., os factos supervenientes à citação edital juntos aos autos a 10.01.86
(10 meses antes da data da audiência de discussão e julgamento de 28.10.86) referentes ao paradeiro do Réu Revel e aqui Recorrente. Pelo que, também aqui, foi violado o espírito e a letra quer dos art.ºs 483º do C.P.C., quer do 20º da C.R.P.
Com base no entendimento vertido nas conclusões b), c), d), f) e g) supra, resulta estarmos perante uma verdadeira falta de citação, nos termos do disposto no art.º 195º, n.º 1, alínea c) do C.P.C. e simultaneamente de nulidade de citação, nos termos do disposto no art.º 198º, nº 1 do mesmo código.
Pelo contrário, negar a possibilidade legal do tribunal de 1ª instância recorrer às autoridades administrativas, nomeadamente a D.G.C.I. e S.I.C. para apurar a residência do Recorrente, quando o próprio art.º 293º, n.º
3 do C.P.C., no âmbito da sua previsão, não exclui essa possibilidade, é violar o art. 20º da C.R.P. e o princípio da indefesa.
Da igual forma, com base no mesmo art.º 20º da C.R.P., o artigo 483º do C.P.C. deve ser interpretado com o sentido de que, se antes da data de audiência e julgamento mas após a realização da citação edital, o tribunal se apercebe de que outras medidas se poderão efectuar com vista a apurar a residência do Réu Revel, em virtude de terem sido juntos aos autos novos elementos que assim o possibilitem, deve mandar repetir a citação.
3. Por acórdão de 19 de Março de 2002 o Supremo Tribunal de Justiça negou a revista.
Considerou-se nesse aresto que as normas em causa, constantes daqueles artigos «tal como foram interpretados e aplicados pelas instâncias
[...] não violam o disposto no art.º 20º da Constituição».
É desta decisão que vem interposto o presente recurso para apreciação da questão de inconstitucionalidade das normas constantes do artigo
239º, n.º 3, (na redacção anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 242/85) e do artigo 483º do Código de Processo Civil, «porquanto o seu alcance limitado no que concerne aos deveres do tribunal para assegurar a citação do réu no início e durante a acção, abre caminho para a violação do artigo 20º da CRP e do princípio da proibição da indefesa». Entendeu o recorrente que o entendimento do STJ «equivale a afirmar a inconstitucionalidade dos artigos 239º, n.º 3 (na redacção anterior à introduzida pelo D. L. 242/85) e 483º do C.P.C., porquanto negam o direito de acesso aos tribunais, e violando a chamada proibição da indefesa (Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, pág. 164) implicitamente consagrada no artigo 20º da C.R.P. (...) através de uma interpretação literal, senão mesmo restritiva daqueles preceitos legais».
4. Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal, onde o recorrente produziu alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
[...], porque a proibição da indefesa é um direito fundamental, todas as medidas a tomar pelos Tribunais no sentido de efectivarem o chamamento do Réu ao Processo terão de se conformar com os fins do artigo 20º da CRP – o de que todas as vias ao alcance do Tribunal para encontrar o Réu sejam esgotadas, só sendo este citado editalmente, efectivamente, em último recurso e quando nada mais seja possível fazer para saber do paradeiro do Réu.
[...] Enquanto houver uma via em aberto para encontrar o paradeiro do Réu o Tribunal tem o dever constitucionalmente consagrado de a empregar, VIOLANDO A CONSTITUIÇÃO QUALQUER NORMA LEGAL QUE IMPONHA DEVER DE ALCANCE DIFERENTE.
[...] Ora, numa posição oposta a este alcance da garantia dos direitos fundamentais supra enunciados, o artigo 239º, n.º 3 e o artigo 483º, ambos do C.P.C., abrem caminho à violação do princípio da adequação.
[...] Com efeito, o legislador, no artigo 239º, n.º 3 do C.P.C., deixa ao arbítrio do juiz a escolha (i) dos meios e (ii) de quais dos meios à sua disposição ele irá lançar mão para garantir a citação do réu ou assegurar-se de que o seu paradeiro não é conhecido.
[...] Não impondo que se esgotem todos os meios possíveis como factor determinante na formação da convicção do Tribunal de que é desconhecido o paradeiro do Réu.
[...] Esta escolha dos meios, porque não conformada por critérios objectivos, será sempre válida, mesmo quando ela se revele inadequada ou insuficiente para se atingir os fins constitucionalmente consagrados pela norma, apenas se requer, se forme uma convicção do Tribunal (factor de acentuado subjectivismo, pois) do desconhecimento do paradeiro do Réu.
[...] O normativo do artigo 239º, n.º 3 do C.P.C. (ao arrepio das finalidades e garantias do artigo 20º da CRP), não impunha ao Juiz que se indagassem necessariamente as autoridades administrativas no sentido de apurar a residência ou o local de trabalho do citando, conferindo apenas uma possibilidade que ficaria, na prática, sempre submetida ao livre arbítrio do Juiz, porque tudo dependia de qual o número de procuras frustradas necessárias para formar a sua convicção.
[...] Tal possibilidade configura-se claramente como um espaço de discricionariedade na concretização dos direitos fundamentais, que, como se defendeu, é inconstitucional, por violação de todos os princípios e normas in casu concretizadoras do direito fundamental de acesso aos tribunais.
[...] Por outro lado, formada tal convicção, e procedendo-se à citação edital, cuja admissibilidade sempre estaria dependente daquele factor subjectivo «convicção do Tribunal», o Juiz não seria obrigado a continuar alerta ao longo do processo para as pistas e novos elementos que sobre o paradeiro do réu viessem posteriormente a surgir.
[...] Entende-se, contudo, que o atender aos novos dados do Réu Revel que chegassem ao conhecimento do tribunal é admissível e até exigível, nos termos do disposto no artigo 20º da C.R.P., sempre por referência aos supraexpostos princípio da adequação e princípio da proibição do arbítrio na garantia dos direitos fundamentais.
[...] E tal entendimento não poderá, sublinhe-se, ser diferente se se partir de uma interpretação consentânea com o disposto no artigo 20º da C.R.P., abrindo-se a possibilidade de vir a citar pessoalmente o Réu Revel quando o seu paradeiro fosse encontrado, ainda que com alguns reflexos na celeridade processual, que não se pode sobrepor ao direito fundamental do Acesso aos Tribunais e da Proibição da Indefesa.
[...] Estatuir de outro modo, como fez o legislador na conjugação dos artigos 239º, n.º 3 e 483º do C.P.C., traduz-se na inconstitucionalidade dos preceitos, porquanto na prática limitam o direito de acesso aos tribunais, e violam a chamada proibição da indefesa implicitamente consagrada no artigo 20º da C.R.P., através da sujeição ao arbítrio do julgador dos critérios de efectivação desse direito.
[...] Tanto assim é, e de tal forma apto a potenciar a Indefesa se mostrou o regime do artigo 239º, n.º 3 do C.P.C. que a alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 183/2000 de 10 de Agosto sentiu e respondeu à necessidade de salvaguardar uma procura efectiva do paradeiro do citando, estabelecendo no actual artigo 238º, n.º 1 a obrigatoriedade de, no caso de frustração da citação, serem indagadas as bases de dados das autoridades administrativas.
As recorridas não apresentaram contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
5. As normas cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal são, pois, as constantes dos artigos 239º, n.º 3, e
483º, do Código de Processo Civil, na versão anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho, ou seja, com a seguinte redacção: Artigo 239º
(Ausência do citando em parte incerta)
1. [...]
2. [...]
3. Antes de ordenar a citação edital, o juiz assegurar-se-á de que não é conhecida a residência do citando, podendo colher informações das autoridades policiais ou administrativas.
4. [...] Artigo 483º
(Revelia absoluta do réu)
Se o réu, além de não deduzir qualquer oposição, não constituir mandatário nem intervier de qualquer forma no processo, verificará o tribunal se a citação foi feita com as formalidades legais e mandá-la-á repetir quando encontre irregularidades.
O recorrente entende que a disposição constante do n.º 3 do artigo
239º, quando interpretada como o fez o tribunal a quo, ou seja, com o sentido de não impor ao tribunal a recolha de informações sobre o paradeiro do réu às entidades administrativas, nomeadamente à Direcção Geral das Contribuições e Impostos, à Direcção de Identificação dos Serviços Civis e à Direcção Geral de Viação, deixando ao livre arbítrio do julgador a formação da convicção relativa
à ausência do citando, se mostra inconstitucional, porque violadora do artigo
20º da Constituição, na vertente da proibição da indefesa.
E, relativamente à norma constante do artigo 483º, entendeu que a mesma se mostrava também violadora do mesmo princípio constitucional, quando interpretada no sentido de não permitir ao juiz «mandar seguir novas pistas e voltar a colher informações a partir de elementos que poderia ter extraído de um processo, de natureza criminal, que veio a ser apensado», ou seja, de não permitir a realização de nova citação ou tentativas de citação do réu, sempre que ao processo sejam trazidos ou facultados elementos ou indícios relativos a uma possível localização do citando, em qualquer fase do processo posterior à declaração de revelia absoluta do demandado.
6. Relativamente à primeira das normas indicadas, o recorrente entende, como refere nas suas alegações neste Tribunal, que «o recorrer a informações das entidades administrativas [...], era um verdadeiro dever do Tribunal, no sentido de constituir a única via possível de assegurar o respeito pelo direito de acesso aos tribunais, e de que o atender aos novos dados do réu que chegaram ao conhecimento do tribunal [...] é admissível e até exigível, nos termos do disposto no artigo 483º do C.P.C. cm conjugação com o artigo 20º da C.R.P».
O direito de defesa do réu ou demandado judicialmente, ou o chamado princípio da proibição da indefesa é indiscutivelmente um direito de natureza processual ínsito no direito de acesso aos tribunais, constante do artigo 20º da Constituição, e cuja violação acarretará para o particular prejuízos efectivos, decorrentes de um impedimento ou um efectivo cerceamento ao exercício do seu direito de defesa.
Como se escreveu no Acórdão n.º 271/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., págs. 359 e segs.) :
E neste domínio é particularmente significativo o direito à protecção jurídica consagrado no artigo 20º da Constituição, no qual se consagra o acesso ao direito e aos tribunais que, para além de instrumentos da defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, é também elemento integrante do princípio material da igualdade e do próprio princípio democrático, pois que este não pode deixar de exigir a democratização do direito.
Para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal.
Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual 'a proibição da `indefesa' que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses' (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164 e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, pp.
82 e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e
222/90, Diário da República, II série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de
1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).
No entender do recorrente, esta possibilidade de cada uma das partes poder deduzir as suas razões terá sido cerceada, in casu; concretamente, não tendo o réu sido citado para contestar a acção declarativa de condenação contra ele intentada, em resultado da aplicação das normas em causa, na interpretação do tribunal a quo.
Relativamente ao formalismo processual do chamamento das partes ao processo, escreveu-se no Acórdão n.º 335/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., págs. 531 e segs.), ainda no âmbito do regime anterior
à vigência do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro:
Em todas as tramitações de natureza declarativa que conduzem à emissão de um julgamento (judicium) por parte de um tribunal, tem de existir um debate ou discussão entre as partes contrapostas, demandante e demandado, havendo o processo jurídico adequado (a due process of law clause, da tradição anglo-americana) de garantir que cada um dessas partes deva ser chamada a dizer de sua justiça (audiatur et altera pars). E esta exigência alarga-se a todas as outras tramitações processuais cíveis, salvo contadas excepções, mesmo nos processos executivos, em especial quando são deduzidas oposições à própria execução ou à penhora.
Como escreveu Manuel de Andrade, a estruturação 'dialéctica ou polémica do processo teria partido do contraste dos interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões [...] para o esclarecimento da verdade.
É tal a sua vantagem - seu rendimento - que as leis a consagram mesmo onde repelem ou cerceiam o princípio dispositivo [...]. Espera-se que, também para os efeitos do processo, da discussão nasça luz; que as partes (ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz, mais sereno mas mais distante dos factos e menos activo, dificilmente seria capaz de descobrir por si [...]' (Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração de Antunes Varela, edição revista por Herculano Esteves, Coimbra, 1979, pág. 379).
Simplesmente, há situações em que o demandado não pode ser localizado, não obstante diligências levadas a cabo pelo tribunal, nomeadamente a requerimento do demandante (desconhecimento do domicílio; ausência do domicílio sem deixar indicação do paradeiro, por exemplo). Ora, nos processos cíveis - normalmente quando estão essencialmente em causa pretensões de natureza patrimonial e as partes são, para a lei, perfeitamente iguais - o legislador tem de prever mecanismos para evitar que o processo fique parado indefinidamente, à espera de que o demandado seja localizado e chamado ao processo. Tratando-se de processos de diferente natureza, por exemplo em processos de natureza penal, as preocupações de evitar que o processo fique parado à espera de localização do arguido levam à consagração de outros mecanismos, sendo perfeitamente compreensível que o grau de exigência quanto a tais mecanismos seja superior, dados os interesses em causa, nomeadamente a regra constitucional de que o processo penal assegura todas as garantias de defesa (veja-se o instituto da contumácia em processo penal).
Relativamente ao processo civil em especial, Trocker, autor italiano citado várias vezes no despacho recorrido, chama a atenção para que o fenómeno da comunicação de actos processuais às partes ou a terceiros está sempre dependente de uma concordância prática entre princípios tendencialmente opostos, entre o chamado princípio da 'objectividade do direito' e o princípio subjectivo do conhecimento pelo destinatário. Cada ordenamento jurídico pode ou privilegiar a necessidade subjectiva do conhecimento desses actos pelo destinatário, com correlativo sacrifício da exigência de certeza objectiva do direito, ou optar antes pela tutela da mera cognoscibilidade desses actos de comunicação através de uma publicitação suficiente (por exemplo, citação ou notificação editais com eventual ampliação dos prazos para reacção dos destinatários), sacrificando o efectivo conhecimento subjectivo. Normalmente, cada ordem jurídica acaba por consagrar soluções balanceadas ou de compromisso entre as lógicas extremas destes dois princípios (ob. cit., págs. 468 e seguintes).
[...]. No direito processual civil português, os actos de comunicação de actos processuais são detalhadamente regulados, com consagração de importantes garantias, mas o Código respectivo não exige em todos os casos uma comunicação pessoal ao visado feita através de oficial de justiça. O primeiro acto de chamamento ao processo do demandado ou de certos intervenientes que ocupam a posição de partes acessórias é a citação, a qual deve ser pessoal, feita através de oficial de justiça ou pelo correio (esta última deve ser efectuada na própria pessoa do citando' - art. 228º-A, nº 2, do C.P.C.). A citação edital (através de éditos publicados em certos lugares e em jornais) só
é admissível quando o citando se encontre em parte incerta, ou quando sejam incertas as pessoas a citar (art. 228º - A, nº 3, do mesmo diploma). Em certos casos, a lei transige e admite formas de citação 'quase-pessoais', feitas na pessoa de terceiros (arts. 228º -A, nº 2, 228º-B, 234º, nºs 3 e 4, 235º, 236º e
243º). As citações pelo correio são feitas por carta registada com aviso de recepção (art. 238º-A).
Quando o citando se haja ausentado para parte incerta e o oficial de justiça venha a ser informado de tal no local da última residência conhecida daquele, esse oficial deverá lavrar certidão da ocorrência, que será assinada pela pessoa de quem tenha recebido a informação. Ao demandante é dado, em regra, conhecimento dessa ocorrência, para requerer o que tiver por conveniente. Se for requerida a citação edital, o juiz só a determinará depois de a secretaria assegurar previamente que não é conhecida a residência do citando, podendo, para tal, colher informações, designadamente das autoridades policiais e administrativas (art. 239º do C.P.C.). A citação edital é rodeada de formalidades para garantir a cognoscibilidade da notícia da acção pelo demandado
(arts. 248º e 249º do C.P.C.).
[...]
[...] Nos casos em que o demandado foi citado editalmente, por se desconhecer o seu paradeiro (o citando encontra-se em parte incerta), e não compareceu em juízo para se defender (deduzindo oposição ou, pelo menos, juntando aos autos procuração a favor de advogado), ocorre uma situação de revelia absoluta.
[...]
Em processo declarativo comum ordinário, a revelia de réu citado editalmente não tem efeitos cominatórios (arts. 483º e 484º, nº 1, do C.P.C.), devendo o Ministério Público ser citado em lugar do revel (art. 15º). Como os factos não se têm por confessados, tem de haver julgamento, precedido de produção de prova. Este regime é também aplicável em processo declarativo sumário (art. 784º, nº 2) e em processo sumarissimo (art. 796º, nº 4).
Como se afirmou neste aresto, o processo civil regulamenta detalhada e cuidadosamente a matéria relativa à citação do demandado, procurando garantir que a citação edital só será efectuada após o juiz se assegurar da impossibilidade de o citando ser localizado. No essencial, este regime não tem sofrido alterações significativas, sendo certo que, no âmbito do regime a que se reporta a redacção da norma em apreciação cabia ao juiz a faculdade de inquirir ou pedir informações às autoridades administrativas, e após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho essa faculdade passou a estar atribuída
à secretaria judicial, mas ainda e sempre no âmbito de uma possibilidade, ou seja, deixando à discricionaridade do juiz a escolha dos meios a utilizar para o efeito, quando as considerasse necessárias. Nada se determinava nestas disposições quanto à pretendida obrigatoriedade ou verdadeiro dever que recairia sobre o julgador em consultar certas e determinadas entidades, nomeadamente as que o recorrente indica, sendo aí que radica, no seu entender, a pretendida inconstitucionalidade.
Por sua vez, não se pode deixar de notar que, efectivamente, como aponta o recorrente, a actual redacção da norma, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, impõe à secretaria, no caso de se frustrar a citação por via postal, e desde logo, a obtenção de informações relativas à residência ou local de trabalho do citando «nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Direcção-Geral dos Impostos e da Direcção-Geral de Viação». Mas daí não se pode concluir que as anteriores disposições, para se mostrarem conformes à Constituição, necessitassem de ser interpretadas no sentido de já então se impor sempre a consulta dessas entidades administrativas.
O que se verificava, nomeadamente na redacção da norma anterior à vigência do Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho, não era, ao contrário do que pretende o recorrente, a atribuição de uma indiscriminada discricionariedade ao julgador. A norma impunha claramente ao juiz que se assegurasse da impossibilidade de localizar o demandado antes de ordenar a citação edital do mesmo, ou seja, impunha-lhe que se certificasse dessa impossibilidade, podendo para tanto socorrer-se dos meios que entendesse necessários ou adequados para o efeito. Não se constatava aqui a existência de um livre arbítrio gratuito, nem qualquer discricionariedade arbitrária, sendo certo que a verificar-se alguma discricionariedade, a mesma se restringia apenas à escolha dos meios a adoptar pelo juiz, ou melhor, das autoridades que este entendesse necessário consultar para tentar localizar o citando.
Mas, uma vez formada essa convicção do julgador, então determinava a norma - como o continua, aliás, a fazer - a prossecução dos autos, efectuando-se a citação edital do citando. Como bem se referiu no citado Acórdão n.º 335/95,
«o legislador tem de prever mecanismos para evitar que o processo fique parado indefinidamente, à espera de que o demandado seja localizado e chamado ao processo». Há que conciliar e equilibrar os vários princípios e interesses em jogo, nomeadamente os do contraditório e da referida proibição da indefesa com aquele outro princípio da celeridade processual e ainda com os princípios da segurança e da paz jurídica, que são valores e princípios de igual relevância e constitucionalmente protegidos.
Bem se compreende assim que o legislador tenha, por um lado, procurado garantir de forma rigorosa a citação da parte, a fim de prosseguir aqueles princípios do contraditório e de acesso ao direito, na vertente da proibição da indefesa, nomeadamente através dos formalismos indicados, e impondo que a citação edital apenas se efectue quando o juiz se certifique da impossibilidade de localização do citando – e que, consequentemente, o processo só então prossiga. Mas, por outro lado, a fim de salvaguardar também esses outros princípios de estabilidade, paz e segurança jurídica, bem como a própria celeridade processual, traçou o legislador um limite às tentativas de citação do demandado, limite esse que se retira ou alcança da formação da convicção do julgador quanto à impossibilidade de localização do citando. Garantido que o julgador usará de todos os meios, e nomeadamente dos melhores meios ou daqueles que se mostrem mais aptos para o efeito de procurar localizar o citando, uma vez essa convicção adquirida, então há que prosseguir com o processo, e não permitir que este se arraste indefinidamente em investigações exaustivas e infindáveis ou que as mesmas se possam reabrir ou efectuar novamente a qualquer momento no decurso do processo, o que poderia ter consequências desestabilizadoras e frustrar assim o alcance da justiça. Esse desiderato alcançado, e a citação edital efectuada, considera o legislador necessariamente encerrada essa fase processual, garantindo assim a estabilidade dos actos praticados, à semelhança do que se passa com os restantes actos e fases processuais, pelo que só e apenas caso se constate a existência de alguma irregularidade no seu processamento haverá lugar à sua repetição, nos termos do artigo 483º.
Não se verifica assim qualquer inconstitucionalidade no tocante à norma constante do artigo 239º, n.º 3, do CPC, pois está garantido o direito de acesso aos tribunais, e na sua vertente da proibição da indefesa.
7. Já o artigo 483º, por sua vez, determina a repetição da citação, sempre que o tribunal encontre irregularidades na citação, nos casos de revelia absoluta do réu. Ou seja, apenas nesses casos, e não na eventualidade de se trazerem novos elementos ao processo, independentemente do momento em que isso se verifique.
O que o recorrente pretende é que esta disposição lhe seja aplicada nos autos, equiparando à irregularidade da citação o facto de chegarem ao conhecimento do tribunal «novos dados do réu [...] 10 meses antes da data de julgamento», considerando tal repetição da citação como exigível mesmo, em qualquer fase do processo, desde que se verificasse «o surgimento de factos supervenientes nos próprios autos [...] só procedendo à citação edital em último caso, quando esgotadas todas as possibilidades de citação pessoal».
O que se considerou na decisão recorrida porém, foi apenas que «não tinha o juiz [...] que, mais tarde, mandar seguir novas pistas e voltar a colher informações a partir de elementos que poderia ter extraído de um processo, de natureza criminal, que veio a ser apensado», e é esta interpretação da norma, tal como foi aplicada, que o recorrente contesta de um ponto de vista da respectiva inconstitucionalidade.
Ora, claramente, cabe aqui o raciocínio já exposto supra: é de todo impensável deixar em aberto essa possibilidade de repetição da citação indefinidamente, colidindo assim com princípios como o da celeridade processual, mas também com os princípios da estabilidade, segurança e paz jurídica, princípios também constitucionalmente protegidos. O legislador procurou equilibrar estes princípios em jogo, formulando assim os requisitos e formalismos a que deve obedecer a formação da convicção do juiz, estabelecendo como vimos um limite para a realização das tentativas consideradas necessárias e bastantes para formar aquela convicção relativa ao paradeiro do citando. A partir daí, há lugar à realização da citação edital, como última tentativa de chamar o réu ao processo, esgotadas que se mostrem todas aquelas tentativas anteriores.
Mas o legislador considerou igualmente necessário, em nome da estabilidade e segurança jurídicas, que a partir desse momento, a instância prosseguisse, de forma estável, não se justificando um sacrifício superior destes outros princípios constitucionais em nome ou a favor apenas daquele outro de acesso ao direito, impondo-se uma fórmula de composição entre uns e outros, equilibrada e proporcional, objectivo esse que é prosseguido pelas normas em causa. Assim, a partir desse momento, e declarada dessa forma, no processo, a revelia absoluta do réu, bem se compreende que só a verificação objectiva de irregularidades na citação edital pudesse justificar a «reabertura» dessa fase processual e levar à repetição desse mecanismo, como determina este artigo 483º.
Não se verifica, pois, em relação a esta norma, qualquer inconstitucionalidade. III – DECISÃO
8. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC’s.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2002- Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa