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Proc. n.º 389/02 Acórdão nº 507/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A e outra deduziram, ao abrigo do disposto nos artigos 285º e seguintes do Código de Processo Tributário, oposição à execução fiscal contra eles instaurada para cobrança da importância de 12.864.556$00 correspondente a dívida de IRS do ano de 1992 (fls. 3 e seguintes). Aí sustentaram, em conclusão, que a execução deveria considerar-se improcedente
'[e]m relação ao executado por ser parte ilegítima, na medida em que a dívida tributária lhe é estranha, não foi autorizada por ele, não foi contraída em benefício do casal, e decorre apenas de uma declaração inexacta feita pela executada, que não corresponde a rendimentos recebidos pelo casal, pelo que a dívida a existir, o que não se concede, só pode responsabilizar a executada, tudo ao abrigo do disposto no artº 286º nº 1 b) do Cód. de Procº Tributário conjugado com o disposto no artº 1692 alínea a) do Código Civil', bem como que
'deverá a execução ser suspensa, aguardando o resultado do processo de impugnação, atempadamente intentado ao abrigo do disposto nos artºs 294 e 255 nºs 5 e 1 do Cód. de Procº Tributário'.
A fls. 51 e seguintes, os opoentes requereram, entre o mais, e ao abrigo do disposto nos artigos 286º, n.º 1, alínea h), e 293º, n.º 2, do Código de Processo Tributário, a junção aos autos de documento comprovativo do não recebimento da quantia exequenda.
O representante da Fazenda Pública veio, nas alegações de fls. 63 e seguinte, referir que a oposição não poderia proceder com base no fundamento alegado e, bem assim, que atenta a pendência da impugnação judicial do acto de liquidação da quantia exigida no processo de execução e o seu carácter prejudicial relativamente à oposição, se poderia mostrar conveniente que esta aguardasse a decisão a proferir no processo de impugnação.
Os opoentes, por seu lado, na alegação de fls. 67 e seguintes, concluíram do seguinte modo:
'1) Foi feita cabalmente a demonstração, inclusive por documentos juntos aos autos, de que os executados não receberam a quantia a que respeita o imposto pedido nesta execução, que foi recebida por outras pessoas que se encontram claramente identificadas nesta oposição e que confessaram, por escrito o seu recebimento;
2) Do exposto decorre a total ilegitimidade dos executados na presente execução, na medida em que nunca receberam o rendimento a que se refere o imposto, tendo feito a demonstração cabal de quem o recebeu, pelo que ao abrigo do disposto no artº 268 nº 1 b) e h) do C.P.T. deverá ser reconhecida a ilegitimidade dos executados e arquivado o presente processo, a isso determinado também o princípio da verdade material estabelecida neste Tribunal;
3) Além disso, é patente de fls. 34 e 35, que configuram o título executivo, que este carece de indicação precisa da proveniência da dívida do imposto, como o exige o disposto no artº 249 nº 1 d) do C.P.T. o que determina a nulidade insanável do título e da presente acção.'
O Ministério Público, finalmente, sustentou que a oposição deveria ser julgada improcedente e que a instância deveria ser suspensa até à resolução da acção de impugnação judicial que estava pendente (fls. 72 e v.º).
2. Por sentença proferida em 3 de Maio de 2001 (fls. 74 e seguintes), o juiz do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa julgou a oposição improcedente e indeferiu a requerida suspensão da instância. Pode ler-se no texto da sentença:
'[...] A problemática de saber se a opoente recebeu efectivamente a quantia que foi considerada omitida na sua declaração de rendimentos e que provocou a liquidação adicional que foi dada à execução não constitui fundamento de oposição, pois que se trata de apreciar da legalidade da liquidação, constituindo, na procedência do invocado, inexistência de facto tributário. Ora, como é sabido, a matéria da legalidade da liquidação está excluída do processo de oposição, salvo se não for assegurado meio de recurso ou impugnação
(artº 286 CPT); sendo que no caso, não só o meio existe, como foi efectivamente utilizado através da dedução da competente impugnação. Por outro lado aquilo a que os oponentes apodam de ilegitimidade tem, também a ver com a legalidade da liquidação, especificamente com a determinação do que se reporta às concretas situações referidas na al. b) do nº 1 do artº 286 CPT (em que, manifestamente, se não integra o alegado).
[...] Por outro lado, ainda, a impugnação judicial só suspende a execução nos termos previstos no artº 255 CPT. E não se verificando esse condicionalismo não há lugar à suspensão da execução. Resta, por último, apreciar da eventualidade de suspensão da instância até à resolução da impugnação. Tal situação só se justificaria se entre a oposição e a impugnação ocorresse uma relação de prejudicialidade. Essa relação consiste no facto de numa acção se discutir um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção; situação que não ocorre no caso. Com efeito, na impugnação discute-se a legalidade da liquidação, que não é apreciável na oposição e, consequentemente, não é um pressuposto necessário desta. No caso de a impugnação ser procedente isso não implica a necessidade de qualquer apreciação na oposição para a extinção da dívida ou da execução; antes esse é um efeito directo da procedência da impugnação. Não há, assim, qualquer razão para a suspensão da instância.
[...].'
3. Inconformados, A e outra recorreram da referida sentença para o Tribunal Central Administrativo (fls. 79), tendo assim concluído a alegação respectiva (fls. 80 e seguintes):
'[...]
3) Ainda que não se considerasse a nulidade da sentença, o que só por dever de patrocínio se admite, deveria a sentença ser revogada por se encontrar eivada de ilegalidades várias:
3.1. Não ter considerado os opoentes como parte ilegítima na execução, quando o deveria considerar, por ter ficado provado que quem recebeu o rendimento a que respeita o imposto não foram os opoentes, mas outra pessoa claramente identificada nos autos, e que confessou tê-los recebido, assim violando a norma jurídica constante dos artºs 286 nº 1 b) e h) do C.P.T.
3.2. Com a interpretação restritiva e meramente literal que o Tribunal fez do artº 286 nº 1 b) do C.P. Tributário, aplicou esta norma de modo materialmente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade constante do artº 13 da C.R.P.
[...]
4) Por último, indeferiu o pedido alternativo de suspensão da execução até à decisão do processo de impugnação judicial, onde está a ser apreciada a situação que, no entender do Meritíssimo Juiz, não podia ser apreciada neste processo. Ao agir deste modo, a sentença violou o disposto nos artºs 97 e 279 nº 1 do Cód. Proc. Civil, realizando-se um acto propiciador de contradição entre julgados.'
Não houve contra-alegações.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo emitiu o parecer de fls. 94 e seguintes, no qual sustentou que o recurso não merecia provimento, designadamente pelos seguintes fundamentos:
'[...]
3. Ilegitimidade substantiva (3ª 1. conclusão) A sentença pronunciou-se com acerto no sentido de que, sob invocação da sua ilegitimidade substantiva, os recorrentes pretenderam discutir na oposição à execução a concreta legalidade da dívida exequenda, em sobreposição a impugnação judicial oportunamente deduzida e com violação de imperativo legal (art. 236º CPT).
4. Inconstitucionalidade (3ª 2. conclusão) A sentença não incorreu em interpretação restritiva e meramente literal do art.
286° nº 1 al. b) CPT, com violação do princípio constitucional da igualdade
(art.13° CRP) porquanto: a) não se pronunciou sobre a legalidade da liquidação de IRS, na medida em que a pronúncia excedia o poder cognitivo do Tribunal em sede de oposição à execução b) não recusou qualquer equiparação entre a ilegitimidade substantiva da pessoa citada que não figura como devedora no título executivo e da pessoa citada que, embora figurando como devedora no título, não auferiu o rendimento sujeito a tributação, de onde emergiu a dívida exequenda c) a pretendida identidade de tratamento violaria a natureza do título executivo, equiparado a decisão com trânsito em julgado (art. 235° CPT).
[...]
6. Suspensão da execução (4ª conclusão)
É espúria a invocação dos arts. 97° e 279° nº 1 CPC, na medida em que os pressupostos da suspensão da execução fiscal estão expressamente previstos no CPT, não se tendo verificado no caso «sub judice» (art. 255° nºs 1 e 5 CPT). Não tem fundamento o receio de contradição de julgados manifestado pelos recorrentes, na medida em que uma eventual procedência da impugnação judicial
(com anulação da liquidação do imposto) terá como consequência necessária a extinção da execução, por anulação da dívida exequenda, da competência CRP (art.
176º nº 1 al. b) CPPT).'
4. Por acórdão de 5 de Fevereiro de 2002 (fls. 98 e seguintes), o Tribunal Central Administrativo negou provimento ao recurso, podendo ler-se no respectivo texto, para o que aqui releva, o seguinte:
'[...] II. A ilegitimidade (3ª 1. conclusão) Alegam os recorrentes que a sentença não considerou os opoentes como parte ilegítima na execução, quando o deveria considerar, por ter ficado provado que quem recebeu o rendimento a que respeita o imposto não foram os opoentes, mas outra pessoa claramente identificada nos autos, e que confessou tê-los recebido, assim violando a norma jurídica constante dos artºs 286 n° 1 b) e h) do C.P.T.. Analisando atentamente a sentença, vê-se que ela se pronunciou com acerto no sentido de que, sob invocação da sua ilegitimidade substantiva, os recorrentes pretenderam discutir na oposição à execução a concreta legalidade da divida exequenda, em sobreposição a impugnação judicial oportunamente deduzida e com violação de imperativo legal (art. 236° CPT)
É que sobre a questão de saber se a oponente recebeu efectivamente a quantia que foi considerada omitida na sua declaração de rendimentos e que provocou a liquidação adicional que foi dada à execução, dúvidas não podem subsistir de que essa factualidade não constitui fundamento de oposição, pois que se trata de apreciar da legalidade da liquidação, constituindo, na procedência do invocado, inexistência de facto tributário. E, como também acertadamente refere o Mº Juiz, a matéria da legalidade da liquidação está excluída do processo de oposição, salvo se não for assegurado meio de recurso ou impugnação (artº 286º CPT); sendo que no caso, não só o meio existe, como foi efectivamente utilizado através da dedução da competente impugnação. Por outro lado aquilo a que os opoentes apodam de ilegitimidade tem, também a ver com a legalidade da liquidação, especificamente com a determinação do sujeito passivo e a ilegitimidade relevante como fundamento para oposição é apenas a que se reporta às concretas situações referidas na al. b) do n° 1 do artº 286 CPT (em que, manifestamente, se não integra o alegado). Termos em que improcede a conclusão sob análise. III - A inconstitucionalidade ( conclusão 3ª 2): Sustentam os recorrentes que com a interpretação restritiva e meramente literal que o Tribunal fez do artº 286 bº 1 b) do C.P. Tributário, aplicou esta norma de modo materialmente inconstitucional, por violação do princípio da igualdade constante do artº 13 da C.R.P.. Todavia é lapidar a este propósito o expendido pelo EMMP junto deste TCA, de que resulta que a sentença não incorreu em interpretação restritiva e meramente literal do art. 286° n° 1 al. b) CPT, com violação do princípio constitucional da igualdade (art. 13° CRP) porquanto: a) não se pronunciou sobre a legalidade da liquidação de IRS, na medida em que a pronúncia excedia o poder cognitivo do Tribunal em sede de oposição à execução b) não recusou qualquer equiparação entre a ilegitimidade substantiva da pessoa citada que não figura como devedora no titulo executivo e da pessoa citada que, embora figurando como devedora no título, não auferiu o rendimento sujeito a tributação, de onde emergiu a dívida exequenda c) a pretendida identidade de tratamento violaria a natureza do julgado titulo executivo, equiparado a decisão com trânsito em julgado (art. 235° CPT). Não colhe, pois, a conclusão em apreço.
[...] V-A suspensão da execução (4ª conclusão) Os recorrentes insurgem-se também contra a sentença por esta ter indeferido o pedido alternativo de suspensão da execução até à decisão do processo de impugnação judicial, onde está a ser apreciada a situação que, no entender do Meritíssimo Juiz, não podia ser apreciada neste processo. Ao agir deste modo, entendem os recorrentes que a sentença violou o disposto nos artºs
97 e 279 n° 1 do Cód. Proc. Civil, realizando-se um acto propiciador de contradição entre julgados. Quanto a esta questão, fundamentou o Sr. Juiz «a quo» que a impugnação judicial só suspende a execução nos termos previstos no artº 255 CPT e, como não se verifica esse condicionalismo não há lugar à suspensão da execução. Também considerou que não se justifica a suspensão da instância até à resolução da impugnação pois tal só poderia acontecer se entre a oposição e a impugnação ocorresse uma relação de prejudicialidade a qual consiste no facto de numa acção se discutir um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção. O Mº Juiz afirma e com razão que essa situação não se verifica no caso concreto já que na impugnação se discute a legalidade da liquidação, que não é apreciável na oposição e, consequentemente, não é um pressuposto necessário desta e, no caso de a impugnação ser procedente isso não implica a necessidade de qualquer apreciação na oposição para a extinção da dívida ou da execução; antes esse é um efeito directo da procedência da impugnação. Não há, assim e como o declara o Mº Juiz recorrido, qualquer razão para a suspensão da instância. Ademais, o pedido de suspensão não constitui fundamento de oposição à execução fiscal, não é um pedido próprio desta forma de processo, que constitui meio de defesa do executado visando a extinção da execução contra a sua pessoa, sendo no processo de execução que o executado, querendo obter a sua suspensão, deve formular esse pedido à entidade competente: o chefe da repartição de finanças
(art. 43°, al. g) do CPT), que apreciará se se verificam os pressupostos do art.
255° do CPT, cabendo da sua decisão, recurso para o Tribunal Tributário de 1ª Instância, nos termos do citado art. 355° do mesmo código. Termos em que improcedem in totum as conclusões de recurso.
[...].'
5. De novo inconformados, A e outra recorreram do mencionado acórdão do Tribunal Central Administrativo para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, 'em virtude de naquele Acórdão se ter interpretado e aplicado o artº 286º nº 1 b) do Código de Processo Tributário (D.L. 154/91, de 23/4, com as sucessivas alterações de que foi objecto), com violação do princípio da igualdade entre os cidadãos e contribuintes, constante do artº 13º da Constituição da República Portuguesa, e portanto interpretando e aplicando a referida norma, de modo materialmente inconstitucional' (fls. 110 e seguintes).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 115.
Os recorrentes produziram as alegações de fls. 119 e seguintes e, não apresentando embora formalmente conclusões, sustentaram, em síntese, que:
· 'a interpretação restritiva do artº 286º nº 1 b) do C. P. Tributário, que considera que nele não cabem todas as hipóteses em que se demonstre, fundadamente, que quem consta do título executivo não foi, na realidade, quem recebeu os bens ou rendimentos de que deriva o imposto, cria uma situação de injustificada discriminação entre os vários tipos de rendimentos e de cidadãos contribuintes, violando o artº 13º da Constituição da República, pelo que faz uma interpretação inconstitucional da referida norma' (fls. 128);
· 'a interpretação restritiva daquele preceito, como foi feito e aplicado no caso 'sub judice', discrimina entre os contribuintes consoante a origem dos rendimentos, beneficiando apenas e sem causa aqueles cujo rendimento provém de imóveis, sem nenhum fundamento aceitável, pelo que se configura como uma interpretação do preceito contrária à Constituição da República, no seu artº
13º, portanto inconstitucional e inaplicável' (fls. 129-130);
· 'o artº 286º do C. P. Tributário demonstra claramente que a apreciação da ilegitimidade da executada, nos casos em que a realidade se apresenta em desconformidade com o que consta do título executivo, é um vício cuja apreciação cabe no processo de oposição à execução, independentemente de existir ou não um processo distinto de impugnação de liquidação do imposto' (fls. 130). Terminaram, pedindo que o Tribunal Constitucional apreciasse e julgasse materialmente inconstitucional a referida interpretação restritiva da norma do artigo 286º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Tributário, por violação do princípio da igualdade dos cidadãos contribuintes perante a lei, constante do artigo 13º da Constituição. Nas suas contra-alegações (fls. 134 e seguinte), a representante da Fazenda Pública sustentou, em síntese, que:
· 'os recorrentes, ao insurgirem-se contra o não conhecimento da oposição à execução por o Tribunal ter decidido que a questão era de legalidade da execução a qual não constitui fundamento de oposição, pretendem o acesso a uma determinada via processual, cujos fundamentos são taxativos pelo que o não enquadramento dos fundamentos da petição de oposição num desses fundamentos legais não permite qualquer termo de comparação para aferir do alegado tratamento desigual';
· 'são os próprios recorrentes que ao mesmo tempo que alegam que lhe foi vedado o acesso aos tribunais ou à justiça, vêm dizer que «apresentaram neste caso também um processo de impugnação»';
· 'os recorrentes não foram, pela via da aplicação da alínea b) do n.º 1 do artigo 286º do CPT, alvo de qualquer discriminação susceptível de pôr em causa o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa'. Terminou, pedindo que fosse mantido o acórdão recorrido. Cumpre apreciar.
II
6. Dispõe o artigo 286º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Tributário (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de Abril e, entretanto, já revogado pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, nos termos do artigo
2º deste diploma):
'Artigo 286º Fundamentos da oposição à execução
1. A oposição só poderá ter algum dos seguintes fundamentos:
[...] b) Ilegitimidade da pessoa citada por esta não ser o próprio devedor que figura no título ou seu sucessor ou, sendo o que nele figura, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram ou por não figurar no título e não ser responsável pelo pagamento da dívida.
[...]'.
O actual Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo já referido Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, contém um preceito praticamente com o mesmo teor literal, o artigo 204º, n.º 1, alínea b).
Entendeu o tribunal recorrido (supra, 4.) que a referência, constante do mencionado preceito, a não ser o executado o possuidor dos bens que originaram a dívida exequenda, não abrange uma qualquer situação em que for outra a pessoa que 'recebeu efectivamente a quantia que foi considerada omitida na sua declaração de rendimentos e que provocou a liquidação adicional que foi dada à execução'. Dito de outro modo, a legitimidade do executado não será excluída, em geral, pela circunstância de não ter efectivamente recebido certa quantia, dado que tal constituirá matéria atinente à legalidade da liquidação, a discutir em sede diversa: no processo de impugnação judicial da liquidação e não no processo de oposição à execução.
Consideram os recorrentes que se está perante uma interpretação restritiva do preceito, que é inconstitucional.
7. Será assim ?
A resposta afirmativa dos recorrentes assenta em que, se a dívida fiscal respeitasse a rendimento proveniente de imóvel, o executado poderia fundar a oposição que eventualmente deduzisse à execução na circunstância de não ter possuído o imóvel durante o período a que a dívida dissesse respeito (supra,
5.). Haveria, como tal, um tratamento privilegiado dos contribuintes cujo rendimento proviesse de imóveis, ofensivo do princípio da igualdade dos cidadãos contribuintes perante a lei.
Não obstante a decisão recorrida não aludir expressamente à situação dos contribuintes cujo rendimento provém de imóveis, adianta-se desde já que a interpretação perfilhada na decisão recorrida (concedendo que ela segue a orientação que, a propósito do artigo 286º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Tributário de 1991, tem sido seguida pela corrente jurisprudencial que os recorrentes denominam maioritária, cfr. fls. 125 das alegações respectivas), em nada viola o princípio da igualdade dos cidadãos contribuintes perante a lei. Os recorrentes não explicitam de modo muito claro em que medida a interpretação do tribunal recorrido acarretaria um prejuízo para os contribuintes cujo rendimento não provém de imóveis e um benefício para os contribuintes cujo rendimento deles provém. Pode todavia depreender-se das alegações apresentadas que tal prejuízo resultaria de aos primeiros estar cerceada a via da oposição à execução para se defenderem de uma ilegalidade da liquidação tributária
(dispondo para tanto apenas do processo de impugnação judicial), via esta que já estará aberta aos segundos. A verdade, porém, é que existe uma razão para o tratamento diferenciado contra o qual os recorrentes se insurgem, que sempre justificaria o alegado prejuízo e o alegado benefício.
A propósito do fundamento de oposição à execução previsto no preceito em análise, assinalam Alfredo José de Sousa e José da Silva Paixão
(Código de Processo Tributário Comentado e Anotado, 3ª ed., Coimbra, Almedina,
1997, p. 594-595):
'Outro tipo de ilegitimidade é o decorrente do facto de a pessoa citada, embora figurando no título como executada, «não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram».
[...] Este fundamento de oposição só pode verificar-se em relação aos tributos incidentes sobre o rendimento ou fruição dos respectivos bens e, portanto, nas execuções por dívidas de contribuição autárquica e de impostos rodoviários, com excepção do imposto de circulação.
[...] A situação de facto integradora da ilegitimidade nestes casos é a falta de posse dos bens no período a que respeita a dívida exequenda. A oposição com tal fundamento sobrevirá, porque no acto da citação pessoal o funcionário dela encarregado não cumpriu ou não teve elementos que lhe permitissem cumprir o disposto no art. 244º.'
Existe uma razão para que, em certas execuções, o executado possa invocar como fundamento da oposição à execução a circunstância de não ter sido o possuidor dos bens no período a que respeita a dívida exequenda: a natureza da conexão entre a incidência objectiva e a incidência subjectiva do imposto torna compreensível o sistema estabelecido na lei. Com feito, é explicável que, estando em causa uma dívida tributária relativa a imóveis ou a certo tipo de outros bens corpóreos (relativa ao respectivo uso e fruição) – e o facto de o imposto se reportar a um certo e determinado desses bens – possa invocar-se ainda na oposição à execução fiscal um fundamento que, respeitando afinal apenas à 'ilegalidade em concreto' da liquidação, em princípio, e na lógica da nossa lei processual tributária, só poderia ser invocado na impugnação judicial. E isto tanto mais quanto, em tais impostos, a liquidação se opere independentemente da declaração do contribuinte. Como consequência deste sistema, aliás, a lei permite a 'reversão contra possuidores', regulada no artigo 244º do Código em análise. Este preceito prevê a 'correcção, por via executiva, do acto tributário, quanto ao respectivo sujeito passivo, operando-se oficiosamente uma modificação subjectiva da instância', sendo que tal correcção pode justamente advir 'da procedência da oposição à execução deduzida pelo originário executado' (cfr. autores e obra citada, p. 505).
Também Jorge Lopes de Sousa (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, Lisboa, Vislis, 2000, p. 852-853), em anotação ao artigo
204º, n.º 1, alínea b), do actual Código de Procedimento e de Processo Tributário (correspondente ao preceito que constitui o objecto do presente recurso), observa:
'A segunda situação referida na alínea b) do n.º 1 deste art. 204º é do executado figurar no título, mas não ter sido o possuidor dos bens que originaram a dívida, no período a que respeita a dívida. Esta situação de ilegitimidade está conexionada com as situações de reversão da execução contra possuidores, fruidores e proprietários, previstas no art. 158º deste Código, podendo esta reversão ser uma consequência do julgamento que se fizer sobre a ilegitimidade referida nesta alínea b).
[...] Trata-se de situações em que há um prévio acto de liquidação do tributo, que deverá ter sido notificado aos interessados, que não o impugnaram, pelo que, em princípio, não haveria a possibilidade de discutir no processo de oposição a questão de saber se a pessoa a quem foi imputada a responsabilidade pelo pagamento da dívida é ou não responsável. Porém, excepcionalmente, neste tipo de situações admite-se que a pessoa a quem é imputada a dívida possa no processo de execução fiscal demonstrar que não se verifica em relação a ela, quanto ao período a que se refere o tributo, o pressuposto da incidência (posse, fruição ou propriedade). A razão de ser de tal excepção residirá na constatação de que o acto de liquidação está viciado por erro sobre os pressupostos de facto, imputável à administração tributária, que impõe a revisão do acto tributário [...].'
Não existe, por conseguinte, qualquer diferenciação arbitrária subjacente à interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido, pelo que o alegado prejuízo dos contribuintes cujo rendimento não provém de imóveis e concomitantemente o alegado benefício dos contribuintes cujo rendimento deles provém sempre teria uma justificação plausível.
Como tal, improcede a inconstitucionalidade invocada.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo
286º do Código de Processo Tributário aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de
23 de Abril, na interpretação apontada pelos recorrentes, por entender que não existe qualquer violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 6 de Dezembro de 2002 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa