Imprimir acórdão
Proc. nº 765/02 Relator: Benjamim Rodrigues
Acordam em conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1. A, identificado nos autos, reclama para este Tribunal Constitucional, nos termos do art.º 76º n.º 4 da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, sucessivamente alterada) do despacho do senhor juiz relator do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 25 de Outubro de 2002, que indeferiu o requerimento de interposição do recurso do Acórdão proferido em 3 de Outubro de
2002 pelo STJ, na parte relativa à interpretação e aplicação da al. b) do n.º 2 do art.º 412º do Código de Processo Penal (CPP). O ora reclamante sustenta, em síntese, que, faltando a indicação, nas conclusões formuladas na motivação do recurso, das menções constantes das alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art. 412.º do CPP, o STJ deveria seguir a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, acolhida pelo Acórdão n.º 320/2002 do Tribunal Constitucional onde se declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do referido dispositivo do CPP, quando interpretado no sentido de que 'a falta de indicação, nas conclusões da motivação de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido sem que ao mesmo seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência'.
2. O STJ decidiu, no Acórdão proferido em 3 de Outubro de 2002, não conhecer do recurso interposto, pelo ora reclamante, do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, alterando a medida da pena determinada pelo Tribunal Colectivo da Comarca de Aveiro – 5 anos de prisão, por cúmulo jurídico – , fixou a pena unitária de quatro anos e nove meses de prisão. Em tal aresto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que o então recorrente estava a 'impugnar directamente o acórdão da 1ª instância, uma vez que as conclusões do recurso são praticamente idênticas às conclusões do recurso interposto para a Relação de Coimbra'. Daí que, no entendimento expresso pela decisão do STJ, 'ao apresentar agora conclusões idênticas às do recurso para a Relação, o recorrente não veio impugnar os fundamentos do acórdão daquele Tribunal no que concerne ao recurso que o mesmo apreciou. Logo tal acórdão ficou incólume (v. o acórdão do STJ, de 11/4/2002 – proc. 772/02 – 5ª Secção). [E] sendo assim, este Supremo não pode conhecer do recurso interposto do acórdão da Relação, por o mesmo carecer de objecto'. Considerou-se, igualmente, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que 'ainda que se pudesse considerar que o recorrente veio impugnar o acórdão da Relação
(…) [o recurso] versaria, então, matéria de facto nas conclusões a) e b), (…)
[assim contrariando] o disposto no art. 434.º do CPP, que impõe que o recurso interposto (…) vise exclusivamente matéria de direito, sem prejuízo do disposto no art.º 410º n.os 2 e 3 do mesmo Código', pelo que, estando em causa matéria de facto, o STJ 'também por este motivo não poderia conhecer' de tais questões. Finalmente, quanto às restantes conclusões apresentadas pelo recorrente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça considerou reportarem-se a matéria de direito – atinente à medida concreta da pena, nomeadamente no que respeitava à aplicação do regime penal especial para jovens previsto no Dec.-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro e com o enquadramento jurídico-penal da sua conduta –, e entendeu que 'versando matéria de direito, as conclusões têm de indicar, sob pena de rejeição do recurso, os elementos referidos no n.º 2 do art.º 412º do CPP. Sucede que o recorrente, pelo menos e muito claramente, não indicou o sentido em que, no seu entendimento, o tribunal recorrido interpretou as normas violadas, ou com que as aplicou nem o sentido em que deveriam ser interpretadas ou com que deviam ter sido aplicadas. E isto viola o disposto na al. b) do n.º 2 do citado art. 412, pelo que (…) o recurso teria de ser rejeitado no que tange à matéria de direito.
3. O despacho do relator do STJ não admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante do acórdão em que se decidiu não conhecer do recurso interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, na parte em que aquele interpretara e fizera aplicação da al. b) do n.º 2 do art.º 412º 'por a interpretação de tal normativo, que levou à rejeição parcial do recurso – só no que respeita matéria de direito – constitui[r] uma decisão subsidiária, diga-se assim, do acórdão em causa' e que a 'decisão principal traduziu-se no não conhecimento do recurso interposto do acórdão da Relação, por o mesmo carecer de objecto'. Sendo assim, objecta, vindo o recorrente impugnar apenas aquela 'decisão subsidiária ficou a decisão principal incólume e até acaba de transitar em julgado'. E, consequentemente, face à instrumentalidade do recurso de constitucionalidade, aqui relativo à questão subsidiária, nunca o seu eventual provimento, teria a virtualidade de provocar a alteração do julgado. Nesta perspectiva, - diz - a admissão do recurso 'constitui um acto inútil, cuja prática não é permitida pelo art.º 137º do Cód. de Proc. Civil'.
4. A Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta em serviço no tribunal recorrido respondeu que o recurso seria de admitir, não com o fundamento invocado pelo recorrente,
'mas porque nos termos do art.º 78º n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional', este recurso tem efeito suspensivo porque 'o recurso da decisão proferida já em fase de recurso mantém os efeitos e o regime de subida do recurso anterior'.
5. O Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional emitiu parecer no sentido do provimento da reclamação, defendendo, em síntese, que o STJ, em vez de não conhecer do recurso, deveria ter convidado o então recorrente a aperfeiçoar o enunciado das questões de direito constante das conclusões que relevou, em cumprimento da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, decretada no acórdão n.º 320/2002 e que sem uma estabilização das conclusões – a qual só pode ocorrer após esse convite - não é possível avaliar da idoneidade e concludência do recurso, mesmo na perspectiva da instrumentalidade dos recursos para o Tribunal Constitucional, nos casos, como o dos autos, em que não estão em causa fundamentos da decisão recorrida cumulativos ou autónomos, mas perante rationes decidendi estritamente conexionadas e incindíveis na sua valoração global. B – A fundamentação
5. A questão decidenda
É a de saber se deve ser admitido o recurso para este Tribunal Constitucional do despacho proferido pelo relator do STJ que indeferiu a sua interposição, fundamentando-se na circunstância de a decisão relativa às conclusões, cujo convite de aperfeiçoamento não foi efectuado – com violação da declaração de inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º 320/2002 –, constituir como que
'uma decisão subsidiária da decisão principal' e na qual se decidiu não conhecer do recurso sob fundamento do mesmo carecer de objecto (o recurso teria atacado o Acórdão da 1ª Instância em vez do Acórdão do Tribunal da Relação).
6. Do mérito da reclamação De acordo com o Acórdão deste Tribunal n.º 320/2002, publicado no D. R., I Série-A, de 7 de Outubro de 2002, foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma constante do art.º 412º, n.º 2 do CPP, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c), tem como efeito a rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.
À rejeição, como é evidente, pelo exacto paralelismo problemático-axiológico, deve equiparar-se o não conhecimento do recurso, nos casos em que, como o dos presentes autos, o tribunal não conhece das questões a que se referem as conclusões tidas por deficientes nos termos daquelas alíneas, mas conhece de outras que considera não padecerem das mesmas faltas, por o efeito ser exactamente o mesmo: o tribunal acaba por rejeitar o recurso, não conhecendo do seu objecto, na parte correspondente. Como se colhe do relatado, o acórdão de que o reclamante recorreu para este Tribunal, de 3 de Outubro de 2002, mas cujo recurso não lhe foi admitido, aplicou efectivamente aquela norma do n.º 2 do art.º 412º do CPP com o sentido declarado inconstitucional pelo referido Acórdão n.º 320/2002. Consequentemente, o caso cabe na hipótese de admissão do recurso que está retratada na al. g) do n.º 1 do art.º 70º da LTC. Argumenta, porém, o senhor juiz relator do STJ que a decisão principal 'se traduziu no não conhecimento do recurso interposto do acórdão da Relação por o mesmo carecer de objecto' e que 'a interpretação de tal normativo (n.º 2 do art.º 412º do CPP) que levou à rejeição parcial do recurso – só no que respeita
à matéria de direito - constituiu uma decisão subsidiária, diga-se assim do acórdão em causa'. E, seguindo a mesma linha, sustenta que, tendo o recorrente deixado incólume a decisão principal, que diz ter acabado até por transitar em julgado, não deve em abono do princípio da instrumentalidade do recurso de constitucionalidade admitir-se o mesmo, pois qualquer que seja o seu resultado, ele não terá a virtualidade de poder alterar o sentido do acórdão recorrido que decidiu não conhecer do recurso.
É evidente que este discurso argumentativo padece de uma verdadeira petição de princípio, como, aliás, bem nota o Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal. Como é consabido, são as conclusões que delimitam o objecto do recurso e, consequentemente, as matérias ou questões a decidir pelo tribunal ad quem. Mas sendo assim, enquanto essas conclusões puderem ser apresentadas, corrigidas ou esclarecidas, de acordo com o sentido constitucional da referida norma do art.º 412º n.º 2 do CPP, não é possível falar de uma estabilização ou precisa delimitação das questões a decidir. Só depois de tal momento será possível ao tribunal formular um juízo global sobre a idoneidade e concludência do recurso. E isto é assim porque, segundo decorre do próprio despacho que não admitiu o recurso, a decisão recorrida se encontra estruturada, não sobre quaisquer fundamentos autónomos (caso em que, de facto, se verificaria a inutilidade do recurso de constitucionalidade relativo à norma que fosse aplicada no segmento da decisão deixado inatacado), mas sobre duas rationes decidendi 'estritamente conexionadas e incindíveis' quanto aos aspectos da sua consideração plena e global. Relativamente a esta matéria, basta atentar que, após a correcção das deficiências das alegações – no uso do direito reconhecido no mencionado Acórdão n.º 320/2002 - o acórdão que não conheceu do recurso poderá, porventura, chegar
à conclusão de que a decisão recorrida é o Acórdão da Relação de Coimbra e não o Acórdão da 1ª instância e valorar a matéria das alegações num sentido global diferente, nomeadamente, quanto à matéria do objecto do recurso, para não se falar já das questões de direito que emerjam das conclusões respectivas após a sua correcção.
À procedência da reclamação é absolutamente indiferente o efeito a atribuir ao recurso nos termos do art.º 78º n.º 3 da LTC, ao contrário do que aduziu o Ministério Público junto do STJ. Este não constitui um fundamento ou razão de procedência, mas é, antes, uma dimensão processual a considerar apenas, no caso de deferimento da reclamação, surgindo como questão a encarar e resolver após tal momento. C – A decisão
7. Destarte, atento tudo o exposto, acordam os juizes deste Tribunal Constitucional em deferir a reclamação do recorrente contra o despacho que não lhe admitiu o recurso e ordenar a reforma do despacho reclamado de acordo com o aqui decidido. Sem custas por não devidas. Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003 Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida