Imprimir acórdão
Processo n.º 428/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente o Ministério Público e são recorridos A., B. e C. (representado pela curadora D.), foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 19 de abril de 2012.
2. A recorrida A. propôs ação ordinária de impugnação de paternidade contra os recorridos B. e C., pedindo que se ordenasse o cancelamento ou retificação do registo de nascimento do segundo relativamente à paternidade aí estabelecida em nome do primeiro.
Face ao disposto no artigo 1842.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil (CC), o tribunal de 1.ª instância concluiu pela absolvição do pedido, invocando que «a caducidade constitui exceção perentória, de conhecimento oficioso». Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que acordou em «julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida» e em «recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material, do art.º 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC, por violação do art.º 26.º, n.º 1 da CRP», com a seguinte fundamentação:
«A única questão a decidir, em função da qual se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, consiste em saber se deve ser julgado inconstitucional o prazo de caducidade para a propositura da ação de impugnação de paternidade intentada pela mãe.
III
Encontram-se provados documentalmente os seguintes factos:
1. A Autora e o primeiro Réu, casaram um com o outro no dia 03.09.1994.
2. Conforme consta no assento de nascimento n.º 1656 do ano de 2006, o segundo Réu, C. nasceu no dia 30.01.2006 e é filho de B., aqui primeiro Réu, e de A., aqui Autora.
3. O casamento celebrado entre a Autora e o primeiro Réu veio a ser dissolvido por divórcio decretado por sentença de 13.05.2008, transitada em 23.05.2008, proferida pelo Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Gaia.
4. A presente ação foi proposta em 07.03.2010.
IV
Como resulta das suas conclusões de recurso, a Autora, aqui recorrente, defende que o preceito estipulado na alínea b), do n.º 1 do art.º 1842.º do CC padece de inconstitucionalidade ao fixar um prazo para ser intentada por si a ação de impugnação de paternidade do seu filho atribuída pelo registo de nascimento ao seu então cônjuge e co-Réu, B..
Como resulta dos factos provados o menor C. nasceu em 30 de Janeiro de 2006 e encontra-se registado como filho do primeiro Réu e da Autora.
Por outro lado, a presente ação deu entrada em juízo no dia 07 de Março de 2010.
É o art.º 1839.º do CC que determina o fundamento e a legitimidade para ser impugnada a paternidade do filho, considerando o preceito que pode fazê-lo o marido da mãe, a mãe, o filho, ou, nos termos do art.º 1841.º, o Ministério Público. E, o seu n.º 2 estatui que na ação o autor deve provar que, de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável.
Por outro lado, já é o art.º 1842.º do CC que nos dá conta dos prazos em que podem ser intentadas aquelas ações de impugnação da paternidade, consoante o seja pelo marido, pela mãe ou, pe1o filho.
Naquela data da instauração da presente ação, já a redação do art.º 1842.º, n.º 1, alínea b) do CC, ex vi art.º 1.º da Lei 14/2009, de 01 de Abril, tinha passado a ser a seguinte:
“1 – A ação de impugnação de paternidade pode ser intentada:
b) Pela mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento”;
Donde se observa que se manteve a redação igual à anterior, exceto no que respeita ao prazo, que foi alargado de dois para três anos.
No caso em apreço verifica-se admitir a ora Recorrente que estando ainda casada com o primeiro Réu e com este vindo a manter, desde meados de 2005, relações de sexo ocasionalmente, também durante este mesmo período mantinha uma relação amorosa com E., o que se prolongou durante o período legal de conceção do menor, seu filho.
Admite também a Recorrente nunca ter tido dúvidas quanto à paternidade do menor, atribuindo-a ao primeiro Réu, sem contudo fundamentar essa sua certeza.
Na verdade admitindo a Recorrente manter uma relação amorosa com E., durante o período de tempo alegado, nada diz já se a par dessa relação também com ele mantinha um relacionamento sexual.
Mas, seja como for, se só nos últimos tempos, à medida que o seu filho vai crescendo, encontra nele várias semelhanças quer a nível físico quer ao nível da personalidade entre este e aquele E. e, por isso a Recorrente não quer que o seu filho permaneça sob o estigma da desconfiança daquele que, figura como pai no assento de nascimento, é evidente que a Recorrente está a admitir ter tido relações sexuais com aquele E. durante o período legal da conceção do menor, assim como, segundo admite, manteve também nesse período relações sexuais com o então seu marido. São factos pessoais, íntimos da Autora que sabendo que não houve exclusividade dessas relações durante aquele período ou com o então marido, ou com o dito E., que desde logo, naturalmente a teriam de colocar em dúvida séria sobre a paternidade do filho que veio a nascer.
Mas agora à medida que o menor cresce, os traços fisionómicos e/ou de personalidade que o filho vai apresentando e que a Recorrente diz ser semelhantes aos do referido E. que, não obstante a carga subjetiva que carregam, não lhe podem deixar de acentuar uma dúvida ainda mais forte quanto à paternidade do então seu marido, com quem não manteve relações sexuais em exclusividade durante o período legal de conceção, pois também as manteve nesse período com aquele E..
Daí a instauração da presente ação de impugnação de paternidade.
Ora, atento que o menor, C. nasceu em 30 de Janeiro de 2006 e a presente ação deu entrada em juízo em 07 de Março de 2010, como acima já referido, é indubitável que, aquando da propositura da presente ação já tinham decorrido mais de três anos posteriores ao seu nascimento – citado art.º 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC, pelo que já o direito que pretendia exercer se encontrava caduco, nos termos expostos.
Assente que se verifica a caducidade de exercício do pretendido direito, pelo decurso do referido prazo de três anos, importa agora averiguar se a fixação deste prazo para a propositura da ação de impugnação de paternidade pela mãe do menor enferma de inconstitucionalidade, com o fundamento em que o mesmo possa estabelecer um limite desproporcional, irrazoável e/ou inadequado tendo em vista o direito quer da mãe em ver afastada a presumida paternidade, quer do filho em que se fixe a sua real paternidade, tradutora da verdade biológica que se pretende exercer e que se prende com a fixação da paternidade biológica, no fundo, na salvaguarda do direito fundamental ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico. O direito ao conhecimento das origens genéticas, e que cabem no âmbito de proteção quer do direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no art.º 26.º, n.º 1, da CRP, quer de constituir família, plasmado no art.º 36.º, n.º 1 da mesma CRP.
Direito à identidade pessoal, que tal como está consagrado no art.º 26.º, n.º 1 da Constituição, abrange, não apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, e poderá fundamentar por si, um direito à investigação da paternidade e da maternidade, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Ed. Revista, Vol. I, pág. 462.
Donde, a questão da fixação e procura da verdadeira paternidade biológica se prende com o direito constitucionalmente garantido que confere o direito à identidade pessoal- citado art.º 26.º, n.º 1 da CRP e do direito de constituir família em condições de plena igualdade – citado art.º 36.º, n.º 1 da CRP, os quais não podem ser restringidos, como resulta do art.º 18.º, n.º 2 da Constituição.
Vejamos então se a fixação do prazo de três anos posteriores ao nascimento para que possa ser impugnada a paternidade, por parte da mãe do menor, viola tais direitos constitucionalmente garantidos.
O Tribunal Constitucional, por acórdão n.º 23/2006 (Paulo Mota Pinto) de 10/1/2006 (DR I Série de 8/2) declarou – “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º n.º 1, 36.º n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”.
Perante a doutrina deste Aresto tem-se discutido se essa doutrina é aplicável às ações de impugnação de paternidade, também sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante sejam propostas pelo marido, pela mãe, ou pelo filho (art.º 1842.º n.º1 a), b) e c), do CC.
E sobre a caducidade da ação de impugnação da paternidade presumida proposta pelo filho, ao abrigo da alínea c), n.º 1, daquele art.º 1842.º, do CC, observam-se já quanto a esta questão entendimentos diferentes, no Tribunal Constitucional como se vê do dos Acórdãos n.ºs 609/07 (Borges Soeiro) de 11/12/2007, e 179/10 (Pamplona de Oliveira) de 12/5/2010, acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt. Parte aquele primeiro Aresto do argumento essencial de que não se podem colocar desproporcionadas restrições aos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, sustentando que “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817.º do Código Civil estão, outrossim para a disposição contida no artigo 1842. º, n.º 1 alínea c), do mesmo Código”, acabando assim por decidir pela “inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 1842.º n.º 1, alínea c), do Código Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade presumida do marido da mãe, o prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, por violação dos artigos 26.º n.º 1, 36.º n.ºs 1 e 18.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa”.
Já no segundo Aresto foi considerado existir diferença entre a investigação da paternidade, em que “o que está em causa é o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente à qual a imposição de um limite temporal pode implicar violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores) ” e a impugnação em que o que importa é “a definição do estatuto jurídico do impugnante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal”, pelo que veio a ser decidido, “Não julgar inconstitucional, por violação do art.º 26.º da Constituição, a norma do art. 1842. º n.º1 alínea a) do Código Civil, quando, ao fixar um prazo de 2 anos, limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade .
E, perante os argumentos explanados no supracitado Acórdão n.º 23/2006 do Tribunal Constitucional vemos que em algumas decisões dos nossos Tribunais Superiores, se passou a aderir, de um modo geral, à sua doutrina, defendendo-se, então, que ao caso previsto no artigo 1842.º CC se deveria aplicar a mesma solução, uma vez que se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também o presumido pai o poderá fazer, sob pena de discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial, argumentando-se que o respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar como o de impugnar, tratando-se, pois, tanto num caso como no outro, de estabelecer a paternidade biológica. A este propósito cfr. os Acórdãos do STJ, de 14.12.2006, de 31/01/2007, de 07.07.2009 e de 25/03/2010, disponíveis in www.dgsi.pt/, de 07/07/2009, in CJ/ STJ, T. II, 2009, a pág. 168 e segs. e os Acórdãos desta Relação de 24/11/2008 e de 15.03.2010 também disponíveis in www.dgsi.pt/
E, no mesmo sentido também refere o Acórdão do STJ, de 21.02.2008, acessível in www.dgsi.pt/ que: As razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advêm de um quadro jurídico-familiar estabilizado, mesmo que não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social. É este bem um caso que ilustra que a vida flui como areia por entre os dedos da lei. O que hoje causaria mais alarme social, quando os testes de ADN são de fácil acesso, mesmo fora do âmbito da Justiça, é que esta fosse incapaz de reconduzir sua verdade à verdade dos genes que de todos pode ser conhecida. Tratar-se-á de uma nova ética, mas, no fundo, reconduz-se à ética primordial do primado da família ou comunidade natural. E isto sobreleva perante o escândalo de uma situação familiar com, porventura, dezenas de anos vir a ser abalada, por uma impugnação, que, pelo que já consignámos, nunca deve ser considerada tardia”.
Salienta-se também a seguinte referência feita naquele Acórdão do STJ, de 07.07.2009 – “a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade para as ações de estabelecimento da filiação”.
E, sobre a imprescritibilidade das ações de filiação, a propósito da caducidade do direito a investigar, dizem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in Curso de Direito de Família, vol. II, tomo I, 2006, pág. 139, que os tempos correm a seu favor, afirmando que: “não tem sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas, e não pode atribuir-se o relevo antigo à ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade. Diga-se, numa palavra, que o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere claramente a imprescritibilidade.
Por se nos afigurar dogmaticamente mais consistente, a tese da imprescritibilidade, em que é o respeito pela verdade biológica que a sugere, a ela aderimos, e no que aqui interessa, quanto à ação de impugnação da paternidade.
Com efeito, para além da Autora defender um direito próprio à verdade biológica quanto à paternidade (presumida) do então seu marido, não deixa de estar também a garantir um direito à identidade do seu filho, apesar deste se apresentar, processualmente, como Réu, pelo que se está portanto e sempre, perante uma questão de filiação, nesta ação de impugnação.
Nesta conformidade, conclui-se pela inconstitucionalidade material do art.º 1842.º n.º1, alínea b), do CC que estabelece o prazo de caducidade para a ação de impugnação da paternidade, por violação do art.º 26.º n.º1 da CRP.
Por isso, não se verifica a caducidade da ação, o que implica a revogação da decisão recorrida».
3. Foi desta decisão que o Ministério Público interpôs o presente recurso para apreciação da norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC, na redação dada pela Lei n.º 14/2009, de 10 de Abril, por violação do artigo 26.º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
4. Notificado para alegar, o Ministério Público conclui, entre o mais, o seguinte:
«59º
Por todo o exposto ao longo das presentes alegações, e embora sem deixar de reconhecer, mais uma vez se sublinha, que qualquer posição adotada, em matéria de direito de família, designadamente no domínio da filiação, é suscetível de leituras multifacetadas, assentes em conceções muito pessoais da valoração dos interesses em confronto neste tipo de relações, propende-se a concluir, como o Acórdão recorrido do Tribunal da Relação do Porto, pela inconstitucionalidade material do art. 1842, nº 1, alínea b), do Código Civil.
60º
Com efeito, considerando que o princípio da verdade biológica parece encontrar-se subjacente às últimas alterações legislativas sobrevindas em matéria de direito de família e de filiação, a conclusão a retirar de tal constatação é a de que a definição da relação jurídica familiar não deve poder ficar sujeita a prazos de caducidade que impeçam a sua concretização.
Tais prazos não se revelam absolutamente necessários e, muito menos, proporcionais, aos valores que estão em causa neste tipo de relação.
61º
Ainda que assim se não entenda, deverá haver, pelo menos, uma proporção razoável entre a fixação de um prazo de caducidade, para a propositura de uma ação de investigação de paternidade e para a propositura de uma ação de impugnação de paternidade, não sendo lícito fazer pender a balança, exclusivamente, para um dos elementos da relação familiar, designadamente, o filho.
62º
São, na verdade, estreitamente associados os direitos de investigar a paternidade, bem como o de a impugnar, pretendendo ambos definir uma relação jurídica familiar assente na verdade biológica.
63º
Assim, a fixação de um prazo de caducidade de três anos, posteriores ao nascimento do filho, para a mãe intentar a ação de impugnação da paternidade, prazo, esse, cego e objetivo, que não toma, minimamente, em consideração, o momento em que a mesma mãe tomou conhecimento de que o seu ex-marido poderia não ser o pai biológico da criança, revela-se inconstitucional, por violação do direito à identidade pessoal do pai, previsto no art. 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e, correlativamente, o direito do filho a ver reconhecida a sua paternidade biológica.
64º
Com efeito, no caso de a ação de impugnação de paternidade ser proposta pela mãe do menor, uma vez que o prazo de que dispõe, de 3 anos, se não conta de um facto subjetivo, mas objetivo (o nascimento do menor), fica inviabilizado o exercício do direito de ação quando a interessada apenas tem conhecimento efetivo da situação já depois de transcorrido o prazo de 3 anos de que dispunha, para propor a referida ação de impugnação de paternidade.
65º
Ora, afigura-se desproporcionada e violadora do direito à identidade pessoal, a norma que impede a impugnação de paternidade em função de um critério de prazos objetivos, quando os fundamentos para instaurar a ação surgem, pela primeira vez, em momento ulterior ao termos desses prazos.
66º
O prazo de 3 anos, posteriores ao nascimento, não configura, pois, “um prazo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de impugnar e que permitirá avaliar todos os fatores que podem condicionar a decisão”.
67º
Muito pelo contrário, configura, antes, “uma intolerável restrição ao direito de desenvolvimento da personalidade entendido com o alcance de um direito de conformar livremente a sua vida”.
68º
No caso dos autos, não se atende ao momento da cognição, na esfera subjetiva da mãe do menor, de nenhuns factos indiciadores da não paternidade do seu ex-marido, nem, sequer, à sua cognoscibilidade.
69º
Não se concede, assim, à mãe do menor – ao contrário do que é expressamente reconhecido como direito do seu ex-marido - a concessão de uma oportunidade real de averiguar, pelos trâmites processuais adequados, se o vínculo de filiação corresponde à realidade biológica, e de se libertar dele, em caso negativo.
70º
Não pode, em conformidade, atribuir-se valor significante à eventual inércia da mãe do menor, “em sentido abdicativo do direito a impugnar, ou, no mínimo, a dirigir-lhe uma imputação de auto-responsabilidade”.
71º
E, muito menos, concluir-se que, «tendo o titular deste direito conhecimento dos factos que lhe permitem exercê-lo é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a propositura da respetiva ação, após esse conhecimento, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada daquele».
72º
Por último, a consagração, no art. 1842º, nº 1, do Código Civil, de modalidades diferentes para a propositura da ação de impugnação de paternidade, quer a mesma seja interposta pelo marido, quer pela mãe do menor, carecem de justificação objetiva e violam o princípio constitucional da igualdade dos cônjuges, previsto no art. 36º, nºs 1 e 3 da Constituição.
73º
Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade material do art. 1842º, nº 1, alínea b), do Código Civil, quando prevê, para a mãe do menor intentar ação de impugnação de paternidade, que a referida ação seja proposta “dentro dos três anos posteriores ao nascimento” do mesmo menor».
5. Notificados os recorridos, contra-alegou apenas B., concluindo pela inconstitucionalidade material do artigo 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC, ao estabelecer o prazo de caducidade para a ação de impugnação da paternidade, por violação do artigo 26.º, n.º 1, da CRP.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A norma que constitui objeto do presente recurso é a do artigo 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril.
É a seguinte a redação desta disposição legal:
«Artigo 1842.º
Prazos
1 – A ação de impugnação da paternidade pode ser intentada:
(…)
b) Pela mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento;
(…)».
2. O Tribunal da Relação do Porto recusou a aplicação da norma, com fundamento em violação do artigo 26.º, n.º 1, da CRP, por entender que o estabelecimento de um prazo para a mãe intentar ação de impugnação da paternidade presumida não garante o direito à identidade do filho. Para a decisão recorrida, o direito fundamental ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico cabem no âmbito de proteção do direito à identidade pessoal, tal como consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, não havendo razões para tratar a impugnação da paternidade diferentemente da investigação da paternidade. O «respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar como o de impugnar, tratando-se, pois, tanto num caso como no outro, de estabelecer a paternidade biológica”.
Apesar da referência ao direito de constituir família, plasmado no artigo 36.º, n.º 1, da CRP, e do reconhecimento de um direito próprio da mãe à verdade biológica quanto à paternidade (presumida) do então seu marido, a questão de constitucionalidade que é, desde logo, posta pela decisão recorrida é a de saber se a norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC viola o direito à identidade do filho (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), por tal direito não ser compatível com o estabelecimento de uma qualquer limitação temporal para o exercício do direito de impugnar a paternidade.
3. É hoje incontestável que «a matéria da determinação jurídica da filiação tem estado, nas últimas décadas, sob revisão, assumindo hoje o respeito pela verdade biológica um peso de ponderação muito superior ao que, no passado, lhe era atribuído. Esse acréscimo de valorização prescritiva foi fruto da ação conjugada de dois fatores, de natureza diferenciada: por um lado, a possibilidade, que o avanço científico propiciou, da identificação segura, não só negativa como positiva, do vínculo de sangue, através de prova pericial (retirando, assim, praticamente, todo o valor ao tradicional argumento do enfraquecimento das provas com o decurso do tempo); por outro, uma forte acentuação, na ordem jurídico-constitucional e na consciência coletiva, de valores da personalidade, entre os quais avultam os ancorados nos direitos à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade». E é incontestável, também, que «esta linha evolutiva teve repercussões claras na jurisprudência deste Tribunal, quanto à apreciação dos prazos de caducidade para as ações de investigação de paternidade. De facto, contrariando sucessivas pronúncias no sentido de que eles não violavam qualquer parâmetro constitucional – cfr. os Acórdãos n.ºs 99/88, 413/89, 451/89, 311/95, 506/99 e 525/2003 – o Acórdão n.º 456/2003 julgou inconstitucional o artigo 1817.º, n.º 2, na medida em que estabelecia um prazo para o filho intentar a ação de investigação assente em factos puramente objetivos. Posteriormente, o Acórdão n.º 486/2004 julgou inconstitucional o regime geral do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil. Este juízo foi confirmado, em Plenário, pelo Acórdão n.º 11/2005. O Acórdão n.º 23/2006 proferiu declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 1873.º, conquanto nela se estabelecia a extinção, por caducidade, do direito de investigar a paternidade em regra a partir dos 20 anos de idade do filho» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 446/2010, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Por seu turno, o legislador alterou os prazos para a propositura da ação de investigação e de impugnação da paternidade e o respetivo regime de contagem (artigos 1817.º e 1842.º do CC) através da Lei n.º 13/2009, de 1 de abril.
No âmbito do direito da filiação foi-se firmando e é hoje por todos reconhecido o princípio da verdade biológica, «princípio de ordem pública do Direito da Filiação» que «exprime a ideia de que o sistema de ‘estabelecimento da filiação’ pretende que os vínculos biológicos tenham uma tradução jurídica fiel, isto é, pretende que a mãe juridicamente reconhecida e pai juridicamente reconhecido sejam realmente os progenitores, os pais biológicos do filho» (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. II, t. I, Coimbra Editora, 2006, p. 52). Trata-se de um princípio estruturante de todo o sistema legal, ao qual não é, porém, reconhecida dignidade constitucional autónoma, não podendo fundamentar, por si só, um juízo de inconstitucionalidade (na conclusão, autores e local citados e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 589/2007 e 446/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Este entendimento revela-se na jurisprudência constitucional, quer relativamente a norma que fixe um prazo de propositura de ação de investigação da paternidade quer quanto à que fixe um prazo de propositura de ação de impugnação da paternidade, devendo salientar-se, contrariamente ao que decorre da decisão recorrida, «o facto de o Tribunal nunca ter assumido que a imprescritibilidade é o único regime constitucionalmente conforme» (Acórdão n.º 446/2010). As decisões foram sendo tomadas considerando apenas um prazo concretamente estabelecido e/ou o seu modo de contagem (Acórdão n.º 23/2006, tirado em plenário, em matéria de investigação da paternidade; e Acórdãos n.ºs 609/2007 e 279/2008, no âmbito de ação de impugnação da paternidade presumida, intentada pelo filho. Todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) e os julgamentos foram de não inconstitucionalidade quando foi apreciada, em si mesma, a caducidade do direito de investigar ou de impugnar a paternidade (Acórdão n.º 401/2011, tirado em plenário, em matéria de investigação da paternidade, e Acórdãos n.ºs 589/2007, 593/2009, 179/2010, 446/2010 e 634/2011, relativamente a ação de impugnação da paternidade presumida, intentada pelo marido da mãe. Todos disponíveis no naquele sítio).
Por outro lado, importa salientar, face à fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que o entendimento do Tribunal tem sido – nisto se distanciando da decisão recorrida – o de afirmar «uma diferença de grau entre a investigação de paternidade, em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação de paternidade, em que o releva é a definição do estatuto jurídico do investigante [impugnante] em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal» (Acórdãos n.ºs 589/2007, 179/2010 e 446/2010, nos quais estava em apreciação norma no âmbito da impugnação da paternidade presumida por parte do marido da mãe). É verdade que o princípio da verdade biológica sugere a imprescritibilidade das ações de filiação, mas «não pode ignorar-se, porém, que as pretensões de constituição de vínculos novos podem merecer um regime diferente das pretensões de impugnar vínculos existentes» (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., p. 139).
Em suma, o julgamento sobre normas que estabeleçam um prazo para a propositura de ações de filiação tem envolvido sempre a ponderação de vários direitos e interesses constitucionalmente protegidos, podendo concluir-se que o Tribunal tem adotado nesta matéria «uma estrutura argumentativa baseada no método da ponderação» (Acórdão n.º 164/2011, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, por referência às ações de investigação de paternidade). O que acaba por significar também que o juízo sobre norma que fixe prazo para intentar ação de investigação da paternidade não tem de coincidir com o juízo sobre norma que fixe prazo para intentar ação de impugnação da paternidade presumida e que não é também despicienda a distinção dos casos em que esta ação é intentada pelo pai ou pela mãe daqueles em que a mesma é intentada pelo filho. Assim se explica, de resto, que o prazo para intentar o primeiro tipo de ação seja diferente do estabelecido para a ação de impugnação da paternidade (artigos 1817.º, n.º 1, e 1842.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CC) e que a este nível se distinga o prazo consoante a ação seja intentada pelos progenitores ou pelo filho (artigo 1842.º, n.º 1, alíneas a), b), por um lado, e c), por outro).
4. O não reconhecimento de dignidade constitucional autónoma ao princípio da verdade biológica não invalida que o apuramento da paternidade biológica seja uma dimensão do direito fundamental à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da CRP). E o Tribunal tem entendido que tal direito «não atua só em sentido positivo, como direito de cada um a conhecer e a ver juridicamente reconhecido aquilo que é, mas também em sentido negativo, como direito de cada indivíduo de excluir, como fator conformador da identidade própria, aquilo que não é» (Acórdão n.º 446/2010). E por isso este parâmetro tem sido mobilizado na apreciação de normas relativas à investigação da paternidade (Acórdão n.º 401/2011), bem como em matéria de ação de impugnação da paternidade presumida, seja ela intentada pelo filho ou pelo marido da mãe (Acórdãos n.ºs 609/2007 e 279/2008 e 589/2007, 179/2010 e 446/2010, respetivamente). Mas, nesta última hipótese, é já o direito fundamental à identidade pessoal do marido da mãe que deve ser ponderado e não o direito fundamental do filho ao apuramento da respetiva filiação biológica. A eventual caducidade de direito de ação pelo transcurso do prazo previsto no artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do CC em nada afeta naturalmente a possibilidade de o filho, ulteriormente, através de quem o represente ou por iniciativa própria (até 10 anos depois de ter atingido a maioridade ou ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe) intentar a sua própria ação, não necessitando de suportar na sua esfera jurídica a preclusão derivada do “atraso” na impugnação por parte do outro sujeito legitimado (assim, Acórdão n.º 589/2007).
Este entendimento é inteiramente transponível para os presentes autos. Na apreciação da conformidade constitucional da norma que estabelece o prazo de três anos, posteriores ao nascimento, para a mãe intentar a ação de impugnação da paternidade presumida do marido, não pode invocar-se o direito à identidade pessoal do filho (artigo 26.º, n.º 1, da CRP), como obstáculo à caducidade desta ação, tal como faz a decisão recorrida. O filho é, ele próprio, um dos sujeitos a quem a lei confere legitimidade para impugnar a paternidade presumida do marido na mãe – artigo 1842.º, n.º 1, alínea c), do CC –, diferentemente do que sucedia antes de o CC ser revisto em 1977, altura em que só o marido tinha legitimidade ativa (artigo 1818.º).
A questão está, pois, em saber se, à semelhança do que sucede relativamente ao marido da mãe, é aqui invocável um direito fundamental à identidade pessoal da mãe (artigo 26.º, n.º 1, da CRP). E se, reconhecido este direito constitucionalmente protegido, dele decorre a imprescritibilidade da ação de impugnação da paternidade presumida do marido e, em caso de resposta negativa, se dele decorre a desconformidade constitucional da norma que estabelece o prazo de três anos a partir do nascimento do filho.
5. A decisão recorrida, não deixa de invocar um direito próprio da mãe à verdade biológica quanto à paternidade (presumida) do então seu marido. E não há dúvida de que, no plano legal, é de afirmar um tal direito da mãe. Contrastando com o direito passado, a mãe tem hoje legitimidade para intentar ação de impugnação da paternidade presumida (artigos 1826.º, n.º 1, e 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC), além de que pode fazer a declaração do nascimento com a indicação de que o filho não é do marido, o que faz cessar a presunção de paternidade, cuja menção não é efetuada no registo, podendo, desde logo, ser aceite o reconhecimento voluntário da paternidade (artigos 1832.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CC e 119.º, n.º 1, do Código do Registo Civil).
Foi a reforma de 1977 que alargou o âmbito das pessoas com legitimidade para impugnar a paternidade presumida (ao filho e à mãe), até então conferida exclusivamente ao marido. A impugnação da paternidade do marido «era a prova viva de um adultério da mulher, a expressão acabada de uma violação das normas matrimoniais e, ainda por cima, remetia o filho para a condição jurídica desvalorizada de filho ‘ilegítimo’» (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., p. 122). Entre outras razões, o princípio da igualdade jurídica dos cônjuges (artigo 36.º, n.º 3, da CRP) impôs que fosse reconhecida também à mãe legitimidade ativa, devendo afirmar-se que «a mãe do filho cuja paternidade se trata tem um interesse pessoal e autónomo, que se não confunde com o interesse do marido, do filho ou do pai natural, em ver corrigida uma atribuição de paternidade falsa. Não é, obviamente, a mesma coisa gerar um filho por obra deste ou daquele indivíduo. Esta consideração simples mostra que pode ser muito importante para a mulher a declaração jurídica e social de que o seu filho não foi gerado por obra do indivíduo que é seu cônjuge» (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., p. 124 e s.). Para trás ficou o tempo em que à mãe do filho de cuja legitimidade se tratasse era apenas permitido requerer ao Ministério Público a impugnação oficiosa, possibilidade que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 280/73, de 1 de junho (artigo único, n.º 2), já que o marido nem sempre impugnava a paternidade presumida e o pai natural, frequentemente, não requeria ao Ministério Público a impugnação. E embora se possa afirmar que a alteração legislativa veio, de certa forma, dar satisfação aos interesses da mãe, a verdade é que a ela não foram alheios os interesses do filho, uma vez que a este não era então reconhecida legitimidade ativa para impugnar a paternidade.
6. O direito da mãe a ver juridicamente (e também socialmente) reconhecido que não é pai do filho, nascido e concebido na constância do matrimónio, quem a lei presume (artigo 1826.º, n.º 1, do CC) integra-se no âmbito de proteção do direito fundamental à identidade pessoal que o artigo 26.º, n.º 1, da CRP a todos reconhece. Este direito abrange um direito à historicidade pessoal, um direito ao conhecimento e ao reconhecimento da identidade dos progenitores, mas compreende também um «direito à verdade pessoal», no sentido de que «da pessoa não se afirme o que não seja verdade, mesmo que honroso» (cf. Orlando de Carvalho, “Para uma teoria da pessoa humana (reflexões para uma desmitificação necessária)”, in Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2012, p. 266 e, especificamente, nota 170. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, 2010, anotação ao artigo 26.º, ponto V, não deixam de afirmar que «o direito à identidade pessoal postula um princípio de verdade pessoal»).
É naquela dimensão do direito à identidade pessoal que se esteia a legitimidade ativa da mãe para intentar ação de impugnação da paternidade presumida, quando tem razões para duvidar da existência de um vínculo biológico entre o marido e o filho ou quando sabe da inexistência de um tal vínculo. E note-se que, neste domínio dos vínculos de filiação, o direito à verdade pessoal não tem apenas o sentido de fazer reconhecer juridicamente (e também socialmente) quem não é pai do filho, obstando a que se afirme que o filho tem como pai o marido da mãe. O direito à verdade pessoal envolve também uma dimensão relacional específica que o concretiza como direito à verdade perante o filho quanto ao vínculo familiar que os une.
7. É o direito fundamental à identidade pessoal da mãe o direito que deve ser ponderado como outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos no juízo sobre a conformidade constitucional da norma que estabelece um prazo de caducidade do direito de impugnar a paternidade presumida do marido. É a identificação destes outros direitos ou interesses que poderá legitimar o estabelecimento de um prazo para a mãe intentar a ação de impugnação.
Embora quanto ao prazo que o marido da mãe tem para intentar a ação de impugnação da paternidade (artigo 1842.º. n.º 1, alínea a), do CC), o Acórdão n.º 589/2007 salientou o interesse da proteção da família constituída, o qual é também invocável no juízo de ponderação que a norma em apreciação convoca:
«É esse interesse que explica que um terceiro (pretenso progenitor) não tenha legitimidade ex novo para afastar a presunção de paternidade do marido da mãe e obter o reconhecimento da sua paternidade, e só possa intervir processualmente através do Ministério Público (mediante requerimento que lhe deverá ser apresentado em prazo muito curto) e depois de previamente reconhecida a viabilidade do pedido (artigo 1841º do Código Civil). O direito de impugnação da paternidade está, assim, apenas, na disponibilidade direta dos membros da família, no sentido de que só o marido, a mãe e o filho é que se encontram autonomamente legitimados a intentar a ação. E não está, por isso, excluído que a situação de discrepância entre a paternidade presumida e a realidade biológica se mantenha sempre que não haja interesse concreto por parte dos interessados na destruição da paternidade presumida».
E mais se acrescentou, no Acórdão n.º 446/2010, com relevo para os presentes autos:
«Mas não são apenas interesses gerais ou valores de organização social, em torno da instituição familiar, que podem justificar a consolidação definitiva, na ordem jurídica, a partir de determinado limite temporal, de uma paternidade não correspondente à realidade biológica.
Também quanto às posições subjetivas em jogo, na ação de impugnação de paternidade se deteta uma relevante diferença em relação às que se confrontam numa ação de investigação de paternidade. Nesta, o eventual interesse do investigado em não assumir um vínculo de paternidade correspondente à realidade biológica não é merecedor de tutela, pelo menos do ponto de vista do direito à identidade pessoal e à auto-conformação da personalidade, não devendo se reconhecida “uma faculdade de o pai biológico se eximir à responsabilidade jurídica correspondente” (Guilherme de Oliveira, “Caducidade das ações de investigação”. Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito de Família, 2004, págs. 7 s., 11).
Já o eventual interesse daquele que é tido como filho em manter esse estatuto não pode ser inteiramente desconsiderado (como seria com um regime de imprescritibilidade). Sobretudo quando o vínculo jurídico tem tradução consistente no “mundo da vida” familiar e social, gerando, como é normal, laços afetivos, a destruição retrospetiva desse vínculo acarreta (ou agrava) a perda de sentido de uma componente nuclear da memória e da historicidade pessoais, da auto-representação de si, por parte de quem é filho. Valores também situados na esfera da identidade pessoal podem ser invocados em tutela do interesse do outro sujeito da relação paterno-filial em ver como definitivamente adquirido o estatuto de que goza, após o decurso de um certo prazo em que o pai teve efetiva oportunidade de o impugnar judicialmente. Outros fatores de identidade pessoal podem sobrepor-se, na ótica do filho, aos de ordem genética, não podendo ser dado por seguro que o seu interesse, mesmo excluindo dimensões patrimoniais, corresponda sempre à coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico. Esse interesse, quando exista, é, aliás, suscetível de ser autonomamente exercitado, pois ao filho é reconhecida legitimidade própria para impugnar (alínea c) do n.º 1 do artigo 1842.º)».
O direito à identidade pessoal do próprio filho pesa, de facto, no sentido da «proteção da verdade estabelecida pelo Direito, como forma de preservação de uma certa representação do ‘eu’ [perante si mesmo e perante os outros] que não pode ficar permanentemente sob ‘condição resolutiva’» (declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 589/2007). Ao estabelecimento do prazo em questão é associada a «vantagem de tutelar os interesses do próprio filho em não ver indefinidamente pendente o risco de afastamento da presunção legal de paternidade» (Acórdão n.º 609/2007).
Em suma, a imprescritibilidade da ação de impugnação da paternidade presumida do marido não é imposta pelo direito à identidade pessoal da mãe. O interesse da proteção da família constituída (artigo 67.º da CRP) e o direito à identidade pessoal do próprio filho (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) pesam no sentido da estabilização do vínculo paterno-filial após o decurso de um certo prazo, em que é dada à mãe a oportunidade de o contrariar (impugnando a paternidade presumida e, antes disso, obstando a que constasse do registo de nascimento). Do ponto de vista daquele interesse e deste direito é até de concluir que a mãe tem o dever de esclarecer rapidamente a situação familiar em causa (referem este dever, a par da possibilidade que é dada à mãe de esclarecer rapidamente a situação familiar, Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., p. 137 e s., por referência ao prazo de três anos contados a partir do nascimento).
8. O estabelecimento de um prazo tem, porém, como consequência, uma vez expirado, que da mãe se continue a afirmar (sem possibilidade ulterior de esta repor a verdade) que o pai do filho é o marido, quando tal pode não corresponder à verdade ou não lhe corresponder mesmo, pelo que, em si mesmo, traduz-se, de facto, na afetação negativa de uma posição jurídica subjetiva que a CRP tutela no artigo 26.º, n.º 1. Não se trata, porém, de uma afetação desnecessária à salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegidos, face ao direito à identidade pessoal do próprio filho e ao interesse da proteção da família constituída (artigos 26.º, n.º 1, 67.º e 18.º, n.º 2, da CRP).
O Tribunal já se pronunciou sobre o prazo legalmente estabelecido para o pai intentar ação de impugnação da paternidade presumida (artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do CC) e entendeu que o prazo então previsto (dois anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade) e o agora vigente (três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade) «parece ser um prazo razoável e adequado à ponderação do interesse acerca do exercício do direito de impugnar e que permitirá avaliar todos os fatores que podem condicionar a decisão», um prazo «suficiente para garantir a viabilidade prática do exercício do direito de impugnar a paternidade, não o impedindo ou dificultando gravemente». E concluiu, por isso, que «não parece que a fixação de um prazo de caducidade para a impugnação de paternidade pelo pai presumido, nos termos em que se encontra previsto na referida norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, represente uma intolerável restrição (…), quando é certo que a preclusão do exercício do direito de impugnar pode justamente ter correspondido a uma opção que o interessado considerou ser em dado momento mais consentâneo com o seu interesse concreto e o seu condicionalismo de vida» (Acórdãos n.ºs 589/2007 e 446/2010).
Considerando os prazos previstos nos artigos 1817.º, n.º 1, e 1842.º, n.º 1, alínea c), do CC, o Tribunal entendeu que a afetação do direito à identidade pessoal do pai presumido não é valorativamente equiparável à que está em causa na investigação e na impugnação da paternidade por parte do filho (cf. supra ponto 3. da Fundamentação). A afetação do direito à identidade pessoal da mãe, decorrente do estabelecimento de um prazo, também não é valorativamente equiparável à que está em causa na investigação e na impugnação da paternidade por parte do filho. Mas também não é totalmente equiparável à afetação do direito à identidade pessoal do pai presumido, uma vez que, diferentemente do que sucede na ação de impugnação da paternidade presumida intentada pelo pai, na ação intentada pela mãe a autora surge na veste de terceiro relativamente ao vínculo de filiação em questão, o que faz pesar ainda mais o interesse da proteção da família constituída e o direito à identidade pessoal do próprio filho.
Além desta diferença, o prazo de três anos para o marido intentar a ação de impugnação da paternidade conta-se desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, prevendo-se um termo inicial subjetivo, ao passo que o prazo da mãe é contado a partir do nascimento do filho. Trata-se, porém, de um termo inicial que só aparentemente é objetivo e de um prazo de duração que é efetivamente superior a três anos. O prazo é contado do facto objetivo do nascimento, pelo «motivo óbvio de, com toda a probabilidade, a mãe saber do nascimento no próprio ato do nascimento» (Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, ob. cit., p. 136), mas está aqui também naturalmente pressuposto que «a mãe do menor não poderá razoavelmente ignorar a inexistência do vínculo biológico por parte do marido» (Acórdão n.º 589/2007) ou não poderá deixar de razoavelmente duvidar da existência de tal vínculo. Em qualquer caso, sempre por referência a momento anterior ao do nascimento do filho, podendo mesmo afirmar-se que anteriormente a este fato objetivo a mãe teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a não paternidade do marido. Contrariamente ao alegado pelo Ministério Público (conclusão 63.º), a fixação de um prazo de caducidade de três anos, apesar de contados do nascimento do filho, toma em consideração o momento em que a mãe tomou conhecimento de que o marido poderia não ser o pai biológico do filho. E pela “natureza das coisas”, a mãe conhece necessariamente factos indiciadores (ou conclusivos) da não paternidade do marido, por referência a momento anterior ao nascimento do filho.
O termo inicial previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 1842.º do CC, na medida em que só aparentemente é objetivo, não impede a conclusão de que também a mãe tem uma oportunidade efetiva, atenta a duração do prazo legalmente estabelecido, de impugnar a paternidade presumida do marido, obstando a que relativamente a ela se afirme o que não é verdade. Retomando as palavras do Acórdão 446/2010, há uma oportunidade efetiva que autoriza a atribuir valor significante à inércia da mãe, em sentido abdicativo do direito a impugnar, ou, no mínimo, a dirigir-lhe uma imputação de auto-responsabilidade.
É de concluir, atento o direito e o interesse constitucionalmente protegido a salvaguardar, que estamos perante a afetação de uma posição jurídica subjetiva tutelada pelo artigo 26.º, n.º 1, da CRP que não é desadequada, desnecessária nem tão-pouco desproporcionada.
9. Acresce que o regime legal de afastamento da presunção de paternidade de filho de mulher casada, constante dos artigos 1832.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CC e 119.º, n.º 1, do Código do Registo Civil, abona no sentido de haver uma oportunidade efetiva de a mãe obstar a que se afirme que o filho é do marido, sendo esta uma outra via de tutela do direito à identidade pessoal da mãe. Pode fazer a declaração do nascimento com a indicação de que o filho não é do marido, o que faz cessar a presunção de paternidade, podendo até, desde logo, ser aceite o reconhecimento voluntário da paternidade. Isto é: antes de afastar a presunção, a mãe pode evitar que a paternidade do marido conste do registo. E as últimas alterações legislativas mostram que o regime legal do afastamento daquela presunção confere à mãe um meio expedito e efetivo de obviar a que a paternidade do marido conste do registo. A cessação da presunção de paternidade deixou de depender do averbamento no registo de declaração (judicial) de que, na ocasião do nascimento, o filho não beneficiou de posse de estado relativamente a ambos os cônjuges, com a consequência de haver menção oficiosa da paternidade do marido da mãe, caso o pedido fosse indeferido ou caso não provasse que pediu a declaração (cf. artigo 1832.º, n.ºs 2 e 3, na redação anterior a 2001). Além disso, o marido deixou de ser notificado para, querendo, impugnar a paternidade constante do registo ou efetuar a perfilhação, sendo aquela omissa (cf. artigo 119.º, n.º 3 do Código do Registo Civil, na redação do Decreto-Lei n.º 273/2001, de 13 de outubro, revogado pelo Decreto-Lei n.º 324/2007, de 28 de setembro).
10. Há que concluir que não há qualquer imposição constitucional no sentido da imprescritibilidade da ação de impugnação da paternidade presumida do marido, não obstante ser de reconhecer o direito fundamental à identidade pessoal da mãe (artigo 26.º, n.º 1, da CRP). E que o estabelecimento do prazo de três anos, contados a partir do nascimento do filho, traduz-se numa afetação negativa deste direito, necessária à salvaguarda do direito à identidade pessoal do filho e ao interesse da proteção da família constituída (artigos 26.º, n.º 1, 67.º e 18.º, n.º 2, da CRP). A norma do artigo 1842.º, n.º 1, alínea b), do CC, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, segundo a qual a mãe pode intentar a ação de impugnação de paternidade dentro dos três anos posteriores ao nascimento, não viola, por isso, o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 15 de julho de 2013. – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro