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Proc. nº 301/02 TC – 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A, identificado nos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, do acórdão da Relação de Lisboa de fls. 238 e segs. que julgou não provada e improcedente a oposição de suspeição deduzida pelo recorrente contra a Juíza de Direito Drª B.
No pertinente requerimento de interposição de recurso, o recorrente pede a apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 127º nº 1 do CPC que considera violadora dos artigos 2º e 20º da Constituição da República Portuguesa e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Admitido o recurso foram os autos remetidos a este Tribunal onde o relator exarou despacho no sentido de o recorrente se pronunciar querendo sobre o facto de a peça processual por ele indicada em que suscitara a questão de constitucionalidade ter sido mandada desentranhar pelo acórdão recorrido, devendo ainda indicar outra ou outras peças processuais onde essa mesma questão tivesse sido suscitada.
O recorrente ofereceu a resposta de fls. 398 e segs e os autos seguiram para alegações onde constam as seguintes conclusões:
'1 – A norma cuja inconstitucionalidade foi oportunamente arguida é a do artº 127º do CPC que, tal como foi interpretada e aplicada na decisão recorrida, contraria frontalmente os artºs 2º e 20º da CRP e artº 6º da CEDH reconhecida explicitamente na nossa Ordem Jurídica. Com efeito,
2 – As concepções que estão por detrás da formulação de tal disposição – que provêm da versão originária do CPC de 1939 – para além de eivarem de um hoje inaceitável hiperformalismo, desvalorizam e ignoram por completo, na lógica de uma concepção autocrática do Estado e da sociedade, os interesses, as sensibilidades e opiniões dos cidadãos em geral.
3 – E para além disso consagram uma visão estritamente subjectiva de imparcialidade, quando a concepção do Estado de direito democrático e o respeito consequente pelos direitos humanos impõem antes um conceito eminentemente de imparcialidade objectiva que afaste todas as dúvidas ou reservas.
4 – Tal conceito é aliás o único capaz de preservar a confiança que, numa sociedade democrática como a nossa, os Tribunais têm que oferecer aos cidadãos.
5 – Não se torna assim necessário para que se verifique a suspeição aduzida que tenha que existir inimizade (muito menos uma grave inimizade, o que aliás consubstancia um autêntico pleonasmo) entre o Juiz e uma das partes, bastando que aos olhos do público a situação existente seja como afectadora de um julgamento objectivo e imparcial.
6 – É hoje absolutamente inegável a importância que passou a ser atribuída não apenas pela jurisprudência do TEDH mas também pela deste Tribunal Constitucional à tutela das aparências e à sensibilidade acrescida dos cidadãos relativamente às garantias de uma boa Justiça.
7 – Com a particular atenção de tal perspectiva na apreciação pelo respeito pelo princípio do carácter equitativo do processo, dentro do célebre aforismo 'Justice must not only be done; it must be seen to be done'.
8 – Tal princípio será, porém, irremediavelmente lesado acaso a situação existente (designadamente pelo estado de conflito ou inimizade do julgador para com o Advogado de uma das partes) surja aos olhos do público como significando que o Tribunal não estará em condições de agir imparcialmente e, logo, que aquela parte não poderá defender adequadamente os seus interesses numa posição não inferior à da outra. Ora.
9 – Essa é precisamente a situação fáctica existente na questão ora sub judice. Deste modo,
10 – A norma do já citado artº 127º do CPC, a ser interpretada e aplicada (como o foi na decisão recorrida) no sentido de que uma tal situação de conflito ou inimizade entre o Juiz e o Advogado de outra nunca poderia consubstanciar fundamento da suspeição, violenta por completo o também já referenciado artº 6º da CEDH (para além dos artºs 10º da DUDH e 14º do PIRDCP) pela Constituição reconhecido e colocado em vigor na Ordem Jurídica.
11 – Bem como os artºs 2º e 20º da CRP, ao consubstanciar uma concepção autocrática da sociedade e do Estado, desvalorizadora dos interesse e opiniões dos cidadãos e impeditiva do direito à Justiça completa.'
A C, recorrida nos autos, contra-alegou suscitando duas questões, a saber:
- Não suscitação pelo recorrente da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, uma vez que ela consta apenas de peça mandada desentranhar;
- Não constituir a interpretação dada à norma ínsita no artigo 127º nº 1 alínea g) do CPC ratio decidendi, mas antes um mero obter dictum, o que o Tribunal da Relação de Lisboa 'deixa bem claro, ao referir que a factualidade assente revela somente que havia apenas algumas divergências entre a Exma Juíza recusada e o Advogado do autor sobre a forma como ele conduzia a inquirição e as instancias das testemunhas e, bem assim, ao concluir que essa questão não constitui divergência grave e extremada entre a Juíza e o Advogado do Autor'.
Notificado para responder a esta última questão, o recorrente sustenta que suscitou a questão de constitucionalidade no único momento em que o podia fazer (resposta á oposição da Juíza recusada) e que a interpretação questionada foi o fundamento da decisão.
Cumpre decidir.
A questão de constitucionalidade que o recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal reporta-se à norma do artigo 127º nº 1 do CPC (mais concretamente da alínea g) deste artigo e número) interpretada em termos de o fundamento de suspeição nela previsto abranger apenas 'inimizade grave' entre o Juíz e a parte e não também a que exista entre o Juiz e o advogado da parte – é este o sentido que se extrai da referida 'resposta' e das alegações produzidas pelo recorrente.
E é também este sentido que a recorrida entende não constituir ratio decidendi, mas mero obter dictum, no acórdão recorrido.
Importa, pois, apreciar esta questão prévia, cuja procedência prejudicará a apreciação da primeira acima enunciada.
Vejamos.
2 - O acórdão recorrido foi produzido em incidente de suspeição deduzido contra a Juiza Drª B pelo ora recorrente.
No pedido de suspeição o Autor, ora recorrente, seriou um conjunto de factos que fundamentavam o pedido, alegando, entre o mais que:
'A conduta das magistradas em causa [a suspeição foi também deduzida contra a Juíza Drª D] (...) tem vindo a assumir uma cada vez mais mal disfarçada animosidade e mesmo inimizade(...)'
'(...) o que se seguiu pôs a nu a completa animosidade e inimizade daquelas para com o requerente (e também o seu mandatário) '
'(...) ficou absoluta, definitiva e irreversivelmente patente a completa inimizade da Exmªs Juízas em causa para como o A e também contra o seu mandatário(...)'
'(...) as duas magistradas em questão, depois de toda a sua conduta anterior, adoptaram em definitivo uma posição de completa e gravíssima hostilidade e de inimizade para com ele [requerente](...)'
'Tudo isto consubstanciando uma cada vez mais mal disfarçada e francamente hostil atitude para com o A'
'(...)praticamente todos quantos na sala de audiência assistiram ao julgamento consideraram e comentaram ter-se tornado absolutamente óbvia essa mesma grave e completa inimizade'
'(...) passar a assumir uma postura de crescente e cada vez mais mal escondida animosidade e inimizade para com o mesmo A'.
Realizadas as diligências instrutórias, foi proferido o acórdão recorrido que indeferiu a pretendida suspeição.
Na aplicação do direito, o aresto começa por salientar que o requerente não indicara o preciso fundamento do seu pedido; isso não obsta a que averigue o fundamento legal em que os factos comprovados se integram, o que conduz à ponderação do disposto no artigo 127º nº 1 do CPC.
Nesta indagação o acórdão detém-se, em especial, no fundamento constante da primeira parte da alínea g) daquele artigo e número: 'inimizade grave' entre o juiz e a parte.
Nos trechos que mais importam ao caso, o aresto adere ao entendimento acolhido pelo Prof. José Alberto dos Reis no sentido de que 'não podem ser tomados em consideração os sentimentos do juiz para com os parentes da parte, por mais próximo que seja o grau de parentesco, nem para com os advogado ou solicitadores das partes' (sublinhado nosso) e 'nem mesmo pode sê-lo a inimizade grave ou a grande intimidade entre a mulher do juiz e uma das partes ou entre o juiz e o cônjuge de uma das partes', acrescentando 'Por maioria de razão este entendimento é válido para o caso de haver más relações entre o juiz e o advogado de alguma das partes (...)'.
Neste enquadramento o acórdão conclui que a matéria factual dada por assente 'não prova que a Exma Juíza recusada tenha qualquer inimizade para como o Autor e ora Recusante e, ainda menos, demonstra que ela seja grave'.
Analisando ainda outros factos pertinentes ao relacionamento das Exmas Juízas e o Advogado do recusante, escreveu-se depois:
'Esta matéria de facto, ressalvado o devido respeito pela douta opinião do Recusante ou é inócua (como a demais que se comprovou) ou revela somente que havia algumas divergências entre a Exma Juíza ora recusada e o Exmo Advogado constituído pelo Recusante, sobre a forma como este conduzia as inquirições e as instâncias das testemunhas e que este tinha reparos sobre o início tardio das sessões de julgamento e a forma como eram elaboradas as actas, mas que, a partir do conhecimento da exposição elaborada por este Exmo Advogado, dirigida ao Conselho Superior da Magistratura, a Exma Juiza Recusada tomou providências para que as actas passassem a espelhar com exactidão as horas de início e fim dos trabalhos.
Mas, repete-se, só se demonstrou que estas divergências, que eram sobre questões jurídicas e processuais, se verificaram em relação ao Exmo Advogado do Autor e não contra este, pessoalmente.' (sublinhados nossos)
E mais adiante:
'Pensamos, porém e é o que resulta comprovado, que a situação não tenha atingido um elevado nível de tensão entre a Exma Juíza recusada e o Exmo Advogado e que a deterioração do ambiente não tenha tido especial gravidade
(...)
E, uma vez mais, sublinha-se que a questão descrita, que não se tem como divergência grave e extremada sobre a condução da audiência, existia entre a Exma Juíza e o Exmo Advogado (...)' (sublinhados nossos)
Do que se deixa evidenciado, resulta que o acórdão recorrido interpretou o disposto no artigo 127º nº 1 alínea g) do CPC no sentido de que a
'inimizade grave' aí prevista não abrangia o relacionamento entre o juiz e o advogado da parte, o que, no caso, não se verificando qualquer inimizade grave entre o juiz e a parte, era suficiente para julgar improcedente a oposição de suspeição.
Mas o acórdão vai mais longe na ponderação dos factos provados, não deixando de emitir um juízo sobre o que aqueles revelariam quanto ao relacionamento entre a Juíza recusada e o Advogado do recusante. E esse juízo é claro no sentido de que as divergências se situavam no âmbito das questões jurídicas e processuais e não eram graves e extremadas; ou seja, noutras palavras, não revelavam qualquer inimizade grave.
É, aliás, isto que a recorrida alega, muito embora com um enfoque que não é correcto.
Com efeito, não pode dizer-se que a interpretação questionada tenha sido alheia à decisão impugnada, a ponto de se considerar como um mero obter dictum – com a referida interpretação, o acórdão exclui desde logo que os factos respeitantes ao relacionamento entre a Juíza recusada e o Advogado do recusante possam integrar o fundamento estabelecido no artigo 127º nº 1 alínea g) do CPC.
Simplesmente, não se dispensando de caracterizar esses mesmos factos, o acórdão acaba por não reconhecer qualquer indício de inimizade grave entre a Juíza recusada e o Advogado do recusante.
Ora, neste contexto, um juízo de inconstitucionalidade que este Tribunal viesse eventualmente a formular sobre aquela norma, interpretada em termos de a 'inimizade grave' não abranger o relacionamento entre o juiz e o advogado da parte, não teria qualquer incidência na decisão recorrida, uma vez que sempre se manteria o referido juízo feito pela Relação de Lisboa sobre os factos dados como provados (ausência de inimizade entre a Juíza recusada e o Advogado do recusante) que o Tribunal Constitucional não pode sindicar – tudo contrariando a instrumentalidade do recurso de constitucionalidade em fiscalização concreta.
O recurso carece, pois, de utilidade.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso por inutilidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 Ucs, a cobrar se e quando se verificar a situação prevista no artigo 54º nº 1 da Lei nº
30-E/2000 Lisboa, 6 de Dezembro de 2002 Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa