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Processo n.º 390/00
2ª SecçãoRelator – Cons. Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 29 de Outubro de 1998, A, melhor identificado nos autos, interpôs, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, acção emergente de contrato individual de trabalho, com forma de processo ordinário, contra a B., pedindo a sua integração na categoria profissional de Técnico Operacional de Telecomunicações a partir da entrada em vigor do Acordo de Empresa dos CTT, em 1992 – em vez de na categoria de Técnico de Telecomunicações de Interiores e Exteriores, em que fora integrado com efeitos a partir de 29 de Dezembro de 1993. Defendendo-se, designadamente, por excepção, aquela empresa alegou que anteriormente (em 25 de Março de 1998) o autor já a demandara (na 2ª Secção do
4º Juízo do mesmo Tribunal) para ser integrado na categoria de Mecânico de Material Telefónico (desde a data em que a mesma lhe tinha sido retirada e na categoria de Electrotécnico desde a entrada em vigor do 1º Acordo de Empresa da B em 1995), pelo que, face ao n.º 1 do artigo 30º do Código de Processo de Trabalho então vigente, 'o A, não pode formular agora um pedido que podia e devia ter formulado na primeira acção que intentou.' Por sentença de 22 de Fevereiro de 1999, da 3ª Secção do 4º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa, foi considerada procedente a excepção deduzida, uma vez que, não havendo 'qualquer incompatibilidade do pedido da primeira acção com o pedido da segunda acção', o n.º 3 do artigo 30º do Código de Processo de Trabalho impedia o autor de 'invocar em juízo os direitos que com a presente acção visa obter'. Inconformado, recorreu este para o Tribunal da Relação de Lisboa, invocando, essencialmente, a incompatibilidade dos pedidos e a existência de diferentes causas de pedir, mas aquele Tribunal, por Acórdão de 6 de Outubro de 1999, negou provimento ao recurso considerando, designadamente, que:
'Embora a cumulação inicial obrigatória de pedidos se nos afigure de um rigor bastante excessivo é incontroverso que com esta medida legal e com a faculdade de cumulação sucessiva de pedidos, no mesmo processo, se procura dar uma mais integral satisfação aos apelos de boa ordem social. É altamente inconveniente para a paz social que o trabalhador, que tem vários pedidos a formular à empresa, os vá deduzindo sucessivamente, em acções sucessivas.' Ainda insatisfeito, o autor levou recurso ao Supremo Tribunal de Justiça invocando, designadamente, que '[o] direito do A. na cumulação sucessiva de pedidos e de causas de pedir não estava precludido pois à data em que desistiu do pedido na 1ª acção, ainda não tinha ocorrido a audiência de julgamento', e que 'em última análise, a norma do art. 30º, n.º 1 do CPT sofre de inconstitucionalidade por violar o disposto no art. 20º da CRP.' No seu parecer naquele Tribunal, o Ministério Público, invocando o Acórdão n.º
56/85 do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República [DR], II Série de de 28 de Maio de 1985), considerou que:
'a consequência prevista no n.º 3 do citado artigo 30º para a falta da cumulação inicial de pedidos imposta pelo seu n.º 1 inviabiliza a efectivação dos direitos do autor que não foram objecto daquela cumulação, apesar de tais direitos continuarem a existir na sua esfera jurídica. Em nome da paz social, da economia processual e da harmonia de decisões, são sacrificados os direitos do autor
(...) por isso, não pode deixar de se considerar que os ns. 1 e 3 do citado artigo 30º, estabelecem uma restrição ilegítima ao direito de acesso aos tribunais, uma vez que essa restrição não obedece ao princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, n.º 2, da Constituição.' Por Acórdão de 11 de Maio de 2000, a Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, considerando: por um lado, que a regra do artigo 30º do Código de Processo de Trabalho de 1981 'não restringe os direitos atribuídos, no caso concreto, ao A., por forma a neutralizá-los', já que este pode 'fazer valer os seus direitos lançando mão da respectiva acção, só que tem de formular os vários pedidos na mesma acção. E, acrescente-se que o facto de o A. ficar impedido de formular novo pedido em acção diferente, nada o impede de fazer valer por via de excepção.'; e, por outro lado, que o disposto no artigo
20º da Constituição 'não impede o legislador de ampla margem de manobra na concreta conformação dos pressupostos do direito de acesso aos tribunais' e 'em nada violam aquele art. 20º da Constituição, pois não impedem que exista recurso aos tribunais para o trabalhador fazer valer os seus direitos, limitando-se, no caso concreto, a estabelecer ‘regras’ para o trabalhador fazer valer os seus direitos.' Ainda inconformado, trouxe o autor recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, para ver apreciada a conformidade do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo
30º do Código de Processo de Trabalho de 1981 com o disposto nos artigos 18º e
20º da Constituição. Nas alegações que apresentou, concluiu desta forma:
'1. Os n.ºs 1 e 3 do art. 30º do Código de Processo do Trabalho de 1981 consagram o princípio da obrigatoriedade de cumulação inicial de pedidos justificado com o entendimento de que, desse modo, se garantia a pacificação social.
2. Ora tais disposições legais estabelecem uma restrição ilegítima ao direito de acesso aos tribunais.
3. Tal situação não observa o princípio da proporcionalidade consagrado no art.
18º, n.º 2 da Constituição.
4. Assim, verifica-se que as mesmas disposições legais (ns. 1 e 3 do citado art.
30 do CPT) limitam o acesso ao direito e aos Tribunais, violando o art. 20º n.º
1 da Constituição.
5. Deverá assim ser declarada a inconstitucionalidade dos n.ºs 1 e 3 do art. 30º do Código de Processo do Trabalho de 1981 com as consequência legais.' Não foram apresentadas contra-alegações. II. Fundamentos
É a seguinte a redacção das normas impugnadas do Código de Processo do Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 272-A/81, de 30 de Setembro:
'Artigo 30º
(Cumulação inicial de pedidos)
1. O autor deve cumular na petição inicial todos os pedidos que até à data da propositura da acção possa deduzir contra o réu, para os quais o tribunal seja competente em razão da matéria, desde que lhes corresponda a mesma espécie de processo.
2. (...)
3. Não podem ser invocados em juízo direitos que não tenham sido deduzidos nos termos dos números anteriores, salvo se a violação desses direitos constitui delito definitivamente julgado, se resultarem de acidente de trabalho ou doença profissional ou se o juiz considerar justificada a sua não inclusão na petição inicial.' Como se escreveu no Acórdão n.º 210/90, publicado no DR, II Série, de 22 de Janeiro de 1991 (e se repetiu no Acórdão n. 248/90, publicado no DR, II Série, de 23 de Janeiro de 1991), em processos de fiscalização concreta de constitucionalidade é difícil 'dissociar-se a norma posta em crise da própria relação jurídica substancial a que foi aplicada, nem tão pouco das circunstâncias objectivas em que essa aplicação se verificou. E isto é assim, pois que é a partir da norma concretamente aplicada que se há-de formar o juízo deste Tribunal sobre a validade ou invalidade constitucional da respectiva norma.' Ora, transpondo para o contexto normativo ora em questão, nota-se que, ainda que se admita que a cumulação obrigatória de pedidos em processo laboral constitui
'uma das especialidades do direito processual laboral relativamente ao direito processual civil' – como se admitiu no Acórdão n.º 51/88, publicado no DR, II Série, de 22 de Agosto de 1988, para a obrigação de o requerimento de interposição de recurso conter logo as alegações (cfr. também o Acórdão n.º
266/93, publicado no DR, II Série, de 10 de Agosto de 1993) –, sendo 'uma norma específica do direito processual laboral que em nada afecta os direitos de quem quer ter acesso à justiça', pode deixar de ser assim em face do 'enquadramento material' que foi dado à norma no caso em que foi aplicada. E no caso dos autos há, pelo menos, duas especificidades na interpretação e aplicação das normas dos ns. 1 e 3 do artigo 30º do Código de Processo do Trabalho de 1981: em primeiro lugar, os pedidos em causa eram, se não incompatíveis, como pretendeu o autor, ao menos alternativos, pelo que, nesses termos, deferido que fosse um, o outro ficaria prejudicado, não colhendo, nesta medida, as razões substantivas que foram invocadas para justificar a regra da cumulação obrigatória de pedidos; em segundo lugar, o autor desistiu do primeiro pedido formulado antes de interpor o segundo, situação, esta, que também é alheia às razões justificativas da obrigatoriedade de cumulação de pedidos, tal como foram expostas nos autos. Assim, em face da particular configuração do presente caso, o que está em causa
é, não apenas a conformidade constitucional da obrigatoriedade de cumulação de pedidos em processo laboral, tout court, mas sim a da interpretação normativa dos n.ºs 1 e 3 do artigo 30º do Código de Processo do Trabalho de 1981, segundo a qual este obsta à apreciação de um pedido por anteriormente ter sido formulado outro alternativo, de que se desistiu. Ou, por outras palavras: estão em causa os preceitos conjugados dos n.ºs 1 e 3 do artigo 30º do Código de Processo do Trabalho de 1981, na interpretação segundo a qual não pode ser invocado em juízo o direito que anteriormente tivesse sido invocado, sob outra forma, em diferente acção, da qual o autor tenha desistido. No já referido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que notou o 'rigor bastante excessivo' da norma da obrigatoriedade de cumulação de pedidos, justificou-se, de forma satisfatória, face às exigências constitucionais de proporcionalidade na limitação do direito de acesso aos tribunais, a regra da cumulação obrigatória:
'- pretende-se (...) que a intervenção do tribunal, quando ocorrer, faça cessar todas as causas de tensão social entre duas entidades, sejam elas quais forem, deixando a situação jurídica recíproca e definitivamente esclarecida.'
'Tais medidas implicam, por outro lado, uma solução mais rápida dos
conflitos que se levantem entre patrões e trabalhadores, o que se traduz na
eliminação ou, pelo menos, no afrouxamento das tensões sociais entre uns e
outros.'
- 'Além disso, o legislador pretende com a mesma favorecer mais os interesses da justiça, na medida em que permite ao julgador abarcar melhor todas as causas de desassossego social latentes no ambiente do trabalho e encontrar para elas a solução mais justa e equitativa.'
- 'Finalmente, com a cumulação inicial e com a cumulação sucessiva de pedidos e de causas de pedir, o legislador, atendendo a que, em princípio, todos os pedidos têm o contrato de trabalho como elemento comum, pretende evitar a possibilidade de decisões desarmónicas, criando, em seu lugar, a uniformidade de julgados e facilitando ainda a economia e a celeridade processuais pela concentração dos diversos actos e diligências.' Nenhuma destas razões vale, porém, para uma situação como a do caso dos autos, em que um pedido dá lugar a outro, mormente quando, como se escreveu no acórdão recorrido, o autor 'sabia que tinha direito a uma categoria superior à que a R. lhe atribuía, (...) não estando seguro de qual a categoria a que tinha direito'
– por isso justamente pedindo inicialmente que lhe fosse reconhecida uma, e depois, antes da audiência de discussão e julgamento, desistindo desse pedido e formulando outro. Para retomar uma distinção formulada logo no Acórdão n.º 56/85, publicado no DR, II Série, de 28 de Maio de 1985: 'há uma profunda diferença entre meros requisitos formais estabelecidos em vista ao exercício de um direito e limitações substanciais que interferem com o próprio direito, com o seu alcance ou com o âmbito da protecção que esse direito visa estabelecer.' Afigura-se, pois, que tal como foi interpretada e aplicada no caso, a norma da obrigatoriedade de cumulação de pedidos, valendo para um pedido inicial de que se desistiu e para um outro que tomou o lugar daquele, impõe uma limitação substancial à garantia de acesso aos tribunais, consagrada no artigo 20º, n.º 1 da Constituição, com o resultado de impedir que quer um quer outro pedido venha a ser exercido. Ora – como no último aresto citado se acrescentou –, nos termos do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, cada vez que uma limitação interfere com a própria substância de um direito, restringindo-o, necessário se torna, não só encontrar na própria Constituição fundamentação para a limitação do direito em apreço, como que esta se limite 'ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' (não podendo, por outro lado, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 'diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais'). É justamente este apoio para tal limitação ao direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º n.º 1 da Constituição que, quanto à interpretação normativa em apreço, não se vislumbra, pelo que há que concluir pela sua desconformidade constitucional. III. Decisão Assim, pelos fundamentos expostos, decide-se: a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 18º, n.º 2 e 20º, n.º 1 da Constituição, as disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 3 do artigo 30º do Código de Processo do Trabalho de 1981, na interpretação segundo a qual não pode ser invocado em juízo direito que não tenha sido deduzido, como pedido alternativo, em anterior acção da qual o autor tenha desistido antes da audiência de discussão e julgamento; b) Em consequência, determinar a reforma da decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita.
Lisboa, 29 de Janeiro de 2003. Paulo Mota Pinto Bravo Serra (votei o acórdão, embora com algumas dúvidas que, a benefício de melhor estudo, não posso, no momento, expressar) Maria Fernanda Palma Mário Torres José Manuel Cardoso da Costa (com declaração idêntica à do Exmº Conselheiro Bravo Serra).