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Proc. n.º 708/02 Acórdão nº 55/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 306 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A e outros, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
8. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 7.), preceito que determina caber recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma durante o processo significa, nos termos do n.º 2 do artigo 72º da mesma Lei, suscitar essa questão de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Não obstante a afirmação contrária dos recorrentes no requerimento de interposição do presente recurso (supra, 7.), é evidente que a questão de inconstitucionalidade que ora pretendem ver apreciada – a da norma do artigo
491º do Código Civil – não foi suscitada durante o processo. E não foi suscitada durante o processo, porque nas suas alegações de revista, maxime nas conclusões 4ª, 5ª e 19ª (supra, 5.), limitaram-se os recorrentes a imputar a inconstitucionalidade à própria decisão então recorrida, não questionando a inconstitucionalidade de qualquer norma nela aplicada. Analisando as restantes peças processuais por si apresentadas (supra, 1. e 3.), verifica-se que, também nelas, não suscitaram os recorrentes qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (não suscitaram, aliás, qualquer questão de inconstitucionalidade). Não tendo os recorrentes suscitado, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 491º do Código Civil – só o tendo feito no requerimento de interposição do presente recurso (o que, nos termos do já referido artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, é manifestamente extemporâneo) –, conclui-se não estar preenchido um dos pressupostos processuais típicos do recurso interposto, mencionado nos artigos 70º, n.º 1, alínea b) e
72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional. Não estando verificado um dos pressupostos processuais do presente recurso, não pode, nos termos gerais, conhecer-se do respectivo objecto.
[...].'
2. Desta decisão sumária reclamaram A e outros para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 319 e seguintes), aduzindo, em síntese, os seguintes argumentos: a. Contrariamente ao que parece intuir-se da decisão sumária reclamada, alegar a inconstitucionalidade de uma decisão é assacar o vício da inconstitucionalidade à norma que, numa determinada interpretação, nela foi aplicada (no caso concreto, a norma do artigo 491º do Código Civil), atendendo a que toda a lei tem de ser interpretada (artigos 4º e 5º); b. Quando os recorrentes alegaram, no recurso de revista, a inconstitucionalidade da decisão, referiam-se obviamente à inconstitucionalidade da interpretação do artigo 491º do Código Civil feita pelas instâncias, como decorre da leitura do segundo parágrafo das alegações e das conclusões 4ª, 5ª e
19ª (artigos 6º a 10º); c. O tribunal recorrido só decidiu conforme decidiu, porque interpretou a norma do artigo 491º do Código Civil no sentido de que esta designadamente consente aos pais, por negócio jurídico, transmitir o direito e o dever de educação dos filhos para outrem, sendo substituível a acção dos pais em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação (artigo 11º).
3. Na resposta à reclamação deduzida (fls. 326 e seguinte), os recorridos B e mulher sustentaram, entre o mais, que os recorrentes não haviam suscitado, nas alegações de revista, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, bem como que, por esse motivo, o Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre qualquer inconstitucionalidade normativa. Terminaram, pedindo que a reclamação deduzida fosse julgada improcedente.
Cumpre apreciar.
II
4. A decisão de não conhecimento do objecto do recurso, agora reclamada, fundamentou-se na circunstância de os então recorrentes não terem suscitado, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade que pretendem ver apreciada, uma vez que nas suas alegações de revista, maxime nas conclusões 4ª,
5ª e 19ª, se limitaram a imputar a inconstitucionalidade à própria decisão então recorrida, não questionando a inconstitucionalidade de qualquer norma nela aplicada (cfr. n.º 8 da decisão sumária reclamada, transcrito supra, 1.).
Pode ler-se nas alegações apresentadas pelos então recorrentes perante o Supremo Tribunal de Justiça:
'[...]
4ª- A decisão recorrida, assim com[o] a da primeira instância, traduz-se na prática em liberar a mãe do menor do dever de educação e manutenção dos filhos consagrado no art. 36° da Constituição da República e contraria ainda o disposto no art. 68° da mesma Lei Fundamental, onde se consigna que é «insubstituível» a acção dos pais e das mães «em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação (...)».
5ª- Acresce que o exercício do poder paternal e o respectivo conteúdo fixado no art. 1878° do Código Civil não pode ser objecto de negócio jurídico, visto que se trata de direitos irrenunciáveis (art. 1882° do citado diploma legal), característica esta que também resulta dos n.ºs 5 e 6 do citado art. 36° da Constituição da República, na medida em que consagra a regra de que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e que, só mediante decisão judicial, poderão estes ser separados daqueles.
[...]
19ª- Em suma, quer a sentença da primeira instância, quer o douto Acórdão recorrido decidiram contra o direito aplicável, tendo violado, nomeadamente, os arts. 334°, 483°, 487°, n° 2, 491º, 1878°, 1882° e 1904° do Código Civil, os arts. 494°, alínea e), 495° e 668°, n° 1, alínea c), do C.P.C. e bem assim os arts. 36°, n.ºs 5 e 6, e 68°, n° 1, da Constituição da República.'
Reafirma-se que nas expressões utilizadas não pode ver-se a invocação de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa: a censura de desconformidade em relação à Constituição é directamente dirigida às decisões proferidas no processo e não às normas em que tais decisões se fundamentam.
5. Na reclamação agora apresentada, os reclamantes pretendem demonstrar que imputar o vício da inconstitucionalidade a uma decisão judicial equivale a imputar o vício da inconstitucionalidade à norma que, na sequência de certo processo interpretativo, nela foi aplicada. Convictos dessa equivalência, que se lhes afigura óbvia decorrência do princípio de que toda a lei deve ser interpretada, não procuraram os reclamantes demonstrar que, durante o processo, suscitaram a questão da inconstitucionalidade da norma que se extrai do artigo 491º do Código Civil, numa certa interpretação. Com efeito, os ora reclamantes limitam-se a assinalar passagens das alegações de revista nas quais se insurgiram contra a decisão (então) recorrida: é o caso da passagem em que referiram não ter o acórdão recorrido feito uma correcta aplicação do artigo 491º do Código Civil (artigo 7º da reclamação), da passagem em que referiram ter a decisão recorrida contrariado certos preceitos fundamentais (artigo 8º da reclamação), da passagem em que propugnaram uma certa interpretação para o artigo 491º do Código Civil (artigo 9º da reclamação) e finalmente da passagem em que estabeleceram 'uma relação directa entre a interpretação e aplicação que as instâncias fizeram de vários preceitos legais, entre os quais mencionam expressamente o art. 491º do Código Civil, naturalmente com o sentido e alcance plasmados na decisão revidenda, e os preceitos constitucionais que, no entender dos recorrentes, aquela interpretação não respeitou [...]' (artigo 10º da reclamação).
6. É, porém, desde logo patente que os artigos 70º, n.º 1, alínea b) e
72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional não permitem que se interprete a referência a 'norma' deles constante no sentido de 'decisão judicial'. Dito de outro modo, tais preceitos não permitem que se entenda que os ora reclamantes suscitaram uma questão de inconstitucionalidade durante o processo quando se limitaram a imputar a inconstitucionalidade a uma decisão. E isto porque as citadas disposições legais se referem à 'decisão judicial' enquanto acto de que se recorre e à 'norma' enquanto realidade cuja conformidade constitucional o Tribunal Constitucional vai apreciar. Sendo realidades diversas para a lei, nunca poderia admitir-se a equivalência entre ambas, que os ora reclamantes sustentam. Conclui-se portanto que os ora reclamantes não contrariaram minimamente as razões em que assentou a decisão sumária reclamada – antes se tendo limitado a tentar persuadir este Tribunal de uma equivalência ou inferência que, não só não
é óbvia (como aliás decorre da circunstância de o tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 491º do Código Civil), como também ofende o próprio texto da lei. Improcede assim a presente reclamação.
III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido. Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Pamplona Oliveira Luís Nunes de Almeida