Imprimir acórdão
Processo nº 562/2002
2ª Secção Rel. Cons.ª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, em que figuram como recorrente A e como recorrido o Ministério Público, o recorrente submeteu à apreciação do Tribunal Constitucional as normas dos artigos 374º, nº 2 do Código de Processo Penal,
344º, nº 3, alínea a), e 125º do mesmo diploma, quando interpretadas no 'sentido de se conferir valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido em prejuízo de outro, independentemente da existência de outros elementos probatórios que coadjuvem a relação de imputação porque vem condenado um arguido e que o sujeitem contra-prova', e ainda dos artigos 433º, 410º, nº 2, e 430º do mesmo Código, 'por infringirem o duplo grau de jurisdição'.
A Relatora proferiu Decisão Sumária, ao abrigo do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Quanto à questão relativa à conformidade à Constituição do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, considerou-se o seguinte na Decisão Sumária: Ora, no caso sub judicio, o recorrente pretende que a decisão recorrida interpretou o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal no sentido de não ser exigível o exame crítico das provas. Para além de alegadamente inconstitucional, por contrariar a exigência de fundamentação das decisões judiciais (que, efectivamente, se pode ter como instrumental do direito ao recurso), uma tal interpretação seria manifestamente contra legem visto que a norma infraconstitucional em causa exige expressamente, pelo contrário, o exame crítico das provas. Porém, o tribunal colectivo de primeira instância não procedeu à interpretação normativa do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal que lhe foi imputada pelo recorrente. Na verdade, esse tribunal – tal como o Tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça – entendeu ser necessário o exame crítico das provas e sustentou tê-lo feito, dando justamente cumprimento ao artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Por conseguinte, não está em causa a alegada interpretação normativa inconstitucional do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Aliás, o recorrente acabou por o reconhecer durante o processo, ao invocar uma ilegalidade do acórdão de primeira instância no âmbito da motivação do seu recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quando sustentou que não teria havido o exame crítico das provas e teria sido violado o artigo 374º do Código de Processo Penal, para além dos artigos 32º, nº 1, e 205º, nº 1, da Constituição [cf. supra o nº 4, alínea d)]. Deste modo, a questão que o recorrente suscitou perante o Supremo Tribunal de Justiça – e a única que verdadeiramente poderia suscitar – foi a de saber se o acórdão condenatório não violou, directamente, a lei processual penal e a Constituição, por pretensamente não ter efectuado o exame crítico das provas. Mas essa já não é uma questão de constitucionalidade normativa que este Tribunal possa apreciar.
Quanto à inconstitucionalidade dos artigos 344º, nº 3, alínea a), e
125º do Código de Processo Penal, entendeu-se o seguinte na mesma Decisão:
Em segundo lugar, o recorrente suscita a inconstitucionalidade dos artigos
344º, nº 3, alínea a), e 125º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de se conferir valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido em prejuízo de outro, independentemente da existência de outros elementos probatórios. Tal interpretação violaria o disposto no artigo 32º, nº
5, da Constituição, sendo, pois, materialmente inconstitucional.
O recorrente não suscitou durante o processo a inconstitucionalidade desta disposição legal. Arguiu, isso sim, a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 345º, nº 1, do Código de Processo Penal, que teria conduzido o tribunal colectivo de primeira instância ao mesmo resultado prático – valorar as declarações dos co-arguidos como 'elemento essencial' de prova [cfr. supra o nº 2, alínea a)].
E suscitou a questão de inconstitucionalidade do artigo 345º, nº 1, no âmbito das motivações dos recursos perante o Tribunal da Relação de Lisboa e perante o Supremo Tribunal de Justiça, sucessivamente. Acerca do artigo 344º, nº
3, alínea a), do Código de Processo Penal, apenas fez considerações de cunho teórico, pronunciando-se sobre o valor da confissão em Processo Penal, no âmbito da resposta ao parecer apresentado pelo Ministério Público junto ao Tribunal da Relação de Lisboa e da motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Mas jamais arguiu a inconstitucionalidade de qualquer interpretação normativa do artigo 344º, nº 3, alínea a), ou sustentou sequer que tal norma tenha sido aplicada no acórdão condenatório.
Ora, na verdade, o artigo 344º, nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal, foi aplicado pelo tribunal de primeira instância na medida em que, havendo co-arguidos e não se verificando a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles, se não seguiram os termos do nº 2 do mesmo artigo – isto é, não se considerou ter havido renúncia à produção de prova, passagem de imediato às alegações orais, determinação da sanção aplicável e redução da taxa de justiça em metade. Mas de modo nenhum decorre do texto do acórdão do tribunal de primeira instância que aquela norma tenha sido interpretada no sentido de dispensar outras provas quando um dos arguidos presta declarações em relação a outro. Por isso, não foi feita a interpretação normativa que o ora recorrente reputa de inconstitucional – nem em relação ao artigo 344º, nº 3, alínea a), nem quanto ao artigo 345º, nem a propósito do artigo 125º do Código de Processo Penal (o artigo 345º, nº 1, recorde-se, limita-se a permitir ao arguido prestar declarações, consagrando, simultaneamente, o direito ao silêncio; mais remotamente ainda, o artigo 125º consagra o princípio da legalidade da prova, determinando que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei).
Deste modo, o Tribunal Constitucional não pode apreciar a questão da inconstitucionalidade da alegada interpretação normativa dos artigos 344º, nº 3, alínea a), e 125º do Código de Processo Penal. Tal questão, quando referida a estas normas legais, não foi suscitada durante o processo e aquele interpretação normativa, mesmo que referida ao artigo 345º, nº 1, do Código de Processo Penal, não foi feita no acórdão condenatório.
Por último, quanto à inconstitucionalidade dos artigos 433º, 410º, nº 2, e 430º do Código de Processo Penal, afirmou-se o seguinte na Decisão Sumária: Finalmente, o recorrente suscita a questão da inconstitucionalidade material dos artigos 433º, 410º, nº 2, e 430º, do Código de Processo Penal, por infringirem a exigência de duplo grau de jurisdição consagrada no artigo 32º, nº 1, da Constituição. Ainda antes da Revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei nº 59/98, de
25 de Agosto, o Tribunal Constitucional apreciou, repetidamente, a questão da constitucionalidade das normas em crise, precisamente à luz da exigência constitucional do direito ao recurso ou do duplo grau de jurisdição, que fazia derivar do artigo 32º, nº 1, da Constituição (mesmo antes de esta norma passar a contemplar expressamente o direito ao recurso após a Revisão Constitucional de
1997). Segundo a jurisprudência uniforme, embora não unânime, do Tribunal Constitucional, o Código de Processo Penal consagraria através do artigo 410º, nº 2, de modo satisfatório, o direito ao recurso em matéria de facto (entre os votos de vencido contava-se o da presente relatora, por entender que a restrição dos poderes cognitivos do tribunal ad quem ao texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, bem como as exigências de que a contradição entre a fundamentação e a decisão seja insanável e o erro na apreciação da prova seja notório constituíam restrições inadmissíveis do direito ao recurso). O Tribunal Constitucional chegou mesmo a apreciar a questão em plenário, através do Acórdão nº 573/98 (D.R., II Série, de 13 de Novembro de
1998), não tendo julgado inconstitucionais as normas dos artigos 410º, nº 2, e
433º do Código de Processo Penal. Ora, não há razões para o Tribunal Constitucional adoptar entendimento diverso, após a citada Revisão do Código de Processo Penal. Com efeito, tal Revisão veio admitir, em todos os casos, o recurso para as Relações quanto à matéria de facto sem as limitações previstas no artigo 410º, nº 2, desde que não tenha havido renúncia a esse recurso (cfr. artigo 428º, nº 2, do Código de Processo Penal). E, por outro lado, consagrou um duplo grau de recurso nas situações previstas na alínea b) do artigo 432º. Consequentemente, não há agora razões para alterar a jurisprudência do Tribunal Constitucional, no âmbito de um quadro de maiores garantias de efectivação do direito ao recurso. Esta questão de constitucionalidade constitui, pois, uma questão simples, dada a jurisprudência anterior deste Tribunal, sendo de concluir pela sua improcedência, por aplicação ao caso do essencial da fundamentação do Acórdão nº
573/98.
Consequentemente, decidiu-se: a) Não conhecer a questão da inconstitucionalidade do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal; b) Não conhecer a questão da inconstitucionalidade dos artigos 344º, nº 3, alínea a), e 125º do Código de Processo Penal; c) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 433º, 410º, nº 2, e
430º, do Código de Processo Penal.
2. A vem agora reclamar para a Conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
3. O reclamante considera que o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal é inconstitucional quando interpretado no sentido de dispensar o exame crítico das provas.
Na Decisão Sumária sob reclamação demonstrou-se que tal interpretação normativa não foi aplicada pela decisão recorrida e que perante o Supremo Tribunal de Justiça o então recorrente apenas imputou a violação da Constituição e da Lei directamente ao próprio acórdão condenatório.
Na presente reclamação, depois de relatar a tramitação dos autos, o reclamante reafirma a inconstitucionalidade da dimensão normativa por si indicada, desenvolvendo esse entendimento. Contudo, não procede à demonstração da aplicação de tal interpretação normativa no processo (apenas tecendo considerações gerais) e não procura refutar o facto de não ter suscitado qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada a tal preceito perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Improcede pois a reclamação quanto a esta parte.
4. O reclamante considera, por outro lado, que é inconstitucional a interpretação dos artigos 344º, nº 3, alínea a), e 125º do Código de Processo Penal, no sentido de se conferir valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido em prejuízo de outro independentemente da existência de outros elementos probatórios.
Na Decisão Sumária sob reclamação, demonstrou-se igualmente que o reclamante não suscitou durante o processo a inconstitucionalidade das disposições legais agora indicadas e que a interpretação em crise não foi, de modo algum, aplicada nos autos.
O reclamante insiste agora na afirmação de que foi apenas valorada a declaração de dois co-arguidos. Ora, como se explicitou na Decisão Sumária (e como, de resto, resulta dos autos) tal entendimento não encontra sustentação nos presentes autos.
O reclamante, mais uma vez, não procura refutar os fundamentos da Decisão Sumária, limitando-se a fazer afirmações que em nada colidem com aqueles fundamentos.
Improcede, também, a reclamação quanto a esta parte.
5. Por último, o reclamante sustenta a inconstitucionalidade dos artigos 410º, nº 2, e 430º do Código de Processo Penal.
Na Decisão Sumária sob reclamação, depois de se invocar a jurisprudência do Tribunal Constitucional sublinhou-se que tal jurisprudência tem aplicação, por maioria de razão, após a Revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto.
Mas o reclamante utiliza argumentos que ignoram a própria alteração do Código de Processo Penal quanto à possibilidade de recurso em matéria de facto para as Relações. O reclamante utiliza, assim, argumentos completamente desfasados relativamente à actual configuração do Processo Penal, sendo também a sua reclamação manifestamente improcedente nesta parte e só não revelando má fé se se tiver como deficientemente informada da lei processual em vigor.
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando consequentemente a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 18 de Setembro de 2002- Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa