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Proc. n.º 332/02 Acórdão nº 456/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 462 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A. e outros, no que diz respeito às normas dos artigos 1038º, alínea g), e 1049º do Código Civil e 64º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, e, bem assim, negou-se provimento ao recurso, por manifesta falta de fundamento, no que se refere às normas dos artigos 64º, n.º 1, alínea f), e 122º do Regime do Arrendamento Urbano.
A parte da decisão sumária que negou provimento ao recurso, por manifesta falta de fundamento – e que é a única que agora releva –, assentou nos seguintes fundamentos:
'[...] Pretendem, finalmente, os recorrentes que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional das normas dos artigos 64º, n.º 1, alínea f), e 122º do Regime do Arrendamento Urbano, por violação dos artigos 25º, n.º 1, e 64º, n.º s 1 e 3, alíneas a) e d), da Constituição (supra, 5.) Dispõe o artigo 64º, n.º 1, alínea f), do Regime do Arrendamento Urbano
(aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de Outubro):
«Artigo 64º
(Casos de resolução pelo senhorio)
1. O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
[...] f) Subarrendar ou emprestar, total ou parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no artigo 1049º do Código Civil;
[...]». E o artigo 122º do mesmo Regime determina o seguinte:
«Artigo 122º
(Cessão da posição do arrendatário)
1. A posição do arrendatário é transmissível por acto entre vivos, sem autorização do senhorio, a pessoas que no prédio arrendado continuem a exercer a mesma profissão.
2. A cessão deve ser celebrada por escrito, sob pena de nulidade». Os preceitos constitucionais invocados pelos recorrentes estabelecem:
· o artigo 25º, n.º 1, que «[a] integridade moral e física das pessoas é inviolável»;
· o artigo 64º, n.º 1, que «[t]odos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover»;
· o artigo 64º, n.º 3, alíneas a) e d), que «[p]ara assegurar o direito
à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado [g]arantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação», bem como «[d]isciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade». Violarão as mencionadas normas do Regime do Arrendamento Urbano as normas constitucionais acabadas de assinalar?
A resposta é evidentemente negativa. As normas legais que regulam a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio ou os requisitos da cessão da posição do arrendatário limitam-se a dispor sobre os poderes do senhorio e do arrendatário, nada dispondo sobre os direitos aos cuidados da medicina, alegadamente violados com o despejo do imóvel locado. Violação que, aliás, os recorrentes nenhum interesse pessoal e directo têm em invocar, dado que não são os titulares de tais direitos. Tendo tais normas legais um objecto diverso do das normas constitucionais identificadas pelos recorrentes, não se alcança em que medida podem com elas entrar em colisão. Assim, se alguns efeitos desfavoráveis porventura pudessem decorrer para os beneficiários das normas constitucionais invocadas, tais efeitos não resultariam de qualquer desconformidade constitucional das normas de direito ordinário impugnadas pelos recorrentes; seriam antes consequência da ineficácia em relação ao senhorio da cessão da posição contratual do arrendatário, que vem dada como provada pelas instâncias.
É portanto manifestamente infundada a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada, pelo que quanto às normas dos artigos 64º, n.º 1, alínea f), e 122º do Regime do Arrendamento Urbano há que negar provimento ao presente recurso.
[...].'
2. A e outros vieram depois requerer a aclaração da mencionada decisão sumária (fls. 479 e seguintes), 'no sentido de ser esclarecido se a norma do art.º 78º-A, n.º 1, da LTC permite ou não ao Relator o conhecimento da questão de fundo quanto ao objecto dos recursos ou se tal norma apenas permite ao Relator o conhecimento de questões formais relacionadas com a interposição dos mesmos'.
Foi então proferido despacho indeferindo o pedido formulado pelos recorrentes (fls. 493 e seguintes).
3. Na sequência deste último despacho, A. e outros vieram reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, aduzindo, em síntese, os seguintes fundamentos (fls. 497 e seguintes): a. É inconstitucional a norma do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, interpretada no sentido de ser permitido ao relator conhecer da questão de fundo, por violação do disposto nos artigos 222º, n.º 1, e 224º, n.º s 1 e 2, da Constituição; b. Tal norma, nessa interpretação, viola ainda o disposto no artigo 42º da Lei do Tribunal Constitucional; c. Os recorrentes arguiram tal inconstitucionalidade no pedido de aclaração da decisão sumária; d. A expressão 'manifestamente infundada', constante do artigo 78º-A, n.º
1, da Lei do Tribunal Constitucional, reporta-se apenas a questões de forma
(isto é, à 'falta de indicação expressa, nos autos, das concretas normas que se apelidam de violadoras e violadas, aquelas da lei geral e estas da Constituição') e não a questões de fundo que tenham a ver com o conhecimento concreto do objecto do recurso; e. Na verdade, o Tribunal Constitucional não pode funcionar como Tribunal de Juiz singular na apreciação das questões de fundo, nem pode proferir decisão sobre a questão de fundo sem que ao recorrente tenha sido facultada a possibilidade de proferir alegações fundamentadoras das inconstitucionalidades arguidas; f. Quanto à questão de fundo objecto do recurso em apreço – a da inconstitucionalidade material das normas dos artigos 64º, n.º 1, alínea f), e
122º do Regime do Arrendamento Urbano, por violação dos artigos 25º, n.º 1, e
64º, n.º s 1 e 3 da Constituição –, entendem os recorrentes que tais normas, na medida em que permitem o despejo de uma clínica médica funcionando no local arrendado, violam o direito de todos os utentes da clínica à saúde e à integridade física, sendo que qualquer pessoa é titular do direito aos cuidados da medicina; g. Em casos como o dos autos, deveria o tribunal certificar-se, previamente ao decretamento do despejo, junto do Ministério da Saúde, das consequências que possam advir da sentença de despejo e da sua execução, nomeadamente em termos de afectação dos direitos dos doentes; h. E o Ministério da Saúde deveria diligenciar no sentido de acautelar os direitos à saúde dos doentes da clínica, devendo até lá ficar suspensa a decisão judicial a proferir. Terminam, pedindo que se revogue o despacho da relatora e se dê provimento ao recurso, declarando-se a inconstitucionalidade material das normas dos artigos
64º, n.º 1, alínea f), e 122º do Regime do Arrendamento Urbano, por violação dos artigos 25º, n.º 1, e 64º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.
4. As recorridas responderam (fls. 507 e seguintes), tendo concluído do seguinte modo: a. A reclamação para a conferência é extemporânea (por terem os recorrentes feito anteriormente um uso impróprio do disposto no artigo 669º do Código de Processo Civil); b. Não existe qualquer limitação ou violação da natureza colegial do Tribunal Constitucional, nomeadamente porque da decisão do Relator cabe reclamação para a conferência ou para o pleno da secção, cabendo a decisão final a um colégio de julgadores. Por isso, só o acórdão tem valor decisório e só ele produz caso julgado (art.º 80, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional); c. Quanto à questão de fundo, é por demais evidente que a mesma não tem também qualquer cabimento, sendo certo que não é a reclamação para a conferência o momento processual idóneo para a sua apreciação (artigo 78º-A, n.º s 1, 3 e 5, da Lei do Tribunal Constitucional). Terminam, pedindo que o requerimento apresentado pelos recorrentes seja indeferido. Cumpre apreciar.
II
5. Nada obsta a que, na presente reclamação, se aprecie a questão da conformidade constitucional da norma do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, na parte em que esta norma permite ao relator proferir decisão sumária, quando entenda ser simples a questão a decidir, por manifesta falta de fundamento. Na verdade, e nos termos do artigo 204º da Constituição, não podem os tribunais, nos feitos submetidos a julgamento, aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. Ora, não havendo qualquer razão para que a decisão da reclamação prevista no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional não esteja sujeita a esta regra geral, pode a conferência aferir da conformidade constitucional da norma legal que atribui ao relator poderes para proferir decisão sumária, não estando limitada a controlar a legalidade do uso de tais poderes. Aliás, a conferência poderia apreciar a conformidade constitucional dessa norma, ainda que os ora reclamantes não tivessem suscitado a questão no pedido de aclaração de fls. 479 e seguintes (supra, 3. c)). É que a decisão da presente reclamação não se confunde com os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, em que efectivamente se exige que o recorrente suscite a questão de inconstitucionalidade durante o processo
(cfr., ainda, o artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei). Não se vê, porém, em que medida pode a norma do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional infringir o disposto nos artigos 222º, n.º 1, e 224º, n.º s 1 e 2, da Constituição (supra, 3. a)). Da decisão sumária proferida pelo relator pode sempre reclamar-se para a conferência (como, aliás, sucedeu no presente caso) – cfr. artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional –, pelo que a intervenção da secção está assegurada sempre que o relator decida não conhecer do objecto do recurso, negar-lhe provimento por manifesta falta de fundamento da questão a decidir ou, ainda, negar-lhe ou conceder-lhe provimento por simples remissão para anterior jurisprudência do próprio Tribunal. No sentido da não inconstitucionalidade da norma contida no artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional se pronunciou já por diversas vezes este Tribunal
(cfr., por exemplo, os acórdãos n.º s 19/99, 80/99, 550/99, 567/99, 223/01).
6. Não têm também razão os reclamantes quando invocam a violação do artigo 42º da Lei do Tribunal Constitucional (supra, 3. b)). Desde logo, porque
é esta mesma Lei a conter disposição especial quanto aos poderes do relator nos casos de simplicidade da questão a decidir, por manifesta falta de fundamento (o artigo 78º-A, n.º 1); por outro lado, porque a composição da secção funcionando em conferência, nos casos de reclamação da decisão do relator, também é objecto de disposição especial (o artigo 78º-A, n.º 3). Sendo especiais estas disposições, não faz sentido invocar a violação do artigo 42º.
7. Como é óbvio, não têm os reclamantes razão quando alegam que a expressão 'manifestamente infundada', constante do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, se reporta apenas a questões de forma (isto é, à
'falta de indicação expressa, nos autos, das concretas normas que se apelidam de violadoras e violadas, aquelas da lei geral e estas da Constituição') e não a questões de fundo que tenham a ver com o conhecimento concreto do objecto do recurso (supra, 3. d)).
O n.º 1 do artigo 78º-A distingue duas situações: falta de preenchimento dos pressupostos processuais do recurso de constitucionalidade
(que gera uma decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso) e simplicidade da questão a resolver. Como esta simplicidade assenta na circunstância de a questão já ter sido decidida pelo Tribunal Constitucional ou na circunstância da manifesta falta de fundamento da questão a decidir, naturalmente que a decisão a proferir envolve uma apreciação de mérito, ainda que perfunctória, só podendo consistir na negação ou concessão de provimento ao recurso.
Que a expressão 'manifestamente infundada' se não relaciona com questões de forma, é ainda algo que inequivocamente decorre do disposto nos artigos 75º-A, n.º s 5, 6 e 7, 76º, n.º 2, e 78º-A, n.º 2, todos da Lei do Tribunal Constitucional. Assim, os artigos 76º, n.º 2, e 78º-A, n.º 2 conteriam inúteis repetições se a 'falta de indicação expressa, nos autos, das concretas normas que se apelidam de violadoras e violadas, aquelas da lei geral e estas da Constituição' – para usar a terminologia dos reclamantes – equivalesse à manifesta falta de fundamento do recurso.
8. Relativamente ao argumento segundo o qual o Tribunal Constitucional não pode funcionar como Tribunal de Juiz singular na apreciação das questões de fundo, nem pode proferir decisão sobre a questão de fundo sem que ao recorrente tenha sido facultada a possibilidade de proferir alegações fundamentadoras das inconstitucionalidades arguidas (supra, 3. e)), refira-se, por um lado, que
(como já se assinalou) a decisão sumária que nega provimento ao recurso por manifesta falta de fundamento admite reclamação para a conferência (que funciona colegialmente) e, por outro lado, que nos casos de manifesta falta de fundamento da questão a decidir – como é o caso da presente questão – o recorrente sempre pode, na reclamação para a conferência, demonstrar que tal manifesta falta de fundamento não ocorre e, no caso de a reclamação ser julgada procedente, produzir alegações nos termos gerais (cfr. artigo 78º-A, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional).
A argumentação expendida pelos reclamantes assenta no pressuposto de que, mesmo nos casos em que ao relator se afigure ser manifestamente infundada a questão a decidir, só através da produção de alegações sobre a questão de fundo pode ser cabalmente exercido o contraditório pelo recorrente. Tal não é, porém, verdade: o contraditório não exige a prática de actos inúteis – como certamente
é o caso da produção de alegações sobre questão manifestamente infundada –, sendo suficientemente acautelado com a possibilidade de demonstração, pelo reclamante, desse carácter não manifesto, seguida, no caso de tal demonstração ocorrer, da possibilidade de alegar.
9. No caso sub judice, é patente que a questão de fundo – a da inconstitucionalidade material das normas dos artigos 64º, n.º 1, alínea f), e
122º do Regime do Arrendamento Urbano, na medida em que permitem o despejo de uma clínica médica funcionando no local arrendado, por violação dos artigos 25º, n.º 1, e 64º, n.º s 1 e 3, da Constituição (supra, 3. f)) – é infundada, pelas razões que se aduziram na decisão sumária reclamada (supra, 1.). As normas dos artigos 64º, n.º 1, alínea f), e 122º do Regime do Arrendamento Urbano não dispõem sobre os direitos dos utentes de clínicas médicas à saúde e à integridade física, centrando-se na relação entre o senhorio e o arrendatário, pelo que pura e simplesmente não podem entrar em colisão com as normas constitucionais que atribuem tais direitos. Pode, ainda, acrescentar-se que tais normas não regulam o aspecto processual da possibilidade de diferimento do despejo – que, na óptica dos reclamantes, postularia a intervenção do Ministério da Saúde (supra, 3. g) e h)) –, pelo que também por esta razão se não alcança em que medida elas afectam os direitos dos doentes.
III
10. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária na parte ora impugnada, que negou provimento ao recurso por manifesta falta de fundamento.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 5 de Novembro de 2002- Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida