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Proc. nº. 409/02
1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A. deduziu embargos de terceiro com função preventiva por apenso ao processo de falência de B. no Tribunal Cível da Comarca de Guimarães com fundamento em que o despacho que ordenou, no processo de falência, a apreensão de todos os bens que se encontrassem na sede da massa falida, não excluiu os bens pertencentes a terceiros mas que ali se encontrassem, pertencendo à embargante alguns deles, pelo que requereu a suspensão 'imediata da ordenada apreensão, nos termos do disposto no artigo 359º do Código de Processo Civil'.
Contestados oportunamente pela Massa Falida da B. vieram os embargos a ser julgados improcedentes por, em suma, se entender que o artigo 351, nº. 2 do Código de Processo Civil não se aplica ao processo de falência e os artigos
201º, 203º e 205º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) apenas permitem uma reacção contra a apreensão já efectuada, o que não se verifica in casu.
A embargante inconformada apelou para o Tribunal da Relação do Porto que veio a julgar improcedente a apelação (cfr. fls. 279 a 292).
De novo inconformada, a embargante interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando nas alegações as seguintes conclusões:
'Primeira: A sentença proferida na 1ª Instância julga improcedentes os embargos deduzidos,
única e exclusivamente por considerar não ser possível a dedução de embargos de terceiro com função preventiva no âmbito de um processo de falência, pronunciando-se, assim, novamente, sobre a mesma questão processual. Segunda: Salvo o devido respeito, o acórdão recorrido confunde a questão de fundo
(material) que está subjacente a quaisquer embargos de terceiro, e é apenas decidida com a sentença final; com a questão processual da possibilidade de dedução deste incidente no âmbito de um processo especial de falência, a qual é decidida no despacho de recebimento dos embargos de terceiro com função preventiva, e forma caso julgado formal. Terceira: O acórdão proferido ao considerar que estamos perante duas decisões com objecto e finalidades distintas entre si, faz uma errada interpretação das mesmas, pois ambas se pronunciaram sobre uma única e mesma questão processual, pelo que violou o disposto nos artigos 354º, 671º e 672º do Código de Processo Civil, fazendo uma errada interpretação dos mesmos. Quarta: Sendo certo que, os fundamentos do acórdão recorrido se encontram, assim, em oposição com a decisão proferida, donde resulta a nulidade do mesmo, nos termos do artigo 668º, nº. 1, al. c) do Código de Processo Civil, nulidade essa que expressamente se invoca para os devidos efeitos legais. Quinta: A norma do nº. 2 do artigo 351º do Código de Processo Civil é uma norma excepcional, pois consagra um regime oposto ao regime-regra do artigo 351º, nº.
1 do Código de Processo Civil, por razões indissoluvelmente ligadas ao tipo de caso contemplado nesse mesmo nº. 2. Sexta: A excepção consagrada no mencionado artigo justifica-se pelo estabelecimento de um regime especial de defesa de terceiros para os casos em que tenha sido realizada a apreensão judicial de bens do mesmo (cfr. artigos 201º e seguintes do CPEREF). Sétima: Esse mesmo artigo não se aplica aos embargos de terceiro com natureza preventiva. Nestes estão em causa fins distintos. O legislador no CPEREF não pretendeu subtrair qualquer meio de defesa de terceiros. Ficam salvaguardadas as razões de celeridade que levaram à consagração de um regime especial de restituição e separação de bens da massa falida (artigos 359º e 351º do Código de Processo Civil e 10º, nº. 1 do CPEREF). Os embargos de terceiro com função preventiva são céleres, integrando-se perfeitamente no processo de recuperação da empresa e de falência.
Oitava: Donde resulta a impossibilidade de recurso a uma interpretação extensiva do artigo 351º, nº 2 do Código de Processo Civil, por violação do artigo 9º do Código Civil. Nona: O artigo 351º, nº 2 do Código de Processo Civil não comporta aplicação analógica
(artigo 11º do Código Civil). Décima:
É permitido o recurso aos embargos de terceiro com natureza preventiva no processo especial de recuperação da empresa e falência (artigo 10º, nº 1 do CPEREF). Décima-primeira: O processo especial de recuperação da empresa e de falência, assim como os embargos e recursos deduzidos no mesmo têm natureza urgente. Décima-segunda: Os embargos de terceiro com função preventiva têm carácter urgente (artigo 10º, nº 1 do CPEREF), pelo que o acórdão recorrida deveria ter deferido o desentranhamento da contestação deduzida nos embargos, por extemporaneidade da mesma (artigos 144º, nº 1 e 145º do Código de Processo Civil e 14º, nº 1 do CPEREF). Décima-terceira: Ao proceder à aplicação do regime geral dos artigos 351º a 359º e a 1ª parte do nº 1 do artigo 144º, todos do Código de Processo Civil e o disposto no artigo
10º, nº 1 do CPEREF, o acórdão recorrido comete um erro de determinação da norma aplicável. Décima-quarta: Sem prescindir, a interpretação conjugada dos artigos 359º, nº 1 e 351º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil, no sentido de não ser possível a dedução de embargos de terceiro com função preventiva no âmbito de um processo especial de recuperação de empresa e de falência, levará a uma regulação arbitrária, injustificadamente discriminatória, de flagrante e intolerável desigualdade e inconstitucional por violadora dos artigos 13º, nº. 1 e 62º, ambos da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade essa que se invoca para os devidos efeitos legais. Décima-quinta: Por tudo isto, o acórdão recorrida viola o disposto nos artigos 10º e 14º do CPEREF, 144º, 145º, 351º e 359º do Código de Processo Civil e 13º e 62º da Constituição da República Portuguesa'.
A embargada contra-alegou defendendo, em síntese, que o acórdão recorrido, tal como a sentença da 1ª instância, fez '(...) uma correcta interpretação e aplicação das normas substantivas a adjectivas e não merece qualquer reparo'.
O Supremo Tribunal de Justiça negou a revista (cfr. fls. 335 a 338).
Não se conformando com este acórdão, a embargante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da constitucionalidade dos artigos 359º nº 1 351º nº 2 do CPC.
Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
'Primeira Cerca de dois anos depois de ter sido declarada a falência da sociedade comercial denominada B., foi proferido despacho que determinou a apreensão de todos os bens que se encontrem na sede da falida, nomeadamente os que são detidos pela sociedade A. Segunda Depois de proferido o referido despacho, mas antes de realizada a dita apreensão, a ora Recorrente deduziu Embargos de Terceiro com função preventiva, nos termos do disposto no artigo 359º do Código de Processo Civil. Terceira Foi proferida decisão pela Primeira Instância a julgar improcedentes tais embargos, com fundamento na não admissibilidade de Embargos de Terceiro com função preventiva como meio de reacção contra a apreensão de bens realizada em processo de falência, tudo de acordo com o disposto no artigo 351º, nº 2 do Código de Processo Civil. Quarta Tal decisão viria a ser confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto e pelo Supremo Tribunal de Justiça, perfilhando todos eles o sentido da inadmissibilidade da dedução de embargos de terceiro, com natureza preventiva, relativamente à apreensão de bens ordenada no âmbito de um processo especial de recuperação e/ou falência, de acordo com o expressamente estatuído pelo artigo
351º, nº2 do Código de Processo Civil. Quinta Nada há a referir quanto à legalidade e/ou constitucionalidade da referida norma nas situações posteriores à efectiva apreensão dos bens, na medida em que estão assegurados os meios de defesa da posse, ou qualquer outro direito, ofendida com essa apreensão, quer através do processo de embargos de terceiro aí previstos, quer através dos mecanismos constantes dos artigos 201º e seguintes do CPEREF. Sexta Porém, a questão da inconstitucionalidade e/ou ilegalidade da norma constante do artigo 351º, nº 2 do Código de Processo Civil surge nas situações, como o que ocorre nos presentes autos, em que no âmbito de um processo de falência é ordenada a apreensão de bens alegadamente pertencentes e na posse de terceiro, a Recorrente, apreensão essa que, apesar de ordenada ainda não foi realizada. Sétima
É que atento o previsto no referido artigo 351º, nº 2, mormente na interpretação dada nas decisões recorridas, resulta a impossibilidade de qualquer pessoa, física ou jurídica, detentora da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, que se traduza num acto de agressão patrimonial, lançar mão de qualquer processo preventivo de defesa desse direito, só porque está no âmbito de um processo de recuperação ou de falência. Oitava O disposto no artigo 351º, nº2 do Código de Processo Civil restringe pois, de forma evidente, os direitos dessa pessoa que vê eminente a produção de um acto de agressão patrimonial, retirando-lhe os meios processuais de evitar esse dano e que sempre teria ao seu dispor caso a diligência não tivesse sido ordenada no
âmbito dos ditos processos especiais de recuperação e de empresa. Nona Tal pessoa terá que esperar a efectiva realização da diligência ordenada, terá de aguardar a efectiva agressão patrimonial para, aí sim, reagir através dos meios que a lei coloca ao seu dispor, designadamente os previstos no artigo 201º e seguintes do CPEREF. Décima Nenhum motivo justifica a impossibilidade de recurso aos meios processuais previstos no artigo 359º do Código de Processo Civil, designadamente a opção pelos interesses dos credores em detrimento dos interesses de terceiro pois aqueles direitos estariam sempre assegurados através, além do mais, dos mecanismos previstos no nº. 2 do referido artigo 359º. Décima Primeira Por tudo isto é manifesto que o disposto no artigo 351º, nº 2 do Código de Processo Civil, interpretado como foi nas decisões proferidas nestes autos, ou seja, que impossibilita o recurso ao processo de embargos de terceiro para defesa preventiva da posse – ou manutenção da posse – ou de qualquer outro direito incompatível com a ordenada diligência de agressão patrimonial, quando no âmbito do processo especial de recuperação de empresa ou de falência, viola direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Décima Segunda Tal não seria assim se o nº 2 do artigo 351º exclui-se as situações previstas no artigo 359º do mesmo Código. Décima Terceira O dito artigo 351º, nº 2 do Código de Processo Civil viola o princípio do Estado de Direito, quer nos pressupostos materiais subjacentes ao mesmo princípio, quer nos subprincípios que o concretizam. Décima Quarta Há violação do Princípio da Igualdade dos cidadãos, expresso na mesma dignidade social e na igualdade de tratamento normativo, isto é igualdade perante a lei e que tem consagração expressa no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa é violado pelo artigo 351º, nº 2 do Código de Processo Civil. Décima quinta Há violação dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, bem como dos princípios concretizadores daquele: o Princípio da determinabilidade das leis, traduzido na exigência de clareza nas leis, pois de uma lei obscura ou contraditória não pode ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto. Um acto legislativo que não contém uma disciplina suficientemente concreta não oferece uma medida jurídica capaz de alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos. E o princípio da protecção da confiança: o cidadão deve poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados ou tomados de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam efeitos jurídicos duradouros. Décima Sexta Há violação, ainda, do Princípio da protecção jurídica e das garantias processuais: existência de uma protecção jurídica individual sem lacunas – artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa; Décima Sétima O referido artigo 351º, nº. 2 do Código de Processo Civil afasta princípios e normas constitucionalmente consagrados, designados por garantias gerais de procedimentos e de processo, designadamente as: Garantias do processo judicial: o princípio da igualdade processual das partes – artigos 13º e 20º, nº 2 da CRP; o princípio da conformação do processo segundo os direitos fundamentais – artigo 32º da CRP; Garantias do procedimento administrativo – como garantias de um procedimento administrativo justo: princípio da conformação do processo segundo os direitos fundamentais – artigos 266º, nº 1 e 267º, nº. 4 da CRP; Décima Oitava Há manifesta violação do princípio da garantia de via judiciária, através da qual deverá ser assegurada uma defesa dos direitos segundo os meios e métodos de um processo juridicamente adequado, mormente através de: garantia de protecção jurídica: reforça o princípio da efectividade dos direitos fundamentais, proibindo a inexequibilidade ou eficácia por falta de meios judiciais;
- criação de um direito subjectivo público: a defesa dos direitos e acesso aos tribunais não pode divorciar-se das várias dimensões reconhecidas pela constituição ao catálogo dos direitos fundamentais. O sentido global resultante da combinação das dimensões objectiva e subjectiva dos direitos fundamentais é a de que o cidadão, em princípio, tem assegurada uma posição jurídica subjectiva, cuja violação lhe permite exigir a protecção jurídica. Isto pressupõe que ao lado da criação de processos legais aptos para garantir essa defesa, se abandone a clássica ligação de justiciabilidade ao direito subjectivo e se passe a incluir no espaço subjectivo do cidadão todo o círculo de situações juridicamente protegidas. O princípio da protecção jurídica fundamenta, assim, um alargamento da dimensão subjectiva, e alicerça, ao mesmo tempo, um verdadeiro direito ou protecção de defesa das posições jurídicas ilegalmente lesadas. Protecção jurídica e principio da constitucionalidade. O principio da constitucionalidade implica a conformação material e formal de todos os actos com a CONSTITUIÇÃO. Do princípio da legalidade da administração deduziram-se importantes consequências, sob o ponto de vista do estado de Direito, quanto aos poderes da administração. Não existem, pois, espaços livres do direito, designadamente do direito constitucional. Décima Nona Os próprios direitos fundamentais à iniciativa privada e à propriedade privada – consagrados nos artigos 61º e 62º da CRP são restringidos nas situações em que a Recorrente se encontra por via da aplicação do disposto no artigo 351º, nº. 2 às situações previstas no artigo 359º, Vigésima
É, ainda, manifesto que a lei – 351º, nº. 2 do Código de processo Civil, na redacção actual é um obstáculo à protecção jurídica, isto é, à defesa dos direitos, através dos Tribunais, consagrado no artigo 20º da CRP. Vigésima Primeira A inexistência de garantia de reacção preventiva contra a agressão patrimonial equivale à negação da protecção jurídica, tanto mais que a garantia da via judicial pressupõe que o Estado deve criar órgãos judiciários e processos adequados à defesa dos direitos fundamentais e tendentes a evitar a denegação de justiça. Vigésimo Segunda A redacção do disposto no artigo 351º, nº. 2 do Código de Processo Civil, nos termos expostos, é causa flagrante de denegação de justiça porque consubstancia o afastamento de um instrumento de protecção de direitos fundamentais, estando ferida de inconstitucionalidade'. A Recorrida, não contra-alegou. Cumpre apreciar e decidir.
2 – Segundo o entendimento da recorrente as normas conjugadas constantes dos artigos 351º, nº. 2 e 359º, nº. 1 do Código de Processo Civil interpretadas no sentido de não ser admissível a dedução de embargos de terceiro com natureza preventiva – para defesa da posse ou qualquer outro direito incompatível com a apreensão de bem pertencente a terceiro - no âmbito de um processo especial de recuperação da empresa e de falência violam o princípio da igualdade, o princípio da protecção jurídica e das garantias processuais, o princípio da determinabilidade das leis e o direito à iniciativa e propriedade privada, previstos nos artigos 13º, nº. 1, 20º e 62º da CRP. Objecto do presente recurso é, portanto, averiguar se a não admissão do meio processual (embargos de terceiro preventivos) de defesa da posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização da apreensão ordenada em processo especial de falência – execução universal do património do devedor – ao invés do que sucede quando se trate de um processo de execução singular -, consubstancia, por um lado, uma desigualdade discriminatória e arbitrária, por outro, denegação de justiça (aí englobada a protecção jurídica e garantias processuais), e ainda um atentado ao direito fundamental à iniciativa e à propriedade privada. Isto é, importa analisar se - apesar da existência de mecanismos próprios no
âmbito do processo especial de recuperação da empresa e de falência {cfr. artigos 201º e segs. do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF)} para restituição e separação de bens de terceiro - a não admissão de embargos de terceiro com natureza preventiva estipulada no artigo
351º, nº. 2 em conjugação com o artigo 359º, nº. 1 do Código de Processo Civil configura uma discriminação arbitrária, não justificada, assim se denegando justiça ao terceiro lesado com a ordenada apreensão e uma ofensa ao direito à iniciativa e à propriedade privada de terceiro titular de bens ordenados apreender em processo de falência.
3 – As normas do CPC em causa dispõem:
'Artigo 351º
(Fundamento dos embargos de terceiro)
1. Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular pessoa que não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
2. Não é admitida a dedução de embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens realizada no processo especial de recuperação da empresa e de falência.' Artigo 359º
(Embargos de terceiro com função preventiva)
1. Os embargos de terceiro podem ser deduzidos, a título preventivo, antes de realizada, mas depois de ordenada, a diligência a que se refere o artigo 351º, observando-se o disposto nos artigos anteriores, com as necessárias adaptações'. A redacção destes preceitos foi dada pelo Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro, sendo substancialmente diferente da anteriormente vigente (cf. artigo
1037º do CPC), porquanto ao abrigo desta última a função dos embargos de terceiro se limitava à defesa da posse ofendida por qualquer diligência judicial ordenada de que são exemplo a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial avulsa e o despejo. Com o Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro, o embargante passou a poder defender não só a posse mas também qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicialmente ordenada que se traduza num acto de agressão patrimonial. Escreveu, a propósito, Carlos Lopes do Rego ('Comentários ao Código de Processo Civil', Livraria Almedina, Coimbra, 1999, pág. 262):
'O problema da admissibilidade dos embargos de terceiro, aparece, deste modo, ligado, não apenas à qualificação do embargante como 'possuidor', mas também à averiguação da titularidade de um direito que, ponderada a sua natureza e regime jurídico-material, não possa ser legitimamente atingido pelo acto de apreensão judicial de bens em causa, por ser oponível aos interessados que promoveram ou a quem aproveita a diligência judicialmente ordenada. Na base da admissibilidade do incidente passa, pois, a estar uma questão de hierarquia ou prevalência de direitos em colisão (o actuado através do processo em que se inserem os embargos e o oposto pelo embargante), a resolver naturalmente em função das normas jurídico-materiais aplicáveis.' Diga-se, no entanto e desde já, que esta diferente conceptualização dos embargos de terceiro não tem qualquer incidência na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
4 – Antes ainda de entrarmos na análise desta questão importa fazer uma caracterização, necessariamente breve, do meio processual embargos de terceiro, de que os embargos (de terceiro) preventivos são uma sub-categoria. A figura processual dos embargos de terceiro estava consagrada nas Ordenações que admitiam como fundamento para a sua dedução a posse e a propriedade, fundamentos que se mantiveram até à Novíssima Reforma Judicial de 1841, passando esta a permitir apenas a defesa da posse, por parte de terceiros, ofendida pela apreensão judicialmente ordenada. O Código de Processo Civil de 1876 consagrou os embargos como incidente da execução com o objectivo de levantamento da penhora ou da apreensão já efectuada na execução (cfr. artigos 922º e 379º), sendo que em 1892, este meio de reacção do possuidor se alargou ao arrolamento e à posse judicial (cfr. Decreto nº.
21287, de 15/09/1892, o que viria a acontecer em relação ao mandado de despejo em 1919 (cfr. Decreto nº 5411, de 17/04/19). A consagração dos embargos de terceiro como acção autónoma (embora apensa à acção onde foi ordenada a diligência judicial lesiva da posse) ocorreu com o Código de Processo Civil de 1939, diploma que introduziu pela primeira vez a modalidade dos embargos de terceiro preventivos (deduzidos após o despacho que ordena a penhora mas antes da sua efectivação) (cfr. artigo 1039º). Neste diploma, os embargos podiam ser deduzidos 'quando a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial ou qualquer outra diligência ordenada judicialmente ofenda a posse de terceiro' podendo '... este fazer-se restituir à sua posse por meio de embargos', alegando a sua posse e a posição de terceiro, oferecendo imediatamente as provas (cfr. artigo 1036º), estatuindo o artigo
1039º que 'os embargos de terceiro podem ser deduzidos antes de realizada, mas depois de ordenada, a diligência a que se refere o artigo 1036, funcionando neste caso como meio de evitar o esbulho'. No Capítulo XVI do CPC de 1939, com a epígrafe 'Da liquidação de patrimónios'
(cfr. artigos 1122º a 1368º), na Secção III 'Liquidação em benefício de credores', estipula o artigo 1200º integrado na Sub-secção relativa à
'verificação do passivo' que 'os processos e prazos para a reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis:
(...)
3º. Às que se dirijam a fazer separar da massa os bens de terceiro que hajam sido indevidamente apreendidos, e bem assim quaisquer outros, dos quais o falido não tenha propriedade, ou não a tenha exclusiva, mas que possuísse pro-indiviso, ou como usufrutuário, fideicomissário, ou por qualquer outro título não translativo de plena e exclusiva propriedade, ou que sejam estranhos à falência ou insusceptíveis de apreensão para a massa'. A caracterização dos embargos de terceiro, quer repressivos quer preventivos, como verdadeiras acções de defesa (manutenção ou restituição) da posse afirma-se com o Decreto-Lei nº 44129, de 28/12/1962, diploma que, ao nível da tramitação, cindiu os embargos em duas fases, destinada a primeira à prova sumária da posse e qualidade de terceiro do embargante e a segunda, após o despacho judicial de recebimento dos embargos, destinada à observação do princípio do contraditório
(sobre a abordagem histórica dos embargos de terceiro cfr. Isabel Ribeiro Parreira, Embargos de terceiro preventivos, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 2001, Tomo II, págs. 837 a 846). A função e os requisitos dos embargos de terceiro estavam previstos no artigo
1037º do Código de Processo Civil (de 1961), em cujo nº. 1 se estipulava:
'Quando a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial, o despejo ou qualquer outra diligência ordenada judicialmente, que não seja a apreensão de bens em processo de falência ou de insolvência, ofenda a posse de terceiro, pode o lesado fazer-se restituir à sua posse por meio de embargos' (sublinhado nosso). O Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro, alterou substancialmente esta regulação, transformando a acção declarativa de embargos de terceiro em incidente da instância, adoptando, consequentemente, uma nova arrumação sistemática. Assim, os embargos de terceiro (incluindo os com função preventiva) aparecem regulados no Código de Processo Civil nos artigos 351º a 359º, no Capítulo III relativo aos incidentes da instância, na Secção III respeitante à intervenção de terceiros e enquanto modalidade ou sub-espécie da oposição espontânea. Este diploma '(...) legitima a embargar o titular de direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência ordenada, ao lado do possuidor cuja posse seja incompatível com essa realização ou esse âmbito, quando um ou outro seja ofendido pela diligência. Por outro lado, deixaram de ser mencionados a penhora, o arresto, o arrolamento, a posse judicial e o despejo, que constituíam, na anterior redacção, mera exemplificação. A expressão 'qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens' engloba, manifestamente, essas diligências' (cfr. Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, 'Código de Processo Civil Anotado', vol. 1º, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, págs. 615 a 616). Em suma os embargos de terceiro, apesar de regulados em sede de incidentes da instância, configuram-se como verdadeira acção declarativa, autónoma e especial enxertada numa execução, visando acautelar não só a posse mas qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada.
5 – A questão de constitucionalidade suscitada resulta, como se disse, da não admissão de embargos de terceiro preventivos quando a diligência judicial ordenada, mas ainda não realizada/concretizada, seja a apreensão de bens em processo de falência.
Ora, importa, desde já, analisar o que a propósito da apreensão de bens em processo de falência, se dispõe no Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de
23 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 315/98, de 30 de Outubro. Diz-se no preâmbulo do referido Decreto-Lei nº 132/93 que o diploma '(...) completa uma viragem histórica, (...), na área do processo civil executivo, com sérias e benéficas repercussões na vida económica do País.
(...) Trata-se, por um lado, de retirar do Código de Processo Civil, onde se regulam os meios de tutela coerciva dos credores contra o comum dos devedores, a matéria específica da falência, para a reunir ao processo afim de recuperação das empresas economicamente viáveis. (...) mas trata-se ainda, por outro lado, de rever a antiquada legislação das falências, quase inteiramente desligada da sorte do devedor falido, à luz decantadora de uma época especialmente empenhada em garantir a sobrevivência dos empreendimentos rentáveis e em que é outra a dinâmica negocial exigida dos agentes económicos'.
De acordo com o disposto no artigo 128º nº 1 alínea c), a sentença que declare a falência deve 'decretar a apreensão, para imediata entrega ao liquidatário judicial, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos'.
Proferida a sentença, procede-se à 'imediata apreensão de todos os bens susceptíveis de penhora (...)' (artigo 175- nº 1); o 'poder de apreensão resulta da declaração de falência' e 'a apreensão é feita pelo próprio liquidatário' (artigos 176º nºs 1 e 2).
Na eventualidade de serem apreendidos bens que não sejam do falido, prevê o CPEREF meios de salvaguarda dos direitos de terceiros titulares desses bens.
A estes meios dedica o CPEREF parte do Capítulo VII, com a epígrafe
'Verificação do passivo. Restituição e separação de bens'.
Aí se prevê (artigo 201º nº 1) a reclamação e verificação 'do direito de restituição, a seus donos, dos bens apreendidos para a massa falida, mas de que o falido fosse mero possuidor em nome alheio' (alínea a)), 'do direito que tenha o cônjuge a separar da massa falida os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns' (alínea b)) e a reclamação 'destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o falido não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à falência ou insusceptíveis de apreensão para a massa' (alínea c)).
Por outro lado, nos termos do nº 2 do mesmo artigo 201º, o juiz pode igualmente ordenar a separação dos referidos bens, a requerimento do liquidatário, instruído com parecer favorável da comissão de credores.
Prevendo, ainda, a ocorrência de apreensão de bens, depois de findo o prazo para as reclamações, permite, ainda, o artigo 203º o exercício do direito de restituição ou separação dos bens apreendidos, no prazo de cinco dias posteriores à apreensão.
Saliente-se, também, que, nos termos do artigo 179º nº 3, se estiver pendente acção de reivindicação, pedido de restituição ou de separação relativamente a bens apreendidos para a massa falida, não se procederá à liquidação desses bens enquanto não houver decisão transitada em julgado, salvo anuência do interessado ou de venda antecipada nos termos do artigo 145º nº 1 alínea b).
Finalmente, anote-se que o artigo 204º permite a entrega provisória de coisas móveis determinadas ao reclamante mediante caução. Esta regulamentação da restituição e separação de bens corresponde à que se dispunha nos CPC de 61 (artigos 1237º e segs.) e de 39 (artigos 1200º e segs.) para o processo de falência, sendo certo que já desde 1939 se excluía a possibilidade dos embargos de terceiro relativamente à apreensão de bens de terceiro naquele processo (artigos 1039º do CPC de 39 e 1037º nº 1 do CPC de
61), onde, para o efeito, só era admissível a reclamação e verificação do direito de restituição.
A verdade, porém , é que não se reporta à impossibilidade de embargos de terceiro no processo de falência a imputação de inconstitucionalidade feita pela recorrente, incidindo ela apenas na impossibilidade de embargos de terceiro preventivos no mesmo processo.
E, a este respeito, uma ideia central se colhe das alegações da recorrente: a de que, com a aludida interpretação normativa dos artigos 351º e
359 do CPC, violado fica um direito fundamental que se poderá qualificar como direito à protecção jurídica com assento específico no artigo 20º da CRP.
Com efeito, seria este o direito ofendido, nele se compreendendo outros direitos e princípios que a recorrente, prolixamente, enumera e que não são mais do que a decorrência da exigência constitucional de uma completa tutela jurisdicional dos direitos e interesses lesados.
Ademais, no caso estaria em causa a defesa de outro direito fundamental, o direito de propriedade, cuja defesa a recorrente considera no mínimo insuficiente, com a questionada interpretação normativa.
6 - A CRP assegura a todos os cidadãos meios jurisdicionais de tutela efectiva dos seus direitos e interesses ofendidos – é o que claramente se dispõe no artigo 20º nºs 1 e 5 da Constituição. Vinculado, assim, a criar esses meios, o legislador não deixa de ser livre de os conformar, não sendo de todo o modo obrigado a prever meios iguais para situações diversas, considerando ainda que a identidade ou diversidade das situações em presença há-de resultar de uma perspectiva global que tenha em conta a multiplicidade de interesses em causa, alguns deles conflituantes entre si. No caso, o direito a que a recorrente se arrogou no meio processual que veio a utilizar é claramente o direito de propriedade sobre bens cuja apreensão foi ordenada por despacho judicial por força da declaração de falência de 'B'.
Isto implica por imposição do preceito constitucional citado que a recorrente disponha de um meio processual que lhe permita defender, com eficácia, o seu direito de propriedade sobre aqueles bens. Ora, no âmbito do processo especial de falência, como se deixou abundantemente referido, o terceiro lesado com a ordem de apreensão judicial de bens que lhe pertencem para a massa falida, dispõe de meios bastantes e suficientemente eficazes para defender o seu direito, desde logo por reclamação com vista à restituição e separação de bens.
Trata-se, com efeito, de um meio que, por si e pelas garantias a que está associado – em particular, a impossibilidade de liquidação desses bens enquanto não houver decisão com trânsito em julgado sobre a reclamação e a possibilidade de entrega provisória desses bens ao reclamante – permite que o terceiro veja restituídos à sua posse, os bens ilegalmente apreendidos.
Note-se, aliás, que o prazo até 30 dias a contar da publicação da sentença que decreta a falência (artigos 128º nº 1 alínea e), 188º nºs 1 e 2 e
201º nº 1 do CPEREF) para dedução da reclamação e o efeito suspensivo da liquidação que se produzirá logo que a reclamação é apresentada não deixa de significar que a indisponibilidade dos bens por quem se arroga à sua propriedade será sempre temporalmente muito limitada. De todo o modo, decisivo – repete-se - é o facto de o CPEREF facultar ao terceiro lesado pela apreensão de bens meios de defesa dos seus direitos, que podem ser exercidos logo que a apreensão se concretiza – concretização que se deverá processar imediatamente a seguir ao decretamento da falência – e permitem, sem aparentes riscos, a reintegração do direito ofendido no património do terceiro. E é evidente que, assim, se não mostram violados os direitos de acesso à justiça ou a uma tutela jurisdicional efectiva.
7 – No caso, a diversidade de tratamento do terceiro ofendido face ao que ocorre com a penhora no processo executivo tem em conta as substanciais diferenças entre este e o processo de falência , bem como entre a penhora e apreensão judicial de bens. Sobre esta última escreveu Lebre de Freitas in Apreensão, restituição, separação e venda de bens no processo de falência, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXVI, 1995, pág. 374:
'Tendo por objecto, além dos elementos da contabilidade, todos os bens penhoráveis do falido, a apreensão reveste-se dum carácter definitivo que a distingue das providências cautelares. Com ela realiza-se, é certo, uma finalidade de acautelamento, na medida em que o ingresso dos bens na esfera de disponibilidade material do liquidatário impede o falido de deles materialmente dispor, ocultando-os ou dissipando-os. Mas a função da apreensão consiste, essencialmente, em concretizar o conteúdo da massa falida e o objecto dos actos executivos (administração e alienação) que sobre ela subsequentemente se irão realizar. Trata-se de uma função semelhante à da penhora no processo executivo, embora, dos efeitos imediatos desta, só tenha o de atribuir ao liquidatário o poder de administração dos bens apreendidos (art.141), pois quer o efeito de inoponibilidade situacional quer o de perda da administração dos bens pelo falido resultam, antes dela, da sentença de declaração da falência. Note-se, aliás, como, na falência, se dá a cisão entre o momento da perda do poder de administração pelo falido e o da sua aquisição pelo liquidatário, que, como resulta do art. 176, começa por ter tão-só o poder de apreensão e só quando esta se realiza fica constituído depositário, adquirindo assim a posse em nome alheio
(em nome do tribunal) dos bens corpóreos apreendidos. Esses dois momentos coincidem no acto da penhora. A função de apreensão dos bens do falido extravasa assim a função cautelar, constituindo uma função executiva.
(...)
(...) a apreensão dos bens do falido (...) constitui acto executivo da sentença de declaração da falência, a qual, desempenhando no processo de falência papel paralelo ao do título executivo, constitui o poder de apreensão, que naquele acto se exerce'. Por outro lado e quanto à distinção entre o processo executivo e a falência apontou – e bem - o acórdão recorrido alguns traços diferenciadores que revelam a ausência de arbítrio na previsão de meios diferenciados de meios de tutela dos direitos de terceiros ofendidos com a apreensão de bens.. Escreveu-se ali:
'Enquanto a execução é singular (abrindo-se, mais tarde, uma fase a certos outros – não a todos, portanto - credores), a falência e respectiva liquidação tem carácter universal. A falência é um regime que respeita à liquidação universal do património das empresas inviáveis. Logo por aí uma desigualdade – e fundamental – de situações, pelo que não requer o mesmo tratamento. Um dos objectivos essenciais, comum à recuperação das empresas e à falência, é a salvaguarda dos interesses dos credores, aos quais a lei reconhece independência da sua posição face quer à empresa quer ao gestor judicial quer ao liquidatário mesmo no que respeita à actuação processual em geral (daí que, inclusivamente quanto aos meios específicos de oposição à apreensão de bens de terceiro a sua posição não possa em nada ser dispensada) é o chamado princípio da autonomia de actuação dos credores. Na falência, os credores – todos eles – podem ser afectados pelos actos que da massa falida excluam ou pretendam excluir certos bens, são todos interessados, quando a apreensão ocorre ou pode ocorrer em processo sem carácter universal, os actos de exclusão de bens merecem uma repercussão restrita. O instituto falimentar tem de ser organizar procurando um equilíbrio entre os interesses de quantos nele possam ou devam intervir – falido, credores, promitentes, titulares de direitos reais de gozo sobre os bens, terceiros coobrigados, terceiros garantes da obrigação, etc. Diversamente quando o acto que possa constituir agressão de direito real de gozo se insira em processo sem aquela natureza universal. É na sentença que a apreensão é decretada, procedendo-se de imediato à apreensão dos bens. Não há um despacho autónomo e posterior à sentença. Apreendidos os bens, se eles pertencerem a terceiro, tem este de se servir dos meios específicos que o CPEREF consagra, o que não obstaculiza a iniciativa do liquidatário desde que obtenha parecer favorável da comissão de credores. Reclamando a restituição ou a separação de bens, o seu dono funda o seu pedido na relação de domínio (art. 201 –1-a)) e o terceiro na titularidade de direito real de gozo sobre bens de que o falido não tinha sequer a posse (art. 201 – 1 – c)). A reclamação tem assim de assumir a natureza de acção reivindicatória. A reclamação e a reivindicação são os meios próprios para se fazer valer o direito real de gozo sobre os bens apreendidos em processo de falência e a lei não prevê – porque não quis concedê-la – qualquer providência cautelar a instaurar por quem se arroga ou virá a arrogar-se como reclamante ou reivindicante. Nem tinha a lei que tratar como igual aquilo que é desigual nem devia descurar quer o carácter do processo de falência quer o equilíbrio entre os vários interesses que aí se debatem. (...)'. O carácter universal da execução em processo de falência e os interesses dos credores do falido cujos créditos só poderão vir a ser satisfeitos (ainda que parcialmente) pela massa falida razoabilizam ainda que em fase de apreensão de bens e antes de esta concretizada se 'intrometam' embargos suspensivos, num contexto em que os direitos dos terceiros ofendidos com a apreensão não deixam de merecer tutela adequada quando está mais próximo o apuramento da exacta dimensão da massa falida.
A interpretação normativa questionada pela concorrente não ofende, deste modo, o princípio da igualdade, não consubstanciando qualquer arbítrio constitucionalmente censurável.
8 – O que se deixou dito é também suficiente para se entender que se não verifica qualquer ofensa ao direito de propriedade. Como sublinham Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pág. 332 e 334 'O direito de propriedade é garantido 'nos termos da Constituição' ... trata-se de sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e nos termos previstos e definidos noutros lugares da Constituição.
(...) Elemento essencial do direito de propriedade consiste no direito de não se ser privado dela. Este direito, porém, não goza de protecção constitucional em termos absolutos, estando garantido apenas um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade ...' Ora, não pode obviamente a Constituição obstar a que, por determinadas circunstâncias – no caso, o facto de os bens da recorrente se encontrarem nas instalações da empresa falida – venham a ser apreendidos para a massa falida bens de terceiro. O que a Lei Fundamental neste caso impõe é que o titular desses bens disponha de meios eficazes de defender o seu direito – e já vimos que dispõe. Mas se se quiser admitir alguma limitação desses meios (pela inviabilidade de embargos preventivos) então há-de reconhecer-se que a especial modelação dos meios previstos no processo de falência resulta não só das características próprias deste processo como da confluência de direitos patrimoniais de igual natureza que, constitucionalmente, merecem a mesma tutela dos direitos de terceiros. E a harmonização dos interesses, por vezes conflituantes, que se faz não é desproporcionada, uma vez que – repete-se – não determinou uma carência de meios eficazes de defesa dos direitos de terceiros.
E se assim se não entende violado o direito de propriedade, não se vislumbra mesmo onde e como se pode considerar ofendido – a recorrente também o não diz - o direito (não absoluto) à iniciativa privada consagrado no artigo 61º da Constituição
9 – Sustenta, ainda, a recorrente que as normas em causa violam o princípio da determinabilidade das leis, decorrente do princípio da confiança ou da segurança jurídica.
Sobre este princípio escreveu-se no Acórdão nº 285/92 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 22º vol. págs. 159 e segs.:
'Sobre o princípio da precisão ou determinabilidade das leis Gomes Canotilho (Direito Constitucional, 5ª ed. Coimbra, 1991, pp. 376 e segs) entende que o mesmo , sob o ponto de vista intrínseco, reconduz-se às seguintes ideias: exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alcançar uma solução jurídica para o problema concreto; exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo que não contém uma disciplina suficientemente concreta ('densa', determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de:
- alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos;
- constituir uma norma de actuação para a administração;
- possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos.
Pormenorizando o sentido destas linhas de força do aludido princípio, o mesmo autor sublinha que estamos perante uma situação que tem a ver com as relações 'legiferação-aplicação da lei'. Com efeito a indeterminabilidade normativa pode significar delegação de competência de decisão, isto é, pode traduzir-se em situações onde a lei deixa à administração amplos poderes de decisão, reconduzindo-se assim a um problema de distribuição de tarefas entre o legislador e o aplicador das leis.
Na decorrência deste ponto de vista, o citado autor refere que 'o controlo destas 'normas abertas' deve ser reforçado'. Elas podem, por um lado, dar cobertura a uma inversão das competências constitucionais e legais; por outro lado, podem tornar claudicante a previsibilidade normativa em relação ao cidadão e ao juiz. De facto, as cláusulas gerais podem encobrir uma 'menor valia' democrática, cabendo, pelo menos, ao legislador, uma reserva global dos aspectos essenciais da matéria a regular. A exigência de determinabilidade das leis ganha particular acuidade no domínio das leis restritivas ou de leis autorizadoras de restrição.'
E, mais adiante, escreve-se no mesmo acórdão:
'Reconhece-se, sem dificuldade, que o princípio da determinabilidade ou precisão das leis não constitui um parâmetro constitucional 'a se', isto é, desligado das matérias em causa ou da conjugação com outros princípios constitucionais que relevem para o caso. Se é, pois, verdade que inexiste no nosso ordenamento constitucional uma proibição geral de emissão de leis que contenham conceitos indeterminados, não é menos verdade que há domínios onde a Constituição impõe expressamente que as leis não podem ser indeterminadas, como
é o caso das exigências de tipicidade em matéria penal constantes do artigo 29º, nº 1 da Constituição, e em matéria fiscal (cfr. artigo 106º da Constituição) ou ainda enquanto afloramento da princípio da legalidade (nulla poena sine lege) ou da tipicidade dos impostos (null taxation without law)'.
Cabe, desde já, acentuar que a matéria regulada nas normas em causa não tem, nem de longe nem de perto, qualquer afinidade com aquelas que, usualmente, justificam o confronto com o princípio da determinabilidade das leis.
Com efeito, não se está, desde logo, perante normas restritivas de direitos fundamentais – elas são, tão só, normas que definem os meios processuais próprios para, em processo de falência, defender direitos de terceiro afectados pela apreensão de bens ordenada em tal processo, meios esses que se entendeu serem suficientes e eficazes para o efeito – nem nos situamos naqueles domínios onde a Constituição impõe que as leis não podem ser indeterminadas.
Por outro lado, não está, de todo, em causa, nas normas questionadas, com o sentido em que foram aplicadas, a utilização pelo legislador de cláusulas gerais ou de 'conceitos indeterminados'.
A natureza da matéria em causa e a ausência de outros princípios convocáveis para o caso acabam, assim, por reduzir o princípio da determinabilidade das leis a um 'parâmetro constitucional 'a se'. Em rigor, a recorrente faz incluir, nesse princípio, o que não passa de uma regra de 'boa feitura das leis', aplicável a toda e qualquer norma – e não é, seguramente, esse o âmbito (excessivo) do princípio que o faz erigir à dignidade constitucional. Em rigor, o que a recorrente questiona é o que (para ela) representa uma dificuldade interpretativa das citadas normas – dificuldade, aliás, ultrapassável por mera aplicação critérios legais da interpretação das leis. Na verdade e sendo certo que se não conhece jurisprudência (nem a recorrente a indica) que revele qualquer equivocidade no sentido das normas em apreço, o objectivo de condensar em diploma próprio (o CPEREF) toda a matéria respeitante ao processo de falência, a expressa impossibilidade de o lesado pela apreensão de bens lançar mão dos embargos de terceiro (género onde se integram os embargos com função preventiva) e a remissão que é feita no artigo 359º nº 1 do CPC para
'o disposto nos artigos anteriores, com as necessárias adaptações' onde se integra a disposição que estabelece a citada impossibilidade, são elementos interpretativos que se conjugam no sentido de justificar a leitura (no mínimo mais plausível) das normas feita no acórdão recorrido. Improcede também, assim, a alegada inconstitucionalidade.
10 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003 Artur Maurício Maria Helena Brito Pamplona de Oliveira Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa