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Proc. nº 144/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A, recorrente nos presentes autos, foi acusado pelo Ministério Público, ora recorrido, da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível nos termos dos artigos 23º e 24º, n.º 2, do Decreto n.º 13004, de 12 de Janeiro de 1927, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, no Tribunal Judicial de Paredes.
Por despacho de 22 de Maio de 1992, este tribunal declarou a contumácia do arguido. Em 9 de Março de 2001, o mesmo tribunal indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido, no sentido de ser declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal.
2. Inconformado com o despacho de 9 de Março de 2001, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, apresentando – na parte relevante para o presente recurso de constitucionalidade – as seguintes conclusões:
a) Na data da prática dos factos não estava prevista como causa de suspensão da prescrição a declaração de contumácia;
b) Por conseguinte, o tribunal recorrido deveria ter declarado a prescrição do procedimento criminal;
c) O tribunal recorrido não deveria ter aplicado a doutrina do Assento n.º 10/2000 do Supremo Tribunal de Justiça – que não é obrigatoriamente aplicável, nos termos do artigo 445º, n.º 3, do Código de Processo Penal, uma vez que tal doutrina postula a aplicação de norma jurídica violadora do princípio da irretroactividade das leis penais e do 'princípio da tipicidade subjacente às leis penais e impeditivo de interpretação restritiva'.
Após ter considerado improcedente uma questão prévia suscitada pelo Ministério Público – que sustentou que o recurso não deveria ter sido admitido, ex vi do artigo 335º, n.º 3, do Código de Processo Penal, por não ser o acto urgente e haver sido interposto por arguido contumaz que ainda não se apresentara ou fora detido –, o Tribunal da Relação do Porto rejeitou o recurso interposto pelo arguido, por ser manifestamente improcedente, ao abrigo do disposto no artigo 420º do Código de Processo Penal.
3. É deste acórdão de 7 de Novembro de 2001 do Tribunal da Relação do Porto que vem o presente recurso, interposto pelo arguido, A, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70º, n.º, 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. O recorrente identifica como norma inconstitucional o artigo 119º do Código Penal de 1982 quando interpretado no sentido de que, mesmo na versão originária daquele Código, a declaração de contumácia suspende a prescrição. Sustenta que uma tal interpretação normativa viola o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição. Indica como peças processuais em que suscitou a questão de constitucionalidade o requerimento de
16 de Fevereiro de 2001 em que pediu ao Tribunal Judicial de Paredes que declarasse extinto, por prescrição, o procedimento criminal e as alegações de recurso apresentadas perante o Tribunal da Relação do Porto.
4. No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu, em síntese, do seguinte modo: a) O Código Penal de 1982 não contemplava a declaração de contumácia como causa de suspensão do prazo prescricional;
b) Só com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, tal declaração passou a ser considerada causa de suspensão daquele prazo
[cf artigo 120º, n.º 1, alínea c), do Código Penal];
c) O princípio da tipicidade penal impede a interpretação extensiva das normas que prevêem as causas de suspensão do prazo de prescrição;
d) O artigo 119º do Código Penal de 1982 viola o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição, quando interpretado no sentido de se entender que determina a suspensão do decurso do prazo prescricional por força da declaração de contumácia;
e) Em consequência, '...a decisão que indeferiu o requerimento do recorrente no sentido de ser declarada a extinção do procedimento criminal por verificação da prescrição, com fundamento no entendimento de que no domínio da vigência do Código Penal de 1982 a contumácia suspende a prescrição do procedimento criminal, [deve] ser declarada inconstitucional, por violação dos preceitos constitucionais supracitados...'
Por seu turno, o Ministério Público concluiu as respectivas alegações do seguinte modo:
a) O legislador do Código Penal de 1982 não definiu as causas de suspensão do procedimento criminal através de uma tipologia taxativa, já que o n.º 1 do artigo 119º inclui uma cláusula geral ou de remissão, considerando relevante quaisquer 'situações especialmente previstas na lei' e dotadas daquela eficácia suspensiva;
b) A natureza 'aberta' desta norma não permite encarar uma ilegítima aplicação – por interpretação extensiva ou aplicação analógica –, ao contrário do que sucede em sede de interrupção da prescrição, dada a diferente estrutura normativa do artigo 120º do Código Penal;
c) A decisão judicial que se pronunciou sobre a concretização ou densificação de uma cláusula geral ou de remissão não constitui questão de constitucionalidade normativa, idónea para integrar objecto de um recurso para o Tribunal Constitucional.
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente, após questionar que a norma do n.º 1 do artigo 119º do Código Penal de 1982 permita uma interpretação
'actualizadora' (que integre a declaração de contumácia no elenco das causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal), sustentou que o objecto do recurso de constitucionalidade é '...a aplicação do preceito em determinado sentido, que se aponta concretamente, abrangendo aspectos substantivos e processuais...'.
5. Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação A A questão prévia da admissibilidade do recurso
6. Em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional aprecia a conformidade aos princípios e normas constitucionais de normas jurídicas infraconstitucionais. O julgamento pode ter como objecto uma norma numa determinada dimensão ou interpretação, podendo o Tribunal Constitucional até julgar não inconstitucional a norma numa certa interpretação (cf Acórdão n.º 170/2002 – D.R., II, de 1 de Junho de 2002).
De todo o modo, o que está vedado ao Tribunal Constitucional é julgar inconstitucionais decisões de outros tribunais, em si mesmas consideradas, visto que a Ordem Jurídica portuguesa não consagra o chamado
'recurso de amparo'.
Por conseguinte, não cabe ao Tribunal Constitucional 'declarar inconstitucional' a decisão judicial que indeferiu o requerimento do recorrente no sentido de ser declarada a extinção do procedimento criminal, como sustenta o recorrente nas suas alegações perante este Tribunal: por um lado, o objecto do julgamento só pode ser uma norma – ainda que numa certa dimensão ou interpretação; por outro lado, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, este Tribunal não declara a inconstitucionalidade de normas
(o que só acontece em sede de fiscalização abstracta sucessiva), mas julga inconstitucionais ou não inconstitucionais essas normas. Todavia, no requerimento de interposição de recurso – e também nas próprias alegações – o recorrente identificou como norma inconstitucional o artigo 119º do Código Penal de 1982, quando interpretado no sentido de incluir, entre as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, a declaração de contumácia.
Ora, esta identificação normativa, acompanhada da alegação de que está em causa uma violação do princípio da tipicidade penal, consagrado no artigo 29º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, constitui indicação bastante para se concluir pela existência de objecto idóneo do recurso de constitucionalidade. Também a configuração normativa da delimitação das causas de suspensão da prescrição no artigo 119º, n.º 1, do Código Penal como 'norma aberta' ou de remissão não pode ser obviamente obstáculo a que se conheça da questão de saber, no plano da constitucionalidade, se as possibilidades interpretativas a que conduz afecta uma eventual exigência de precisão ou de tipicidade, como corolário do princípio da legalidade.
Não procede, pois, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
B A alegada violação do princípio da legalidade
7. O artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982 inclui uma cláusula geral ou de remissão, considerando relevantes para efeitos de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal 'situações especialmente previstas na lei'. Ora, à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982, a Ordem Jurídica portuguesa não contemplava ainda o instituto da contumácia – que só viria a ser consagrado no Código de Processo penal de 1987.
É precisamente neste desfasamento temporal que assenta a alegação de violação do princípio da tipicidade penal, consagrado no artigo 29º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, deduzida pelo recorrente. Mas essa alegação desenvolve-se, ambiguamente, em duas direcções: a eventual inconstitucionalidade de uma enumeração não taxativa das causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal; a pretensa inconstitucionalidade de uma interpretação
'actualizadora' da tipificação 'aberta'.
8. O princípio da tipicidade exprime-se, em direito penal, na exigência de normas prévias, escritas e precisas. As normas incriminadoras – e, mais amplamente, as normas penais positivas, isto é, as normas que geram ou agravam a responsabilidade – só podem cumprir a sua finalidade preventiva geral e satisfazer o desígnio da segurança jurídica que enforma o princípio da legalidade e o próprio Estado de direito democrático se houverem entrado em vigor antes da prática das condutas criminosas e forem efectivamente cognoscíveis pelos destinatários.
Na Constituição, estes requisitos traduzem-se nas exigências de lei prévia e expressa (artigo 29º, n.ºs 1, 3 e 4), que constituem a essência do princípio da legalidade penal, e ainda, no domínio da determinação das fontes normativas, na atribuição de uma reserva relativa de competência legislativa à Assembleia da República [artigo 165º, n.º 1, alínea )].
9. Ao invocar a violação da exigência constitucional de tipicidade, o recorrente pretende que a declaração de contumácia se não encontrava expressamente prevista como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal (pressupondo que tal é exigível, uma vez que a não suspensão de tal prazo implica a efectivação da responsabilidade penal).
O recorrente identifica como norma inconstitucional o artigo 119º
(n.º 1) do Código Penal de 1982, na medida em que a referência a qualquer caso
'especialmente previsto na lei' abranja uma situação futura. A verdade, porém, é que o princípio da legalidade – e, em concreto, a exigência de tipicidade – não requer que todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal estejam previstas na mesma norma legal. Apenas pode postular que a norma que preveja cada uma (ou várias) daquelas causas seja suficientemente precisa e seja emitida pela Assembleia da República ou pelo Governo, no uso da indispensável autorização legislativa [artigo 198º, n.º1, alínea b), da Constituição].
Mas nada obsta a que uma norma – no caso, o artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982 – remeta para outras normas a consagração, em concreto, de causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal. Esta conclusão não é invalidada pela circunstância de a norma que consagra a causa de suspensão do prazo prescricional – o artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 – ser posterior. Na verdade, a cláusula 'geral' ou de
'remissão' dirige-se a todas as normas que vigoravam à data da sua entrada em vigor ou hajam entrado em vigor posteriormente (mas, claro está, na sua vigência). Esta técnica legislativa em nada contraria o princípio da legalidade, bastando ter em conta, para o evidenciar, que uma enumeração taxativa (do artigo
119º, n.º 2, do Código Penal de 1982) poderia ser livremente revogada por uma norma de idêntico valor hierárquico (artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987), que consagrasse uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.
10. No domínio da aplicação da lei no tempo, apenas poderá subsistir a questão de saber se o princípio da legalidade não foi violado – agora na dimensão de proibição da retroactividade in pejus, consagrada no artigo
29º, n.ºs 2 e 4, da Constituição – na medida em que a nova causa de suspensão do prazo prescricional abrangeria factos criminosos praticados antes da sua consagração.
Esta questão não é suscitada pelo recorrente mas cabe no âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, uma vez que este pode julgar inconstitucional uma norma com fundamentos diversos dos deduzidos pelo recorrente – incluindo a violação de diferentes princípios constitucionais (cf artigo 79º - C da Lei do Tribunal Constitucional).
11. O caso de 'retroactividade' com que nos confrontamos, nos presentes autos, constitui uma situação de retroactividade de segundo grau
(artigo 12º, n.º 2, segunda parte, do Código Civil), 'retroactividade inautêntica' ou 'retrospectividade'. A norma do artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal não se aplica retroactivamente – aplica-se para o futuro a processos crimes ainda pendentes, embora resultantes de crimes cometidos no passado.
Esta solução normativa só poderia ser julgada inconstitucional se ofendesse de modo arbitrário, inesperado ou desproporcionado, expectativas do agente do crime contemporâneas da prática do facto (artigo 2º e 29º, n.ºs 1, 3 e
4, da Constituição). Ora, não se pode inferir do princípio da confiança, que constitui corolário do Estado de direito democrático, a exacta cognoscibilidade de todas as causas de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal no momento da prática do facto.
Por isso, a interpretação e consequente aplicação temporal que o tribunal a quo fez do artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982 não viola o princípio da legalidade, na sua exigência de não retroactividade in pejus.
12. Por fim, seria ainda possível questionar se a determinação da
'suspensão dos termos ulteriores do processo', estatuída pelo artigo 336º, n.º
1, do Código de Processo Penal (na sua versão originária, correspondente ao artigo 335º, n.º 3, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), constitui disposição bastante para se concluir pela presença de uma causa de suspensão do prazo prescricional 'especialmente previsto na lei'. Poderia pôr-se em causa, de novo, a satisfação dos ditames da tipicidade, na medida em que se concluísse que a expressão 'termos ulteriores do processo' é ambígua e não obedece ao desígnio de precisão decorrente do princípio da legalidade.
Todavia, como sustenta nas suas alegações junto deste Tribunal o Ministério Público, tal questão normativa jamais foi suscitada pelo recorrente. Este, com efeito, apenas arguiu a inconstitucionalidade do artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982, ainda que numa certa interpretação. Nunca chamou à colação o artigo 336º, n.º 1, do Código de Processo Penal de 1987 ou invocou a inconstitucionalidade dessa norma. Por isso, o Tribunal Constitucional não pode conhecer da referida questão.
III Decisão
13. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 119º, n.º 1, do Código Penal de 1982, quando interpretada no sentido de abranger, como causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, a declaração de contumácia e nega, por conseguinte, provimento ao presente recurso de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa,29 de Outubro de 2002 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa