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Proc. nº 394/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A, com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 104 e segs. pedindo a apreciação da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 9º e 27º nº 2 do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, adiante designado por CPEREF, na interpretação dada por aquele acórdão.
Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
'1 – Quando a Lei estabelece uma distinção para um determinado universo de sujeitos, essa distinção carece sempre de uma justificação racional, ou seja, independentemente de quaisquer outros considerandos, do ponto de vista constitucional a norma em causa exige uma análise no sentido da igualdade.
2 – Não se vislumbra justificação para que, in casu, o STJ tenha estabelecido uma distinção entre os prazos de caducidade para requerer a falência de avalista e para requerer a falência do avalizado (e, para mais, sobrevivendo aquele prazo a este).
3 – É na ausência de fundamento material capaz de justificar que, caducado o direito de requerer a falência de um comerciante, se possa ainda requerer a falência de um não comerciante, simples avalista de uma livrança subscrita pelo primeiro, que reside a alegada inconstitucionalidade.
4 – A interdependência de planos, reclamada pela estrutura interna do princípio da igualdade, exige que o critério que serve de base ao juízo de qualificação da igualdade encontre a sua justificação no fim a atingir com o tratamento jurídico. E, para que tal aconteça, a conexão entre o critério e o fim tem de ser razoável e suficiente.
5 – Ora, cremos que, vista por este prisma e usando aquela mesma terminologia, a distinção entre os prazos de caducidade, feita pelo tribunal recorrido, 'a conexão entre o critério e o fim' surge-nos 'insuficiente', e, por isso, carecida de 'razoabilidade'.
6 – Sobretudo, in casu, é, a todos os títulos, chocante admitir que o requerente já não possa requerer a falência da subscritora de uma livrança por esta ter cessado a sua actividade em 1994 e, por tanto, por ter caducado o direito de pedir a falência, e o possa continuar a fazer contra o requerido, simples avalista da mesma livrança.
7 – A interpretação dada pelo Tribunal recorrido aos artigos 27º e
9º da CPEREF no sentido de que contra um cidadão não comerciante, avalista de uma livrança subscrita por um comerciante, pode ser sempre requerida a falência, ao contrário do que sucede relativamente ao comerciante (pessoa singular ou colectiva) avalizado, atenta contra direitos pessoais e princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa como sejam o da igualdade, da protecção da vida familiar, o da capacidade civil, o da dignidade humana violando, pois, nos termos supra alegados a Constituição da República Portuguesa nos seus artºs
26º, 13º, nº 1 e 18º nº 2.
8 – Devem, pois, ser correctamente interpretados os referidos artºs
27º nº 2 e 9º do CPEREF, no sentido de considerar que está sujeito ao mesmo prazo de caducidade do requerimento de falência contra a subscritora da livrança, o requerimento de falência contra o mero avalista não comerciante da mesma.
Nestes termos, ou nos mais de Direito previstos no artº 79º-C da Lei
28/82, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, por via dele, serem julgados inconstitucionais os artºs 8º, 1, 9º e 27º, 2 da Código de Processo de Recuperação de Empresas e de Falência, na interpretação que lhes é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, com os efeitos previstos no artº 80º da LTC'.
Em contra-alegações, o Ministério Público concluiu nos seguintes termos:
'1 – A circunstância de o artigo 9º do CPEREF facultar ao credor de quem exerce uma actividade empresarial a possibilidade de requerer a respectiva falência até um ano após a cessação de tal actividade não traduz a consagração de qualquer regime discriminatório ou de desfavor relativamente aos devedores insolventes que – não exercendo qualquer actividade empresarial – não podem pela
'natureza das coisas' fazê-la cessar.
2 – Não traduz solução legislativa arbitrária ou discricionária a que se traduz, em sede de direito falimentar, na previsão de regimes parcialmente diferenciados para os comerciantes ou empresas e para os cidadãos, em situação de insolvabilidade, que não exerçam qualquer actividade empresarial, já que o exercício desta pode legitimamente determinar, pela sua especificidade relevante, a necessidade de um tratamento específico da respectiva situação de insolvabilidade.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
O B sustenta igualmente que o recurso não merece provimento.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – O objecto do recurso de constitucionalidade fica delimitado no requerimento de interposição de recurso, não podendo, assim, ser ampliado nas subsequentes alegações.
No caso, o recorrente pede nos termos das alegações que apresentou o julgamento de inconstitucionalidade das normas dos artigos 8º, nº 1, 9º e 27º, nº 2 do CPEREF; no requerimento de interposição do recurso o pedido de apreciação de inconstitucionalidade reporta-se apenas às duas últimas normas citadas, pelo que o Tribunal não conhecerá do pedido relativo à norma do artigo
8º, nº 1 do CPEREF.
3 – As normas em causa dispõem como segue:
Artigo 9º Prazo especial de requerimento da falência
No caso de o devedor ter falecido ou cessado a sua actividade, a falência pode ainda ser requerida por qualquer credor interessado ou pelo Ministério Público, dentro do ano posterior a qualquer dos factos referidos nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo anterior, quer a situação de insolvência se tenha revelado antes, quer depois da morte ou da cessação de actividade do devedor.
Artigo 27º
Devedor não titular de empresa
1 -
.........................................................................................................
2 – É aplicável ao devedor insolvente não titular de empresa, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos anteriores relativamente à falência.
A questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente reporta-se a uma interpretação destas normas no sentido de que ao devedor insolvente não titular de empresa se não aplica o prazo de caducidade.
Trata-se, aliás – diga-se desde já – de uma interpretação que o STJ já havia acolhido no Acórdão de 26/11/96 in BMJ nº 461, p. 384.
É sabido que o CPEREF pôs fim à distinção entre as situações de insolvência de comerciantes (esta qualificada de 'falência') e de não comerciantes (anteriormente qualificada de 'insolvência'), distinção que se fazia, pois, com base na qualidade do devedor.
Com o CPEREF, que caracteriza a situação de insolvência tendo em conta a impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações do devedor (artigo
3º), o devedor não titular de empresa pode igualmente ser declarado em situação de falência (artigo 27º nº 1).
Isto não significa, porém, que o regime da falência seja integralmente aplicável aos devedores não titulares de empresa, tal como dispõe o nº 2 do citado artigo 27º.
De facto, esse regime é aplicável 'com as necessárias adaptações', sendo certo que algumas das disposições do CPEREF não podem, de todo, abranger a situação daqueles devedores, no ponto em que pressupõem – e só assim se compreendem – a titularidade de uma empresa, definida nos termos do artigo 2º como 'toda a organização dos factores de produção destinada ao exercício de qualquer actividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços'.
De resto, já no regime estabelecido no Código de Processo Civil, apesar da apontada distinção, se aplicavam à insolvência, para além de normas específicas, normas respeitantes à falência mas apenas 'na parte não relacionada com o exercício da profissão de comerciante' (artigo 1315º).
O que se dispunha então sobre prazos de caducidade para o requerimento da falência ?
Noa termos do artigo 1175º do CPC, a declaração de falência podia ser requerida no prazo de três anos, a contar da verificação dos factos expressamente previstos no artigo anterior (que constituíam 'motivos de declaração de falência') 'ainda que o comerciante tenha deixado de exercer o comércio' (nº 1) podendo, ainda, se alguns daqueles factos ocorresse 'nos primeiros seis meses após a cessação do exercício do comércio por parte do devedor', iniciar-se a instância de falência nos dois anos subsequentes à respectiva ocorrência (nº 2).
Era este, precisamente, um dos casos em que uma norma relativa à falência não era aplicável aos não comerciantes; ou seja, tal como era entendido pela jurisprudência do STJ (cfr. Acs. Do STJ de 22/5/73 e 26/6/91 in BMJ nºs
227, p. 105 e 408 p. 483), não havia prazo de caducidade para a declaração de insolvência.
De todo o modo, deve assinalar-se, como sustentam em anotação ao artigo 9º do CPEREF, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda ('Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado' , p. 89) – e reportando-nos agora apenas à cessação de actividade do devedor – que, determinado esta cessação 'a impossibilidade de abertura da instância falimentar, exactamente por não haver já sujeito passivo da declaração de falência', o citado regime do CPC 'somente podia representar uma extensão do limite temporal dentro do qual a falência podia ser requerida' (sublinhado nosso).
No regime do CPEREF deixa de fixar-se um prazo geral de caducidade para ser requerida a falência a que todos (comerciantes ou não comerciantes) passam a ficar sujeitos.
Mas pode dizer-se que aquela 'extensão do limite temporal' em que a falência pode ser requerida continua, pelas mesmas razões, a fazer sentido uma vez que a 'cessação da actividade' na falta de um preceito com o teor do artigo
9º do CPEREF, determinaria igualmente a impossibilidade de ser requerida a falência.
Como se disse, o que o recorrente questiona, sub specie constitutionis, é que este prazo se não aplique ao devedor não titular de empresa, pondo deste logo em causa o princípio da igualdade.
Ora, pelo que já se expendeu, não pode, desde logo, considerar-se que o aludido prazo constitua um privilégio dos titulares de empresas; como alega o Magistrado recorrido, ele constitui um 'ónus acrescido de terem de suportar a instauração de um processo de falência mesmo após a sua 'extinção' ou cessação de actividade'.
Por outro lado, é evidente que muito dificilmente se poderá falar em
'cessação de actividade' – e é este o elemento fundamental que está na base da diferença de regime – no caso dos devedores não titulares de empresas .
Se, pela própria 'natureza das coisas', a diferenciação tem razão de ser, a verdade é que a não cessação de actividade por parte daqueles devedores continua a pôr em risco (ou até a agravá-lo) a possibilidade dos credores verem cobrados, ao menos parcialmente, os seus créditos, justificando-se, assim, que se não estabeleça nenhum prazo de caducidade.
Não se poderá, no entanto, ficar por aqui – justificando a diferença de regimes pela diferença de situações a que se aplicam, ou pela razoabilidade dessa diferença - para concluir que se não verifica nenhuma violação do princípio da igualdade, considerando os termos em que o recorrente argui a inconstitucionalidade.
Com efeito, o recorrente coloca ainda a questão de constitucionalidade por se tratar de um caso em que a falência já não pode ser requerida quanto à empresa subscritora da livrança que o recorrente avalizou, o que determinaria a desrazoabilidade de uma solução (uma interpretação) que, não obstante, permite o requerimento de falência do avalista, mero garante da obrigação.
Mas não tem razão.
Subjacente à alegação do recorrente surpreende-se um entendimento que 'desvaloriza' a obrigação do avalista face à do avalizado de modo que a impossibilidade de requerer a falência deste deveria determinar igual impossibilidade quanto àquele.
Ora, como se escreveu no recente Acordão nº 414/02 (inédito) deste Tribunal, 'o dador do aval é um responsável solidário e cumulativo pelo cumprimento do obrigação pecuniária em causa, nos mesmos termos que a pessoa por ele avalizada; ele assume uma obrigação com conteúdo patrimonial, o que necessariamente implica o dever de gerir o seu património de modo a poder cumprir essa obrigação se for chamado a solvê-la'.
Nesta medida, o que, com autonomia, releva é o facto de o avalista ter assumido uma obrigação patrimonial e revelado incapacidade na gestão do seu património, não só para cumprir a obrigação de que o requerente é credor como 'a generalidade das suas obrigações' – o que dá causa à instauração do processo de falência.
Se se mantêm a obrigação do avalista (ela pode entretanto prescrever) e aquela incapacidade, é de todo indiferente que não seja já possível, por cessação da actividade da empresa avalizada, o pedido de falência desta, persistindo o interesse dos credores na manutenção do acervo patrimonial do devedor.
A 'diferença de tratamento' é também deste ponto de vista justificada e isenta de arbítrio.
Invoca, ainda, o recorrente a violação de 'direitos pessoais e princípios fundamentais', 'como sejam o da (...) protecção da vida familiar, o da capacidade civil e o da dignidade humana', citando, a propósito os artigos
26º e 18º nº 2 da CRP.
Já no citado Acórdão nº 414/02 se escreveu sobre a sujeição à falência dos devedores não comerciantes, com os efeitos previstos nos artigos 147º, 148º e
149 do CPEREF - não podendo ser outros os que o recorrente tem presentes para aquela invocação – que não ocorria a violação do artigo 26º da CRP 'uma vez que a declaração de falência nada tem em si de infamante ou que atinja a integridade moral, o bom nome ou reputação do falido (basta recordar que a falência pode ser casual); nem tão pouco afecta o seu direito à capacidade civil, mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há unanimidade na doutrina, no sentido de que se não trata de uma situação de 'incapacidade')
(...).'
E se isto é assim – como é – com a sujeição à falência, não se vê que o deixe de ser pelo facto de não estar previsto prazo de caducidade para se requerer a falência.
Com efeito, para além de ser o devedor quem, com a sua conduta, dá causa à falência, não poderá esquecer-se que, seja em que momento for, ela só será decretada se ficar provada a impossibilidade de o devedor cumprir pontualmente as suas obrigações. E, deste modo, mantém-se, o direito patrimonial dos credores, cuja salvaguarda sempre justificaria uma restrição – se como tal se entendesse – dos invocados direitos do devedor, restrição essa que se configuraria como radicada em razões constitucionalmente atendíveis e prescrita em termos proporcionados e justos e, logo, sem ofensa do disposto no artigo 18º nº 2 da CRP.
Improcedem, assim, todos os fundamentos do recurso.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 12 de Novembro de 2002- Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa