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Processo n.º 687/02
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A recorrente A deduziu reclamação para a conferência, nos termos do n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(doravante designada por LTC), contra a decisão sumária de não conhecimento do presente recurso, subscrita pelo primitivo Relator.
Essa decisão sumária é do seguinte teor:
'1. A, com os sinais identificadores dos autos, veio «interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.° l do artigo 70.° da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26 de Fevereiro de 2002, constante de fls. ..., com fundamento na violação dos artigos 13.°, 20.°, n.° 1, e 32.°, n.° 7, todos da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, do bom nome e do acesso ao direito e aos tribunais», acrescentando que as normas violadas «e cuja inconstitucionalidade se pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional são as seguintes: 1. Artigo 412.°, n.° 3, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, na interpretação de que não é suficiente a especificação dos suportes técnicos dos quais constam os depoimentos gravados das testemunhas quando se pretende que sejam apreciados na íntegra apenas alguns dos depoimentos especificados e o recurso tem subida imediata e nos próprios autos, entendendo a recorrente que o referido normativo deve ser interpretado no sentido de que os tribunais da Relação devem admitir o recurso e reapreciar a prova indicada sempre que: a. Sejam invocadas contradições intrínsecas nas declarações de algumas testemunhas de acusação e destas testemunhas entre si e com algumas das testemunhas de defesa, tendo sido indicados quais os pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e quais os suportes técnicos em que se encontram as provas que impõem decisão diversa, sendo suficiente para a concretização deste pressuposto, quando a prova está gravada, a indicação dos depoimentos das testemunhas cujas declarações se pretende que sejam reapreciadas, sendo certo que é suficiente a invocação de contradições generalizadas, que é diferente de genéricas, nessas declarações conjugada com a circunstância destas declarações serem muito curtas (o que não é necessário alegar) para que devam ser ouvidas as declarações integrais, sob pena de a selecção de alguns extractos descontextualizar o que for extraído com prejuízo da verdade material; 2. Artigo 412.°, n.° 4, do Código de Processo Penal, na interpretação de que, em conjugação com o n.° 3 do mesmo artigo, impõe que a transcrição das provas deve ser realizada pela recorrente» («A questão da inconstitucionalidade foi suscitada na peça processual da recorrente remetida ao Tribunal da Relação de Lisboa por correio electrónico de 12 de Março de 2002 e por correio postal registado de 14 de Março de 2002» – finaliza assim a recorrente o respectivo requerimento).
2. A citada «decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em
26 de Fevereiro de 2002» é o acórdão daquele Tribunal (5.ª Secção Criminal) que rejeitou o recurso interposto pela recorrente «por manifestamente improcedente, estando este Tribunal impossibilitado objectivamente de dele conhecer, por falta das referências apontadas, nos termos dos artigos 420.°, n.° l, do Código de Processo Penal», mantendo a sentença da instância «que julgou procedente a acusação e condenou a arguida [ora recorrente], como autora material de um crime de injúrias previsto e punido pelo artigo 181.°, n.° 1, do Código Penal, na pena de 40 dias de multa à razão diária de 500$00, com 26 dias de prisão subsidiária, sem que tivesse sido condenada no pagamento de custas».
Aquele acórdão recorrido aplicou efectivamente o questionado artigo
412.° do Código de Processo Penal, apreciando o recurso penal na base desse preceito, para concluir, no essencial, o seguinte:
«Não tendo ela [a recorrente] especificado concretamente que parte dos meios de prova produzidos determinariam a fixação de outra factualidade, não permitirá ao tribunal de recurso mais do que uma apreciação genérica dos depoimentos produzidos e a que alude, o que não é permitido, uma vez que o recurso de facto não se destina a permitir um 2.° julgamento mas a uma apreciação por este tribunal de exactas e concretas questões de facto contidas na sentença sob crítica.
O modo genérico como a recorrente critica a forma como o tribunal valorou as provas apenas permitiria, se passássemos a conhecer do recurso, que este tribunal pudesse apenas proceder a uma apreciação também geral da forma como o tribunal apreciou as provas, o que nada traria de útil a esta discussão, pois não permitiria a apreciação concreta de certos meios de prova e da razão por que o tribunal considerou uns mais credíveis do que os outros, por forma a atingir a sua convicção acerca de certos factos, em determinado sentido.
E nem, por se tratar de julgamento perante tribunal singular, se deverá argumentar que deveria a prova ter sido toda ela reduzida a escrito por assim decorrer do artigo 364.° do Código de Processo Penal, pois a insuficiência da motivação da recorrente não ficaria suprida por tal documentação integral da prova não substituir a especificação das passagens da prova que importam decisão de facto diversa da que foi proferida» (e daí o julgamento da arguição de recurso «por manifestamente improcedente, estando este tribunal impossibilitado objectivamente de dele conhecer, por falta das referências apontadas, nos termos do artigo 420.°, n.° l, do Código de Processo Penal»).
3. Acontece que na motivação do recurso penal a recorrente limitou-se a impugnar a decisão proferida em matéria de facto – e foi gravada a prova produzida em julgamento –, questionando a «incorrecção no julgamento da matéria de facto» e que, em face da prova proferida, «o Tribunal a quo devia ter dado como não provado (...)» ou que «o Tribunal a quo deveria ter dado como provado (...)», e
«sempre deveria ter absolvido a arguida por estar a agir em legítima defesa, em consequência de provocação» (requerendo no final «a reapreciação dos depoimentos das testemunhas B, C, D, E e F, por transcrição (cf. artigo 412.°, n.° 4, e 4.° do Código de Processo Penal e 690.° do Código de Processo Civil»).
Toda essa motivação vem, pois, gizada na órbita do questionado artigo
412.°, mas não se avança uma só palavra sobre qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, a propósito dessa norma (ou de uma qualquer sua dimensão interpretativa), que necessariamente haveria de ser aplicada, como foi, no acórdão recorrido.
O Tribunal de Relação não foi, pois, confrontado com nenhuma questão desse tipo, como teria de ser, face à exigência do n.° 2 do artigo 72.° da Lei n.° 28/82, na redacção do artigo 1.° da Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro.
É certo que a recorrente identifica pelo correio electrónico uma
«peça processual» em que pretensamente foi suscitada a «questão de inconstitucionalidade», mas essa peça é uma reclamação apresentada «nos termos do disposto nos artigos 669.º, n.° 2, alínea a), do Código de Processo Civil ex vi artigo 4.° do Código de Processo Penal» aí se sustentando a «correcta interpretação do artigo 412.°, n.° 3, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, sob pena de inconstitucionalidade de interpretação diversa» e a interpretação do seu n.° 4 «no sentido de que a transcrição aí referida incumbe ao tribunal de recurso, a qual será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal». Sobre essa peça processual o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu um acórdão, com a data de 14 de Maio de 2002, a «indeferir o pedido de esclarecimento ou reforma formulada pela recorrente», pois ela limita-se «a mostrar a discordância acerca da decisão proferida, mas mostrando tê-la entendido e não denunciando qualquer ambiguidade ou obscuridade da norma, mas apenas contestando a sua legalidade» e «não resulta preenchido qualquer pressuposto dos exigidos no artigo 380.° do Código de Processo Penal que possibilite a correcção de erros, lapsos ou ambiguidades que não impliquem modificação essencial da mesma», não se pronunciando sobre a pretensa matéria de inconstitucionalidade, relativamente à norma questionada.
Portanto, não sendo esse acórdão de 14 de Maio de 2002 o acórdão recorrido – a recorrente identifica de modo claro a «decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 28 de Fevereiro de 2002» – e não lhe podendo aproveitar a «peça processual» que é posterior a essa decisão (não se vendo, de resto, porque é que a recorrente não adiantou na motivação do recurso penal as ditas interpretações que fez constar dessa «peça processual»), falta o pressuposto processual específico do tipo de recurso de que se serviu a recorrente, o da suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, com a referida exigência do n.° 2 do artigo 72.° da Lei n.°
28/82 (sendo, aliás, sabido que, em regra, um articulado posterior à decisão não
é meio processualmente idóneo para suscitar tal questão – cf. acórdãos n.°s
674/99, 155/00 e 192/00, publicados no Diário da República, II Série, n.°s 47, de 25 de Fevereiro de 2000, 233, de 9 de Outubro de 2000, e 251, de 30 de Outubro de 2000, respectivamente).
Com o que, por falta desse pressuposto, não pode tomar-se conhecimento do presente recurso.'
2. Na sua reclamação, a recorrente desenvolveu a seguinte argumentação:
'1. A recorrente interpôs recurso para este Tribunal com fundamento na aplicação de uma interpretação inconstitucional do artigo 412.º, n.ºs 3, alíneas a) e b), e 4 do Código de Processo Penal.
2. A aplicação das referidas interpretações inconstitucionais foi realizada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão proferido em 26 de Fevereiro de 2002.
3. O Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator decidiu não tomar conhecimento do recurso por entender que falta um pressuposto para o efeito – o da suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa durante o processo, com a referida exigência do n.º 2 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82.
4. Este entendimento parece fundar-se no entendimento de que, em regra, um articulado posterior à decisão não é meio processualmente idóneo para suscitar tal questão.
5. Entendimento este que se esteia, entre outros, nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 674/99, 155/00 e 192/00 publicados no Diário da República, II Série, n.ºs 47, de 25 de Fevereiro de 2000, 233, de 9 de Outubro de 2000, e 251, de 30 de Outubro de 2000.
6. Ora, o artigo 72.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82 (na redacção da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, dispõe que «os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
7. Deste normativo, bem como dos acórdãos nomeados pelo Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator, resulta que a ou as questões de inconstitucionalidade têm de ter sido suscitadas perante o Tribunal que proferiu a decisão de forma a que este pudesse pronunciar-se sobre elas.
8. O cerne da questão está, pois, em saber se o Tribunal da Relação de Lisboa podia conhecer das questões de inconstitucionalidade depois de suscitadas pela recorrente.
9. O citado dispositivo legal não obriga a que a questão de inconstitucionalidade tivesse sido suscitada antes da decisão que aplicou a norma, ou uma sua interpretação, inconstitucional.
10. Se assim fosse, o referido preceito deveria dizer, em vez de «... modo processualmente adequado ...», «... antes de proferida a decisão que aplicou a norma, ou uma sua interpretação, inconstitucional ...».
11. O que o artigo 72.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82 visa é assegurar que o tribunal que proferiu a decisão recorrida se pudesse pronunciar sobre a questão de inconstitucionalidade suscitada.
12. Ou seja, antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
13. Esta regra é excepcionada nas situações em que a parte é confrontada com uma decisão objectivamente inesperada, anómala, insólita, nas expressões utilizadas nos mencionados acórdãos n.ºs 155/00 e 192/00.
14. Sendo que jurisprudência do acórdão n.º 155/2000 reporta-se às situações em que a inconstitucionalidade apenas é suscitada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, sendo que no caso desse acórdão e apesar disso o recurso foi admitido.
15. Por sua vez, a jurisprudência do acórdão n.º 192/00 reporta-se a uma situação em que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada em momento em que o tribunal que proferiu a decisão já tinha esgotado o seu poder jurisdicional.
16. Na questão sub judice o tribunal que proferiu a sentença não tinha esgotado o seu poder jurisdicional quando foram suscitadas as questões de inconstitucionalidade e o acórdão de 26 de Fevereiro de 2002 foi o único em que o tribunal recorrido aplicou uma interpretação inconstitucional do artigo 412.º, n.ºs 3, alíneas a) e b), e 4, do Código de Processo Penal.
17. Veja-se, a recorrente reclamou do acórdão proferido em 26 de Fevereiro de
2002 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos do disposto no artigo 669.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal (CPP) – peça processual remetida por correio electrónico em 12 de Março de 2002 e por via postal registada em 14 de Março de
2002.
18. Na referida reclamação a recorrente suscitou as questões de inconstitucionalidade pertinentes para o presente recurso de constitucionalidade, em virtude do Tribunal da Relação ter aplicado normas inconstitucionais por via da interpretação que fez das mesmas.
19. Ora, o artigo 669.º, n.º 2, alínea a), do CPC permite que o tribunal reclamado, entenda-se, neste caso, o Tribunal da Relação de Lisboa, altere a decisão desde que não caiba recurso ordinário da decisão de que se reclama, conforme resulta do disposto no n.º 3 desse mesmo artigo 669.º.
20. Com efeito, não cabendo recurso ordinário da decisão, os poderes que seriam do tribunal ad quem podem ainda ser exercidos pelo tribunal a quo.
21. Sendo que no processo penal e atento o princípio da proibição da reformatio in pejus essa alteração não pode prejudicar o arguido, mas pode beneficiá-lo ao abrigo do princípio da legalidade e do tratamento mais favorável desse cidadão que, em determinado momento da vida, ocupa o lugar de arguido.
22. Do acórdão proferido em 26 de Fevereiro de 2002 pelo Tribunal da Relação de Lisboa não era admissível recurso ordinário, pelo que este tribunal podia e deveria ter-se pronunciado sobre as questões de inconstitucionalidade suscitadas na peça processual da aqui recorrente, remetida ao tribunal por correio electrónico em 12 de Março de 2002 e por via postal registada em 14 de Março de
2002.
23. O que negou fazer, como resulta do acórdão proferido em 14 de Maio de 2002, da peça processual remetida pela aqui recorrente por correio electrónico de 30 de Maio de 2002 e por via postal registada em 31 de Maio de 2002 e do acórdão proferido em 9 de Julho de 2002.
24. Desta forma, as questões de inconstitucionalidade foram suscitadas durante o processo e, sobretudo, em momento no qual o Tribunal da Relação de Lisboa poderia ainda ter-se pronunciado utilmente sobre as mesmas.
25. Acresce que a decisão proferida em 26 de Fevereiro de 2002 foi a única decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que aplicou normas inconstitucionais, ou melhor, uma sua interpretação inconstitucional, uma vez que aquele tribunal recusou apreciar a reclamação apresentada pela recorrente nos termos do artigo
669.º, n.º 2, alínea a), do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP.
26. Assim, não poderia a decisão recorrida ser outra que não a proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26 de Fevereiro de 2002, uma vez que em nenhuma outra foram aplicadas normas inconstitucionais, sendo certo que a recorrente invocou a inconstitucionalidade das normas sub judice em momento adequado, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa teve ainda oportunidade de se pronunciar sobre a inconstitucionalidade suscitada, tendo-se, no entanto, recusado a proceder a essa apreciação, tal como decorre das decisões proferidas em 14 de Maio de 2002 e em 9 de Julho de 2002.
27. Em todo o caso, sempre se diz que a decisão proferida em 26 de Fevereiro de
2002 é objectivamente surpreendente, anómala e insólita, pelo que, na esteira da jurisprudência deste Tribunal Constitucional, nomeadamente dos acórdãos mencionados pelo Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator, deveria o presente recurso de inconstitucionalidade ser admitido.'
3. Notificados os recorridos Ministério Público e G, apenas o primeiro respondeu, através do seu representante neste Tribunal Constitucional, aduzindo o seguinte:
'1.º – O recurso interposto pelo reclamante versa sobre o quadro normativo definidor, em processo penal, dos ónus que incidem sobre o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto, nos casos em que ocorreu registo ou transcrição das provas produzidas em audiência.
2.º – Incidindo, deste modo, sobre as normas adjectivas que regulam tais ónus – e, portanto, sobre a disciplina dos requisitos formais da motivação e conclusões do recorrente.
3.º – Ora, perante a indefinição dos precisos termos deste quadro normativo, decorrente da originária falta de clareza da norma do artigo 412.°, n.° 4, do Código de Processo Penal, por nela se não prescrever quem deve proceder à transcrição, agravada pelos problemas decorrentes da possível aplicação subsidiária do regime previsto no Código de Processo Civil, por sua vez alterado substancialmente através do Decreto-Lei n.° 183/2000, que procedeu a uma verdadeira eliminação do dito ónus – até então a cargo do recorrente – claramente reflectida nas oscilações jurisprudenciais verificadas sobre tal tema
– consideramos que não era exigível ao recorrente antecipar a interpretação normativa feita pela Relação, no acórdão recorrido, de modo a questionar a respectiva constitucionalidade «durante o processo».
4.º – É, porém, duvidoso que o recorrente haja logrado colocar – através do enunciado da primeira questão de constitucionalidade que suscita – uma verdadeira questão «normativa», já que a questão que delimita no ponto l do seu requerimento de recurso (a fls. 213) se limita a tentar descrever a específica e concreta situação dos autos, sem identificação clara e inteligível do critério normativo subjacente à decisão.
5.º – Ou seja: no nosso entendimento – e quanto a essa primeira questão – limita-se o recorrente a questionar, sob o prisma da violação da Constituição, a concreta e específica decisão tomada sobre a matéria, o que não constitui seguramente objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta.
6.º – Termos em que se afigura ser de proceder a reclamação deduzida, mas apenas quanto à questão de constitucionalidade enunciada no ponto 2 do dito requerimento, a fls. 214 – e atinente à imposição ao recorrente do ónus de transcrição da prova gravada.'
Redistribuído o processo, por o primitivo Relator ter cessado funções neste Tribunal, cumpre apreciar e decidir.
4. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LCT – que foi o interposto pela recorrente – depende da suscitação 'durante o processo' da inconstitucionalidade da(s) norma(s) aplicada(s) pela decisão recorrida e cuja conformidade constitucional a recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, esclarecendo o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que tal recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve
'lapso manifesto' do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Só assim não será nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Expostos estes critérios, há que apreciar o mérito da reclamação deduzida.
5. Como se relatou, a recorrente, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, não suscitou nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa, designadamente relativa às normas constantes do artigo 412.º, n.ºs 3, alíneas a) e b), e 4, do Código de Processo Penal.
O acórdão recorrido (acórdão de 26 de Fevereiro de 2002) rejeitou o recurso por manifestamente improcedente, uma vez que o tribunal estava objectivamente impossibilitado de dele conhecer, por falta das referências consideradas exigíveis, a saber: (i) falta de especificação das passagens dos depoimentos de diversas testemunhas, para os quais a recorrente genericamente remeteu, e que, em seu entender, imporiam decisão diversa de pontos da matéria julgada provada ou não provada; (ii) falta de indicação do suporte técnico (cassetes) onde esses depoimentos estavam gravados; e (iii) falta de transcrição das passagens da gravação em que se funda, transcrição que, no entender desse acórdão, incumbia à recorrente.
Só na 'reclamação' deduzida, em 13 de Março de 2002, ao abrigo do artigo 669.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, é que a recorrente suscitou, pela primeira vez nos autos, a inconstitucionalidade quer de interpretação do artigo 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, diversa da que entenda que a remissão para os depoimentos das testemunhas identificadas, que se pretende que seja reapreciado na íntegra, é suficiente especificação dos suportes técnicos, quer da interpretação do n.º 4 do mesmo artigo 412.º que impõe ao recorrente o ónus de transcrever os depoimentos gravados com base nos quais pretende a alteração da decisão da matéria de facto.
Pelos acórdãos de 14 de Maio de 2002 e de 9 de Julho de
2002, foi aquela pretensão indeferida por se haver entendido que não ocorria qualquer das situações (designadamente, erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade) em o artigo 380.º do Código de Processo Penal (aplicável ao caso, em detrimento do invocado artigo 669.º do Código de Processo Civil) consente a correcção da decisão judicial.
Veio então a recorrente interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 26 de Fevereiro de 2002, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pretendendo ver apreciada a conformidade constitucional das seguintes 'normas', cuja inconstitucionalidade teria sido arguida na 'reclamação' deduzida contra o mesmo acórdão em 13 de Março de 2002:
1) 'Artigo 412.°, n.° 3, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, na interpretação de que não é suficiente a especificação dos suportes técnicos dos quais constam os depoimentos gravados das testemunhas quando se pretende que sejam apreciados na íntegra apenas alguns dos depoimentos especificados e o recurso tem subida imediata e nos próprios autos, entendendo a recorrente que o referido normativo deve ser interpretado no sentido de que os tribunais da Relação devem admitir o recurso e reapreciar a prova indicada sempre que:
a. Sejam invocadas contradições intrínsecas nas declarações de algumas testemunhas de acusação e destas testemunhas entre si e com algumas das testemunhas de defesa, tendo sido indicados quais os pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e quais os suportes técnicos em que se encontram as provas que impõem decisão diversa, sendo suficiente para a concretização deste pressuposto, quando a prova está gravada, a indicação dos depoimentos das testemunhas cujas declarações se pretende que sejam reapreciadas, sendo certo que é suficiente a invocação de contradições generalizadas, que é diferente de genéricas, nessas declarações conjugada com a circunstância destas declarações serem muito curtas (o que não é necessário alegar) para que devam ser ouvidas as declarações integrais, sob pena de a selecção de alguns extractos descontextualizar o que for extraído com prejuízo da verdade material'; e
2) 'Artigo 412.°, n.° 4, do Código de Processo Penal, na interpretação de que, em conjugação com o n.° 3 do mesmo artigo, impõe que a transcrição das provas deve ser realizada pela recorrente'.
Sendo patente que a inconstitucionalidade destas
'interpretações normativas' não foi suscitada antes de proferida a decisão recorrida, importa apreciar se, no caso, ocorreria alguma das aludidas situações anómalas e excepcionais de impossibilidade ou inexigibilidade do cumprimento desse ónus, e, ainda, quando à primeira, se a inconstitucionalidade não deve ter-se por imputada directamente à decisão recorrida, conforme se sustenta na resposta do Ministério Público.
Quanto a este último ponto, há que reconhecer que na decisão recorrida não é discernível, entre a invocação das normas legais pertinentes e a aplicação das mesmas ao caso em apreço, um qualquer momento de labor interpretativo dotado do mínimo de generalidade e abstracção, que permita considerá-lo como susceptível de constituir objecto autónomo de arguição de inconstitucionalidade normativa. Na verdade – respondendo afirmativamente à questão levantada na resposta do Ministério Público –, o recorrente não logrou colocar, através do enunciado da primeira questão de constitucionalidade que suscita, uma verdadeira questão 'normativa', já que a questão que delimita nesse ponto do seu requerimento de recurso limita-se a descrever a específica e concreta situação dos autos, sem identificação clara e inteligível do critério normativo subjacente à decisão. Isto é, quanto a essa primeira questão, limita-se a recorrente a questionar, sob o prisma da violação da Constituição, a concreta e específica decisão tomada sobre a matéria, o que não constitui seguramente objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Resta, assim, apurar se, quanto à segunda questão
(inconstitucionalidade do artigo 412.°, n.° 4, do Código de Processo Penal, na interpretação de que, em conjugação com o n.° 3 do mesmo artigo, impõe que a transcrição das provas deve ser realizada pela recorrente) – e uma vez que, como já se assinalou, quando foi apresentada a 'reclamação' em que pela primeira vez se suscitou a questão de inconstitucionalidade já se encontrava esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido para apreciar tal questão, uma vez que a consciente aplicação de uma norma que a recorrente reputa inconstitucional não é reconduzível a 'erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade' da sentença 'cuja eliminação não importe modificação essencial' (artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal), nem 'lapso manifesto do juiz na determinação da norma aplicável' (artigo 669.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil)
–, a decisão recorrida 'é objectivamente surpreendente, anómala e insólita', como sustenta a recorrente.
A resposta a esta questão é negativa.
Como se dá conta no recente 'Assento n.º 2/2003', de 16 de Janeiro de 2003, do Supremo Tribunal de Justiça (Diário da República, I Série-A, n.º 25, de 30 de Janeiro de 2003, pág. 622), a jurisprudência dividiu-se quanto a saber sobre quem recai o ónus de proceder à transcrição da gravação magnetofónica dos depoimentos prestados em audiência: segundo uma corrente jurisprudencial, esse ónus competia ao recorrente que tivesse solicitado o reexame da decisão impugnada em matéria de facto; segundo outra – que veio a ser a consagrada no citado 'Assento', embora com vários votos de vencido e contrariando a posição sustentada pelo Ministério Público –, a aludida transcrição incumbe ao tribunal. Por seu turno, naquela primeira corrente jurisprudencial eram distinguíveis duas linhas de fundamentação: (i) com recurso
à aplicação analógica do n.º 2 do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, aditado pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, na redacção anterior à alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto (neste sentido, entre outros: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Janeiro de 2000, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII, 2000, tomo I, pág. 194; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de
31 de Agosto de 1999, Colectânea de Jurisprudência, ano XXIV, 1999, tomo IV, pág. 144; e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24 de Maio de 2000, Colectânea de Jurisprudência, ano XXV, 2000, tomo III, pág. 41); e (ii) por aplicação directa do artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, sem necessidade de recurso às normas do Código de Processo Civil (neste sentido, entre outros: acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21 de Fevereiro de
2001, Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, 2001, tomo II, pág. 39; e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Novembro de 2001, Colectânea de Jurisprudência, ano XXVI, 2001, tomo V, pág. 136). Assinale-se ainda que este Tribunal Constitucional, pelo acórdão n.º 677/99 (Diário da República, II Série, n.º 49, de 28 de Fevereiro de 2000, pág. 4028; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 492, pág. 109; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45.º vol., pág. 641), não julgou inconstitucional a interpretação dos artigos 363.º e 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual os depoimentos prestados na audiência de julgamento perante o tribunal colectivo, e aí gravados, não têm de ser transcritos na acta, cabendo, antes, àquele que pretenda impugnar o julgamento da matéria de facto em via de recurso fazer a transcrição das provas que, em seu entender, impõem uma decisão diversa daquela de que recorre.
Neste contexto, atendendo à apontada e conhecida existência de correntes jurisprudenciais divergentes – que a recorrente, assistida por mandatário judicial, seguramente não ignorava –, uma das quais sustentava, mesmo sem recurso analógico à prescrição do n.º 2 do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, que incumbia ao recorrente proceder à transcrição dos depoimentos, não pode considerar-se que a decisão recorrida, neste segundo ponto, fosse 'objectivamente surpreendente, anómala e insólita', em termos de tornar inexigível a suscitação da questão de constitucionalidade antes da prolação dessa decisão, contrariamente ao que sustenta a recorrente.
6. Em face do exposto, acordam, em conferência, em indeferir a presente reclamação, mantendo o despacho reclamado.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2003. Mário José de Araújo Torres (Relator) Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida