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Procº nº 208/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA
1. Nos autos de acidente de trabalho pendentes pelo Tribunal de Trabalho da Maia e em que figuram, como sinistrado, A e, como seguradora, a B., foi, em 20 de Junho de 2001, proferida decisão que condenou aquela seguradora e a entidade patronal do sinistrado a pagarem a este a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, de Esc. 223.765$00.
Não se conformando com o assim decidido apelou a B. para o Tribunal da Relação do Porto.
Na alegação que produziu, o Representante do Ministério Público sustentou, inter alia:-
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O regime transitório definido no artº 74º do Decreto-Lei nº 143/99 é o regime a que se refere a nova Lei dos Acidentes de Trabalho (Lei nº 100/97) no seu artº 41º, nº 2, constituindo o artigo 74º a concretização em regulamento do regime referido pela Lei.
A citada Lei nº 100/97, no nº 1 al. a) do seu artº 41º, sob a epígrafe ‘Produção de efeitos’ estabelece o princípio geral de que só será aplicável aos acidentes de trabalho que ocorreram após a data da sua entrada em vigor, ou seja, aos acidentes ocorridos após 1 de Janeiro de 2000, e no nº 2, al. a) e b), do mesmo artº 41º, como excepção em relação à regra definida no nº
1, estatuiu-se o seguinte:
‘O diploma regulamentar ... estabelecerá o regime transitório a aplicar: a) À remição de pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor, e que digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30%, ou a pensões vitalícias de reduzido montante e às remições previstas no artº 33º, nº 2; b) Ao fundo existente no âmbito previsto no artº 39º’.
Tal regime transitório encontra-se fixado no artº 74º do citado Regulamento, aprovado pelo Dec. Lei nº 143/99, de 30 de Abril, onde se prevê o seguinte:
‘As remições das pensões, previstas na al. d) do nº 1 do artº 17º e no artº 33º da lei, serão concretizadas gradualmente, nos termos do quadro seguinte:
(redacção introduzida pelo artº 2º, do Dec. Lei nº 328-A/99, de 22 de Set.) Até Dezembro de 2000: as pensões anuais iguais ou inferiores a 80 contos; Até Dezembro de 2001: as pensões anuais iguais ou inferiores a 120 contos; Até Dezembro de 2002: as pensões anuais iguais ou inferiores a 160 contos; Até Dezembro de 2003: as pensões anuais iguais ou inferiores a 400 contos; Até Dezembro de 2004: as pensões anuais iguais ou inferiores a 600 contos; Até Dezembro de 2005: as pensões anuais superiores a 600 contos;
Aos acidentes ocorridos após 01/01/2000 é aplicável a nova Lei dos Acidentes de Trabalho conforme resulta liminarmente do artº 41º, nº 1, al. a) da Lei nº 100/97, e, uma vez que o acidente dos autos ocorreu em 24/10/2000 é abrangido por este regime.
Pretende a seguradora, fazendo tábua raza do disposto no artigo 41º nº 1 al. a) da Lei nº 100/97 e do princípio de que um regulamento não pode contrariar disposição expressa da lei regulamentada, que o regime transitório definido no artigo 74º se aplique não só ‘à remição das pensões relativas a acidentes ocorridos após a entrada da Lei cujo montante seja superior ao referido no artigo 74º do Decreto-Lei nº 143/99. Esta interpretação, na medida em que se traduz em directa violação de uma Lei por uma disposição regulamentar,
é manifestamente inconstitucional por contrária ao disposto nos artigos 112º nº
2 ‘in fine’ e 198º nº 1 al. c) (norma expressamente invocada no preâmbulo do Decreto-Lei nº 143/99) da Constituição da República.
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O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 14 de Janeiro de
2002, concedeu provimento à apelação.
Pode ler-se nesse aresto:-
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A única questão a decidir consiste em saber se a remição da pensão dos autos se encontra abrangida pelo regime transitório, previsto no art. 74º do Dec.-Lei nº 143/99. de 30 de Abril.
+
O acidente dos autos ocorreu em 24 de Outubro de 2000, sendo, assim pacífica a aplicação da Lei nº 100/97, de 13.9, e, bem assim, do Dec.-Lei nº
143/99, de 30.4, que a veio regulamentar.
Sendo a pensão dos autos de esc. 223.765$00, correspondente a uma desvalorização de 9%, tornou-se obrigatoriamente remível quer por força da alínea d) do nº 1 do art. 17º da Lei nº 100/97 quer por força do seu reduzido montante - arts., conjugados, 33º, nº 1, da referida Lei, e art. 65º, nº 1, alínea a), do Dec.-Lei nº 143/99.
Simplesmente, aquela Lei, no seu art. 41º, nº 2, determina que o diploma, que a regulamentar, estabelecerá o regime transitório a aplicar: ‘à remição de pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor, e que digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30% ou a pensões vitalícias de reduzido montante e às remições previstas no art. 33º, nº 2’.
Esse regime transitório das remições foi definido no art. 74º do Dec.-Lei nº 143/99 (na redacção dada pelo Dec.-Lei nº 382-A/99, de 22.9), aí se consignando: ‘As remições das pensões, previstas na alínea d) do nº 1 do art.
17º e no art. 33º da Lei serão concretizadas gradualmente, nos termos do quadro seguinte:
(...)’.
Quer do disposto no art. 41º, nº 2, alínea a), da Lei nº 100/97, quer do estipulado no art. 74º do Dec.-Lei nº 143/99, conclui-se, facilmente, que o legislador, com a entrada em vigor do novo regime jurídico de acidentes de trabalho, pretendeu estabelecer um regime provisório de remição de pensões.
Reconhecendo-se alguma falta de clareza e rigor na técnica legislativa utilizada nesta sede de aplicação da lei no tempo, entendemos que o regime transitório é não só aplicável à remição de pensões de acidentes ocorridos na vigência da Lei nº 2.127, de 3.8.65, como às remições de pensões decorrentes de acidentes verificados na vigência da Lei nº 100/97.
Isto mesmo resulta do relatório do Dec.-Lei nº 143/99, já mencionado, onde se escreveu:
‘No sentido de melhorar o nível das prestações garantidas aos sinistrados, a presente regulamentação desenvolve importantes alterações relativamente ao regime anterior, designadamente:
[...] a remição de pensões de valor reduzido, sem prejuízo da fixação de um regime transitório que permitirá a progressiva adaptação das empresas de seguros, que assim não se confrontarão com um pedido generalizado de remição, com a inerente instabilidade que lhe estaria associada’.
Daqui resulta que o legislador se mostrou sensível, por um lado, à melhoria do sistema de protecção e prestações conferidas aos sinistrados e, por outro lado, cuidando que tal alargamento, com o inerente empolamento das remições, relativamente às pensões 'comprimidas’ ao abrigo de anterior legislação, não pusesse em causa o equilíbrio e a estabilidade do sector segurador.
Compreende-se, pois, que estivesse no espírito do legislador de 1999 fazer aplicar os preceitos relativos à remição de pensões às já fixadas antes de
1.1.2000, cujos efeitos, gravosos para o sector segurador, seriam atenuados pela fixação do regime transitório.
Acresce que no art. 74º, onde se regula o regime transitório de remição das pensões, aí se determina que as ‘remições das pensões’ serão concretizadas gradualmente, o que mais facilmente se compreende, estando no espírito do legislador o atender-se ao grande volume das pensões então existentes.
Deve, assim, interpretar-se extensivamente o art. 74º do Dec.-Lei nº
143/99, considerando que o regime transitório aí consagrado se aplica não só às remições de pensões previstas na alínea d) do nº 1 do art. 17º e no art. 33º da Lei nº 100/97, mas também às remições de pensões decorrentes de acidentes de trabalho, ocorridos na vigência da Lei nº 2.127, e correspondentes a I.P.P. inferiores a 30% ou a pensões de reduzido montante, que, em 01.01.00, já se encontrem em condições de pagamento ou que apenas posteriormente se venham a encontrar em tal situação’ (...).
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Uma nota final para salientar que, contrariamente ao alegado pelo Mº Pº, e, em consequência do entendimento supra, não foi violado o art. 198º, nº 1, alíneas a) e c), da Constituição, já que o Dec.-Lei nº 143/99, nomeadamente no tocante ao preceituado no art. 74º, mais não representa do que o desenvolvimento das bases gerais do regime jurídico dos acidentes de trabalho, aprovado pela Lei nº 100/97.
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Do acórdão de que parte se encontra transcrita recorreu o Ministério Público para este Tribunal, com esteio na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do artº 74º do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, quando interpretada 'no sentido da sua aplicabilidade à remição de pensões decorrentes de acidentes verificados na vigência da Lei 100/97'.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou a entidade recorrente a por si produzida com as seguintes «conclusões»:
'1º- A Lei nº 100/97, de 23 de Setembro, configura-se como verdadeira lei de bases em matéria de regime jurídico dos acidentes de trabalho, por conter os aspectos essenciais e estruturantes da disciplina de tal matéria, estando a sua vigência e aplicabilidade condicionadas à edição de diplomas de índole complementar ou ‘regulamentar’, legitimados para desenvolver e densificar os regimes genéricos aí instituídos.
2º - A matéria de remição obrigatória das pensões devidas por acidentes de trabalho situa-se na área de competência legislativa reservada da Assembleia da República, por respeitar aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores.
3º - Relativamente às opções parlamentares assumidas explicitamente pela Lei nº
100/97, apenas dispõe o Governo, no exercício da competência prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa, de poderes para desenvolver as ‘bases gerais’ contidas na lei que funciona como pressuposto normativo necessário do diploma complementar, de índole regulamentar.
4º - Pelo que não era lícito ao Governo, ao editar o Decreto-Lei nº 143/99
(alterado pelo Decreto-Lei nº 383-A/99), ampliar, em detrimento dos direitos e interesses dos trabalhadores, o regime transitório previsto no artigo 41º, nº 2, alínea a) da Lei nº 100/97, submetendo ao regime de remição gradual ou faseada, não apenas as pensões emergentes dos acidentes laborais anteriores a 1 de Janeiro de 2000 (e regidos pela Lei nº 2127), mas as resultantes dos próprios acidentes posteriores à vigência do novo regime jurídico dos acidentes de trabalho.
5º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade - ou, subsidiariamente, de ilegalidade por violação de lei reforçada - da interpretação normativa do artigo 74º do Decreto-Lei nº 143/99, por, ao afrontar lei com valor reforçado - a citada Lei nº 100/97 -, no que respeita à opção legislativa plasmada no artigo 41º, nº 2, alínea a), - extravasar os poderes legislativos permitidos ao Governo pelos artigos 112º, nº 2, ‘in fine’ e 198º, nº 1, alínea c) da Constituição da República Portuguesa'.
Por seu turno, a B. não produziu alegação.
Cumpre decidir.
3. Anote-se, em primeiro passo, que, estando-se em face de um recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, possível não será aferir, na presente impugnação, da alegada ilegalidade, por violação de lei com valor reforçado, da norma constante do artº 74º do Decreto-Lei nº 143/99, quando interpretada no sentido de o regime transitório previsto na alínea a) do nº 2 do artº 41º da Lei nº 100/97 ser aplicável às pensões a remir fixadas posteriormente a 1 de Janeiro de 2000. Por isso, o pedido subsidiário ínsito na
«conclusão» 5ª da alegação da entidade recorrente não poderá ser, de todo, atendido, pois que, não só aquando da suscitação da questão em apreço aquilo que foi sustentado foi um vício de desconformidade com a Lei Fundamental, como a impugnação da decisão sub iudicio se estribou, como se disse, naquela alínea b).
4. Isto posto, passemos à análise da invocada inconstitucionalidade da norma em apreço.
Pela Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, foi aprovado o novo regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, revogando-se, com a entrada em vigor do decreto-lei que a regulamentasse (cfr. artº 42º), a Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965 (que, até então, regulava aquele regime).
Estabeleceu-se, no seu artigo 42º, nº 2, alíneas a) e b), que o aprovado diploma produziria efeitos à data da entrada em vigor do respectivo decreto-lei regulamentador e que seria aplicável aos acidentes de trabalho que ocorrerem após aquela entrada em vigor ou às doenças profissionais cujo diagnóstico final se faça após a data daquela entrada em vigor.
Por outro lado, nos números 2 e 3 do citado artigo, prescreveu-se:-
2 - O diploma regulamentar referido no número anterior estabelecerá o regime transitório a aplicar:
a) à remição de pensões em pagamento, à data da sua entrada em vigor, e que digam respeito a incapacidades permanentes inferiores a 30% ou a pensões vitalícias de reduzido montante; b) Ao fundo existente no âmbito previsto no artigo 39.º
3 - A presente lei será regulamentada no prazo máximo de 180 dias a contar da sua publicação.
No artº 17º, nº 1, alínea d), estatuiu-se que se do acidente resultar redução na capacidade de trabalho ou ganho do sinistrado, este terá direito, na incapacidade permanente parcial inferior a 30%, ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho, calculado nos termos que viessem a ser regulamentados.
De outra banda, no artº 33º da Lei nº 100/97 comandou-se:
1- Sem prejuízo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 17.º, são obrigatoriamente remidas as pensões vitalícias de reduzido montante, nos termos que vierem a ser regulamentados.
2 - Podem ser parcialmente remidas as pensões vitalícias correspondentes a incapacidade igual ou superior a 30%, nos termos a regulamentar, desde que a pensão sobrante seja igual ou superior a 50% do valor da remuneração mínima mensal garantida mais elevada.
Em 30 de Abril de 1999 veio a lume o Decreto-Lei nº 143/99 que, editado ao abrigo das alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 198º da Constituição, intentou regulamentar a Lei nº 100/97 estabelecendo-se (por intermédio do Decreto-Lei nº 382-A/99, de 22 e Setembro) que a sua entrada em vigor ocorreria em 1 de Janeiro de 2000.
Nele se surpreende o ora questionado artº 74º (que viu a sua redacção alterada por intermédio do artº 2º do mencionado Decreto-Lei nº382-A/99), que reza assim:- Artigo 74.º Regime transitório de remição das pensões
As remições das pensões, previstas na alínea d) do nº 1 do artigo
17.º e no artigo 33.º da lei, serão concretizadas gradualmente, nos termos do quadro seguinte
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Períodos |
______________________________________ |___________ Até 31 de Dezembro de 2000...........................| < 80 Até 31 de Dezembro de 2001...........................| < 120 Até 31 de Dezembro de 2002...........................| < 160 Até 31 de Dezembro de 2003...........................| < 400 Até 31 de Dezembro de 2004...........................| < 600 Até 31 de Dezembro de 2005...........................| > 600
__________________________________________________
5. No domínio da Lei 2127, não era imposta a obrigatoriedade da remição das pensões vitalícias (ainda que correspondentes a indemnizações por acidentes de trabalho do qual resultaram consequências não muito graves em termos de incapacidade para o trabalho ou a indemnizações de pequeno montante).
Uma tal imposição veio a decorrer da disposição legal vertida no transcrito nº 1 do artº 33º da Lei nº 100/97 [não se devendo, ainda, olvidar o que se preceitua na alínea d) do nº 1 do artº 17º da mesma Lei, que, como se viu, consagra o direito do trabalhador sinistrado, nos casos de acidente de trabalho do qual resultou uma incapacidade parcial permanente inferior a 30%, a perceber um capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia correspondente a 70% da redução da capacidade de ganho].
Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal nº 302/99 (publicado na
2ª Série do Diário da República de 16 de Junho de 1999), a consagração da remição impositivamente decretada tem a ver com a circunstância de a perda em causa não ter sido 'por de mais acentuada, o que o mesmo é dizer que o acidente de trabalho ou a doença profissional não implicou a futura continuação do desempenho de labor por parte do trabalhador (ainda que tenha reflexo, mesmo em medida não muito relevante, na retribuição por aquele desempenho, justamente pela circunstância de não apresentar uma total capacidade de trabalho)', permitindo que 'a compensação correspondente à pensão que lhe foi fixada – e sabido que é que, de uma banda, o montante das pensões é de pouco relevo e, de outra, que o quantitativo fixado se degrada com o passar do tempo – possa ser
‘transformada’ em capital, a fim de ser aplicada em finalidades económicas porventura mais úteis e rentáveis do que a mera percepção de uma ‘renda’ anual cujo quantitativo não pode permitir qualquer subsistência digna a quem quer que seja'.
Com a publicação da referida Lei nº 100/97, ficaram, pois, previstos os quantitativos indemnizatórios a receber pelo sinistrado nas hipóteses em que
- e nisso se traduz a remição – o direito deste sofre a alteração estrutural consistente na sua transformação de 'prestação duradoura e periódica de certo montante em prestação unitária' (para se usarem as palavras de Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho. Reflexões e notas práticas, Lisboa, 1986, 78), o que o mesmo é dizer que, com tal diploma, originou-se para o trabalhador o direito legal de exigir, na totalidade, o ressarcimento pecuniário por causa do acidente de que foi vítima, através do instituto da remição das pensões anuais e vitalícias.
Poderá, desta sorte, dizer-se que a percepção do capital de remição, nas indicadas circunstâncias (indemnizações de pequeno montante ou correspondentes a uma incapacidade inferior a 30%), foi a forma como o legislador desejou que, atentas tais circunstâncias, se efectivasse o direito dos trabalhadores a serem justamente reparados do infortúnio laboral que sofreram, o que significa que veio consagrar um direito que, na sua óptica, para as ditas circunstâncias, concretizava a «justa reparação» a que alude a alínea f) do nº 1 do artigo 59º da Constituição (cfr., a outro propósito embora, considerando que o conceito de «justiça» na efectivação da indemnização não pode ser compatível com o pagamento faseado do montante indemnizatório, os Acórdãos deste Tribunal números 108/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º volume, 417 a 427, e 283/94, ainda inédito).
6. Ora, a consagração deste direito não foi imediatamente
«estendida», numa leitura literal dos números 1 e 2 do artº 41º da Lei nº
100/97, às situações em que as pensões eram pagas antes da data da entrada em vigor da mesma Lei (e, consequentemente, foram fixadas no domínio da Lei nº
2127), o que porventura se compreende em face do regime até aí existente (que, como se disse, não impunha a obrigatoriedade da remição) e do número avultado dessas situações que, seguramente, iria acarretar um acentuado dispêndio imediato por banda das seguradoras.
Daí que, sensível a esse circunstancialismo, tivesse o legislador de
1997 entendido, relativamente às pensões anteriormente fixadas, que se havia de gizar, para efeitos do pagamento do capital remido que agora se impunha, um sistema transitório que, de certo jeito, tornasse menos onerosa para as seguradoras a obrigação que advinha do pagamento daquele capital agora tornado obrigatório.
Mas, se isto é assim, não é menos verdade que se consolidou, na legislação ordinária, um direito dos trabalhadores sinistrados consubstanciado em - nas hipóteses em que sofreram acidentes de trabalho, ocorridos após a entrada em vigor da Lei nº 100/97 e dos quais redundou uma incapacidade inferior a 30% ou em que a pensão fixada é de pequeno montante - desfrutarem eles, desde logo, do capital correspondente à remição das pensões a que teriam jus.
7. As condições a que deverá obedecer não só o modo de cálculo do capital das remições, bem como o momento temporal a partir do qual é esse capital posto à disposição daqueles que sofreram o infortúnio laboral, enquanto se traduzem na origem de um direito legal a operar na esfera jurídica dos trabalhadores (direito à remição das pensões como meio de ressarcimento global pelo acidente de que foram vítimas), não podem, assim, deixar de ser consideradas como integrando a normação atinente a matéria conexionada com a segurança social dos trabalhadores, pelo que constitui ela legislação de trabalho, para efeitos constitucionalmente relevantes (cfr. os Acórdãos deste Tribunal números 61/91, publicado no Diário da República, Série-A, de 1 de Abril de 1991, 302/99, idem, 2ª Série, de 16 de Julho de 1999, e 468/95, publicado no mesmo jornal oficial, I Série-A, de 10 de Outubro de 1995).
Por isso se poderá sustentar que a forma do estabelecimento de uma pensão e a possibilidade da sua remição são conceitos que, ao serem regulamentados, têm de o ser no respeito das exigências estruturais básicas de que depende a legitimidade da sua produção normativa, já que o direito de exigir na totalidade o pagamento da pensão – operada através da remição de pensões estabelecida pelo novo diploma legal – se configura como um verdadeiro direito ou garantia dos trabalhadores, constituindo uma real concretização normativa ordinária, enquanto integra e densifica o direito à «justa reparação» vertido na citada alínea f) do nº 1 do artigo 59º do Diploma Básico.
Tal direito (note-se: não está aqui em causa o direito do trabalhador a desfrutar de uma reparação pelo infortúnio laboral que sofreu, mas sim o direito a uma forma específica dessa reparação consistente na atribuição da remição da pensão que, para ser justa, terá de ser processada de uma só vez e não faseadamente) à percepção obrigatória do capital e que se visou ser desfrutável desde logo relativamente aos acidentes de trabalho ocorridos após a data da entrada em vigor da Lei nº 100/97 (que, como se disse, se cifrou em 1 de Janeiro de 2000 - cfr. artº 1º do citado Decreto-Lei nº 382-A/99 -), foi consagrado, como não podia deixar de ser, por intermédio de um diploma legislativo emanado do Parlamento.
E, conquanto o direito à «justa reparação» que se surpreende na aludida alínea f) do nº 1 do artigo 59º da Constituição se insira, não no Capítulo III do seu Título II, mas sim no Título III (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), nem por isso pode deixar de ser visualizado como um direito fundamental de natureza análoga ao dos direitos fundamentais, pelo que, por via do artigo 17º da Lei Fundamental, se lhe hão-de ser aplicáveis os normativos constitucionais a estes últimos atinentes e, consequentemente, a sua inclusão na reserva de competência relativa parlamentar, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 165º do Diploma Básico.
Neste contexto, a alteração das condições referentes à sua imediata percepção (de sorte a que aquela percepção não ocorresse de imediato, mas sim fosse concretizada gradualmente) não poderia, por isso, ser levada a efeito por um outro diploma, emanado do Governo, sem que estivesse ele munido da devida credencial parlamentar.
Mas foi isso, aliás, o que sucedeu com a interpretação normativa que, pelo acórdão ora impugnado, foi conferida ao artº 74º do Decreto-Lei nº
143/99 (na redacção dada pelo artº 2º do Decreto-Lei nº 382-A/99), já que, de harmonia com tal interpretação, a remição das pensões - arbitradas após a entrada em vigor da Lei nº 100/97 - devidas por acidentes de trabalho de que resultou uma incapacidade permanente parcial inferior a 30% e das de reduzido montante, seria concretizada gradualmente de acordo com o esquema correspondente ao quadro constante daquele preceito, o que significa, assim, que o respectivo pagamento nunca ocorreria imediatamente, pois que, ainda que o montante da pensão fosse igual ou inferior a 80 contos, o prazo de remição seria protelado até Dezembro de 2000 e, no caso do montante igual ou superior a 600 contos, o pagamento só se efectuaria num lapso de tempo até Dezembro de 2005.
Com aquela interpretação, o preceito sub iudicio, bem vistas as coisas, veio a restringir um direito que se consagrou na Lei nº 100/97, direito
(o da percepção imediata do capital correspondente à remição das pensões de reduzido montante ou das pensões anuais e vitalícias devidas por acidentes de trabalho de que resultou uma incapacidade permanente parcial inferior a 30%) esse que, repete-se, a lei ordinária efectivou na esteira do que se consagra na alínea f) do nº 1 do artigo 59º da Constituição e a que, como acima se fez referência, é aplicável o seu artigo 17º, sendo que o diploma em que o dito preceito se enquadra foi emitido pelo Governo sem que este estivesse munido da adequada credencial parlamentar que permitisse efectuar aquela restrição.
Por outro lado, não se lobriga que legislador parlamentar, ao emitir a aludida Lei nº 100/97, desejasse que, relativamente às pensões agora obrigatoriamente remíveis e fixadas já no domínio desse diploma, o respectivo pagamento viesse a ser efectivado por forma não imediata, igualmente se não vislumbrando que fosse seu intento o de, ao remeter para diploma regulamentar o estabelecimento de um regime transitório para a remição de pensões, neste se abarcassem pensões que não as que já se encontravam em pagamento à data da entrada em vigor da mencionada Lei.
8. Em face do exposto, decide-se:-
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, a norma constante do artº 74º do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº
382-A/99, de 22 de Setembro, na interpretação segundo a qual aquele preceito é aplicável à remição das pensões previstas na alínea d) do nº 1 do artº 17º e no artº 33º, ambos da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, em pagamento à data da entrada em vigor deste mesma Lei;
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma do acórdão impugnado de harmonia com o juízo de inconstitucionalidade que se deixa feito. Lisboa, 13 de Novembro de 2002 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto (vencido,nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa ( vencido, acompanhando o essencial da declaração de voto do Exmº Conselheiro Mota Pinto)
Declaração de voto Votei vencido por entender que a aprovação da norma em causa, sobre o âmbito do regime de transição para o novo regime de remição de pensões por acidentes de trabalho, não estava incluída na reserva de competência legislativa parlamentar prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República. Na verdade – e independentemente de saber se a interpretação normativa diverge ou não do regime que resulta dos artigos 17º, n.º 1, alínea d) e 33º da Lei n.º
100/97, de 13 de Setembro –, essa norma limita-se a dispor sobre a transição para uma nova forma de extinção da obrigação de pagamento dessas pensões. Ora, mesmo que se entenda que esta é ainda matéria legislativa que contende com o direito dos trabalhadores à 'assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional', considero, porém, que a este direito não é de reconhecer 'natureza análoga' aos direitos, liberdades e garantias, para efeito de aplicação do respectivo regime, e, designadamente, para a submissão de uma norma como a questionada à reserva parlamentar. É que esse direito, previsto no artigo 59º, n.º 1, alínea d), como 'direito económico', fora do catálogo dos direitos, liberdades e garantias, é já um direito com um conteúdo prestacional, positivo, e não um 'direito de defesa', um direito de participação política, ou uma liberdade (individual ou colectiva) dos trabalhadores, como, a meu ver, se imporia para uma analogia materialmente fundada, que levasse em conta a matriz constitucional dos direitos, liberdades e garantias. Paulo Mota Pinto
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