Imprimir acórdão
Proc. nº 768/02 Plenário Rel.: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. O Presidente da República requereu, nos termos do artigo 278°, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 51°, nº
1, e 57°, nº 1, da Lei sobre Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 4°, nº 1, do Decreto da Assembleia da República nº 18/IX, recebido na Presidência da República, no passado dia 22 de Novembro de 2002, para ser promulgado como lei.
2. Alega, em síntese, o requerente:
- o diploma procede à revogação do rendimento mínimo garantido previsto na Lei nº 19-A/96, de 29 de Junho, e cria o rendimento social de inserção, podendo, grosso modo, dizer-se que os direitos e prestações previstos na legislação que instituía e regulamentava o rendimento mínimo garantido são substituídos, com as devidas adaptações, pelos direitos e prestações previstos na legislação que cria e, posteriormente, virá a regulamentar, o rendimento social de inserção
- a dúvida de constitucionalidade refere-se ao artigo 4°, nº 1, que regula a titularidade do direito ao rendimento social de inserção, na medida em que, enquanto que o artigo 4°, nº 1, da Lei nº 19-A/96, de 29 de Junho, que criou o rendimento mínimo garantido, reconhecia a titularidade do direito à prestação de rendimento mínimo aos indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, o diploma que agora se pretende seja promulgado como lei, com ressalva das excepções também já previstas na lei anterior e das posições subjectivas dos actuais beneficiários, garante a titularidade do direito ao rendimento social de inserção apenas às pessoas com idade igual ou superior a 25 anos
- a dúvida de constitucionalidade respeita, assim, a saber se uma tal restrição objectiva da titularidade do direito em causa é constitucionalmente fundada e se é feita com observância das normas e princípios constitucionais
- e isto, tanto mais quanto, tendo a Lei nº 50/88, de 19 de Abril, e legislação complementar, que regulava o subsídio de inserção de jovens na vida activa, sido revogada pela legislação instituidora do rendimento mínimo garantido, e não sendo repristinada pelo actual Decreto nº 18/IX da Assembleia da República nem substituída por qualquer compensação afim, se verificaria neste domínio, se este diploma entrasse em vigor nos seus presentes termos, uma desprotecção objectiva da generalidade das pessoas de idade inferior a 25 anos, constituindo, objectivamente, para essa faixa etária, uma regressão na protecção social correspondente aos tempos anteriores a 1988
- aliás, a legislação que visa assegurar um rendimento mínimo garantido ou um rendimento social de inserção constitui uma concretização do direito de todos à segurança social (artigo 63°, nº 1, da CRP), correspondendo, mais especificamente, à obrigação derivada de o Estado organizar um sistema de segurança social em ordem a proteger «os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho»
(artigo 63°, nº 3, da CRP)
- assim, os direitos ou pretensões subjectivas e os conteúdos objectivos decorrentes daquela legislação constituem, nesse sentido, uma manifestação juridicamente sustentada de direitos derivados a prestações que, sendo, embora, formalmente reconhecidos em legislação ordinária, são indissociáveis e beneficiam da força jurídica e dos efeitos irradiantes reconhecidos aos direitos fundamentais económicos, sociais ou culturais constitucionalmente consagrados
- nesse sentido, sem perda do poder de conformação autónomo reconhecido ao legislador em Estado de direito democrático, a partir e à medida que, de acordo com as suas disponibilidades financeiras, o Estado vai realizando esses direitos sociais e dando cumprimento às imposições constitucionais e deveres de prestação que deles decorrem, deixa de dispor livre e arbitrariamente do grau e medida entretanto realizados desses direitos
- mesmo quando - atendendo à natureza sob reserva do possível ou do financeiramente possível que os direitos sociais apresentam - não se sustente, como fazem, todavia, alguns Autores, a existência de um princípio constitucional de proibição do retrocesso nas prestações entretanto reconhecidas no domínio dos direitos sociais, é opinião doutrinária e jurisprudencialmente comum que o Estado só pode afectar o conteúdo realizado dos direitos sociais ou dos direitos derivados a prestações neles baseados quando se sustente numa comprovada incapacidade material, designadamente financeira, para manter a medida entretanto reconhecida de realização daqueles direitos ou quando a tal se veja compelido por força da necessária realização de outros valores de natureza constitucional
- na medida em que se lida com direitos fundamentais – e, enquanto tal, furtados à disponibilidade do poder político –, quando pretende retroceder no grau de realização entretanto atingido, e porque de verdadeiras restrições a direitos fundamentais se trata, o Estado não pode bastar-se, para fundamentar a afectação ou restrição do conteúdo dos direitos sociais ou dos direitos derivados a prestações neles baseados, com razões ou preconceitos de natureza ideológica não constitucionalmente sustentados ou com justificações meramente apoiadas em diferenças de opinião política próprias da variação conjuntural das maiorias de governo
- e, mesmo quando se sustente numa justificação objectivamente comprovável e de base constitucional, o Estado não pode afectar ou suprimir prestações existentes de uma forma arbitrária, discriminatória, com eventual violação de princípios constitucionalmente consagrados como sejam o princípio da confiança próprio do Estado de Direito ou, mais especificamente, no caso, o princípio da igualdade ou o princípio da universalidade na titularidade e exercício dos direitos fundamentais
- a dúvida de constitucionalidade que se suscita é se, quando reconverteu, de uma forma geral, o anterior rendimento mínimo garantido em rendimento social de inserção, o legislador podia ter privado, genericamente, as pessoas de idade inferior a 25 anos da titularidade dos direitos que lhe era anteriormente reconhecida ou atribuída, sem que se vislumbre uma justificação, constitucionalmente apoiada, para proceder a tal discriminação relativamente às pessoas maiores de 25 anos
- poderia, eventualmente, sustentar-se que a restrição agora operada seria compensada por medidas substitutivas aplicáveis a essa faixa etária, mas, na inexistência, ainda que temporária, dessas medidas, não se vê como justificar a entrada imediata em vigor das alterações restritivas agora adoptadas.
- nem, por outro lado, o facto de os actuais beneficiários manterem, transitoriamente, o direito às prestações, responde às dúvidas de constitucionalidade, na medida em que há sempre pessoas que, nos termos da legislação actualmente em vigor, acederiam àquelas prestações e que se veriam, agora, objectivamente impossibilitadas de o fazer
- não estando em causa, pelo valor quantitativa e relativamente insignificante dos montantes em causa, uma incapacidade financeira de manutenção do direito às prestações, nem se apresentando qualquer valor de natureza constitucional justificador da restrição, a alteração legislativa em causa pode surgir como constitucionalmente injustificada e, enquanto tal, violadora do direito de todos à segurança social e da obrigação estatal de prover nas situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho do artigo 63°, nºs 1 e 3, da CRP
- por outro lado, na medida em que discrimina, sem fundamento razoável para o fazer, entre pessoas maiores ou menores de 25 anos, o legislador pode estar a violar o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no artigo 13° da CRP, bem como, na medida em que, sem fundamento constitucional, priva uma parte das pessoas de direitos e prestações anteriormente concedidos, estará a violar o princípio da universalidade genericamente consagrado no artigo
12°, nº 1, da CRP e, mais especificamente, no que ao direito à segurança social se refere, no artigo 63°, nº 1.
Conclui o requerente, pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma em causa, por eventual violação do artigo 63°, nºs 1 e 3, bem como dos artigos 12°, nº 1, e 13°, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
3. Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para o efeito do preceituado nos artigos 54º e 55º da LTC, limitou-se o mesmo a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os Diários da Assembleia da República que contêm os trabalhos preparatórios relativos ao diploma em apreciação.
II – Fundamentação
a. Enquadramento historico-jurídico
4. A norma questionada, que se inscreve num diploma que cria o rendimento social de inserção e revoga o rendimento mínimo garantido, previsto na Lei nº 19-A/96, é do seguinte teor: Artigo 4° Titularidade
1 - São titulares do direito ao rendimento social de inserção as pessoas com idade igual ou superior a 25 anos e em relação às quais se verifiquem os requisitos e as condições estabelecidos na presente lei.
Todavia, com relevância para a dilucidação da questão a resolver se apresentam outros preceitos do diploma em apreço: Artigo 1° Objecto
A presente lei institui o rendimento social de inserção, que consiste numa prestação incluída no subsistema de protecção social de cidadania e num programa de inserção, de modo a conferir às pessoas e aos seus agregados familiares apoios adaptados à sua situação pessoal, que contribuam para a satisfação das suas necessidades essenciais e que favoreçam a progressiva inserção laboral, social e comunitária.
Artigo 2° Prestação
A prestação do rendimento social de inserção assume natureza pecuniária e possui carácter transitório, sendo variável o respectivo montante.
Artigo 4° Titularidade
1 – [...]
2 - Poderão igualmente ser titulares do direito ao rendimento social de inserção as pessoas com idade inferior a 25 anos e em relação às quais se verifiquem os demais requisitos e condições previstos na presente lei, nos seguintes casos: a) Quando possuam menores a cargo e na sua exclusiva dependência económica; b) Quando sejam mulheres grávidas; c) Quando sejam casados ou vivam em união de facto há mais de um ano.
Artigo 5° Conceito de agregado familiar
2 - Para efeitos da presente lei, desde que estejam na dependência económica exclusiva do requerente ou do seu agregado familiar e sejam maiores, são igualmente susceptíveis de integrar o agregado familiar do titular nos termos a definir por decreto regulamentar: a) Os parentes em linha recta até ao segundo grau; b) Os adoptados plenamente; c) Os adoptados restritamente; d) Os tutelados.
Artigo 39° Direitos adquiridos
Os actuais titulares e beneficiários do direito ao rendimento mínimo garantido com idade inferior ao limite legal estabelecido no artigo 4. °, transitam para o actual regime do rendimento social de inserção, passando a reger-se pelas regras estabelecidas pela presente lei.
Artigo 41° Norma revogatória
1 - Considera-se revogada a Lei 19-A/96, de 29 de Junho, o Decreto-Lei nº 196/97, de 31 de Julho, e o Decreto-Lei n.º 84/2000, de 11 de Maio.
2 - As disposições do Decreto-Lei 196/97, de 31 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2000, de 11 de Maio, que não contrariem a presente lei, mantêm-se em vigor até à data de entrada em vigor da respectiva regulamentação.
5. A existência de um rendimento social de inserção – ou de um rendimento mínimo garantido – enquadra-se na previsão da parte final do artigo
63º, nº 3, da Constituição, preceito onde se estabelece:
O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.
Nesta conformidade, ao considerar que o rendimento social de inserção se inclui no subsistema de protecção social de cidadania, o diploma em apreço (artigo 1º) faz precisamente apelo ao subsistema que, no quadro da Lei de Bases Gerais do Sistema de Solidariedade e Segurança Social – a Lei n.º 17/2000, de 8 de Agosto – «visa assegurar direitos básicos e tem por objectivo garantir a igualdade de oportunidades, o direito a mínimos vitais dos cidadãos em situação de carência económica, bem como a prevenção e a erradicação de situações de pobreza e de exclusão, por forma a promover o bem-estar e a coesão sociais». E, dentro deste subsistema, aquele mesmo rendimento social de inserção integra-se no denominado regime de solidariedade, que se concretiza na atribuição de prestações que, fora do subsistema previdencial de natureza contributiva, assegurem um mínimo de subsistência, seja àqueles que, em princípio, não têm condições para o vir a obter – caso da pensão social ou equivalentes, em situações de invalidez, velhice, viuvez ou orfandade –, seja àqueles que, encontrando-se transitoriamente em situação de ausência ou insuficiência de recursos económicos para a satisfação das suas necessidades mínimas, precisam de apoio para promover a sua progressiva inserção social e profissional, como é o caso do ainda vigente rendimento mínimo garantido ou do projectado rendimento social de inserção (cfr. artigos 24º a 33º da Lei nº 17/2000; sobre o âmbito, modalidades, condições de atribuição, montante e outras regras atinentes às prestações não contributivas do regime de solidariedade, v. Apelles J. B. Conceição, Segurança Social – Manual Prático, 7ª ed., 2001, Rei dos Livros, págs. 270 e segs.).
Esta última eventualidade começou por ser prevista no nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 50/88, de 19 de Abril, que criou o subsídio de inserção dos jovens na vida activa, muito embora os seus destinatários fossem precisamente tão-só os jovens carenciados com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos e à procura do primeiro emprego. Este subsídio de inserção viria, porém, a ser posteriormente absorvido pelo rendimento mínimo garantido, sendo a Lei nº 50/88 revogada pelo Decreto-Lei nº 196/97, de 3 de Julho, que regulamentou a Lei nº 19-A/96.
Aliás, foi igualmente em 1988 que o Parlamento Europeu, através de uma resolução, considerando, nomeadamente, o agravamento da exclusão social em grupos mais atingidos pela pobreza – entre os quais, «os jovens» - se pronunciou a favor da «instituição, em todos os Estados-membros, de um rendimento familiar mínimo garantido, como factor de inserção social dos cidadãos mais pobres»
(Jornal Oficial das Comunidades Europeias, nº C 262, de 10 de Outubro de 1988, pág. 194). Logo após, em 1989, o Conselho Europeu veio a aprovar a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, em cujo nº 10 se proclama que, «de acordo com as regras próprias de cada país», «as pessoas excluídas do mercado de trabalho, quer porque a ele não tenham podido ter acesso quer porque nele não se tenham podido reinserir, e que não disponham de meios de subsistência, devem poder beneficiar de prestações e de recursos suficientes, adaptados à sua situação pessoal»
(htpp://www.parleurop.pt/docs/50anos/085.html).
Já em 1992, o Conselho aprovaria ainda a Recomendação nº 92/441/CEE, relativa a critérios comuns respeitantes a recursos e prestações suficientes nos sistemas de protecção social (Jornal Oficial das Comunidades Europeias, nº L
245, de 26 de Agosto de 1992, págs. 46-48). Aí se recomenda aos Estados-membros que «reconheçam, no âmbito de um dispositivo global e coerente de luta contra a exclusão social, o direito fundamental dos indivíduos a recursos e prestações suficientes para viver em conformidade com a dignidade humana e, consequentemente, adaptem o respectivo sistema de protecção social, sempre que necessário»; por outro lado, de acordo com esta Recomendação, a implementação do mencionado direito deve, para além do mais, «preservar nas pessoas com idade e aptidão para trabalhar a vontade de procurar um emprego» (C, 1, d)) e nortear-se, entre outros, pelo seguinte princípio (B, 3):
A abertura deste direito a todas as pessoas que não disponham, nem por si próprias nem no seio do seu agregado familiar, de recursos suficientes, o sob reserva da disponibilidade activa para o trabalho ou para a formação profissional com vista à obtenção de um posto de trabalho, relativamente às pessoas cuja idade, saúde e situação familiar permitam essa disponibilidade activa ou, se for caso disso, sob reserva de medidas de integração económica e social, relativamente às outras pessoas, e o sem prejuízo da faculdade dos Estados-membros de não abrirem este direito
às pessoas que tenham um emprego a tempo inteiro nem aos estudantes
6. Terá sido também na sequência desta preocupação manifestada pelos
órgãos comunitários que, logo em 1993 e 1994, surgiram as primeiras iniciativas legislativas destinadas a assegurar um mínimo vital de subsistência naquelas situações não abrangidas pela pensão social ou pelo subsídio de inserção dos jovens na vida activa – o Projecto de lei nº 309/VI (PCP), propondo a criação de um rendimento mínimo de subsistência, e o Projecto de lei nº 385/VI (PS), propugnando o estabelecimento de um rendimento mínimo garantido que procurasse favorecer uma progressiva inserção social e profissional (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 32, de 8 de Maio de 1993, e nº 26, de 3 de Março de 1994, respectivamente), ambos discutidos (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série, nº 52, de 25 de Março de 1994, e nº 76, de 26 de Maio de
1994, respectivamente) e rejeitados pelo Parlamento (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série, nº 55, de 8 de Abril de 1994, e nº 78, de 28 de Maio de
1994, respectivamente).
Na legislatura subsequente, seguiram-se novas iniciativas legislativas sobre a matéria – o Projecto de lei nº 6/VII (PCP) e a Proposta de lei nº 25/VII (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 2, de 8 de Novembro de 1995, e nº 36, de 20 de Abril de 1996, respectivamente) –, as quais foram discutidas conjuntamente (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série, nº 68, de 10 de Maio de 1996), vindo o projecto de lei a ser rejeitado, enquanto a proposta de lei seria aprovada (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série, nº 71, de 17 de Maio, e nº 77, de 31 de Maio de 1996) e daria origem à já mencionada Lei nº 19-A/96.
No que respeita à questão da idade para poder ser titular do direito, os projectos de lei apresentados pelo Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português fixavam-na nos 18 anos; já o projecto de lei subscrito pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista a estabelecia nos 25 anos, sem previsão de revogação, contudo, do subsídio de inserção dos jovens na vida activa, então vigente.
A Lei nº 19-A/96 dispunha, sobre esta matéria da idade mínima para a titularidade do direito, no seu artigo 4º: Artigo 4º Titularidade
São titulares do direito à prestação de rendimento mínimo os indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, ou inferior, se tiverem menores na exclusiva dependência económica do seu agregado familiar, desde que satisfaçam as restantes condições estabelecidas na presente lei.
E esta disposição foi assim regulamentada pelo já mencionado Decreto-Lei nº 196/97, diploma que, no seu artigo 50º, procedeu igualmente, como atrás se disse, à revogação da Lei nº 50/88: Artigo 3º Titularidade
São titulares do direito à prestação de rendimento mínimo os indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, ou inferior, desde que estejam em situação de autonomia económica, satisfaçam as restantes condições de atribuição e se encontrem em alguma das seguintes situações: a. Tenham sido emancipados pelo casamento; b. Tenham outros menores na sua exclusiva dependência económica ou na do seu próprio agregado; c. Se encontrem grávidas.
Verifica-se, assim, no plano que ora nos interessa, que as situações que permitiam fazer baixar dos 18 anos a idade para ser titular do direito são, grosso modo, aquelas que agora se prevê possam fazer baixar essa idade dos 25 anos.
Aliás, uma iniciativa legislativa tendente, para além do mais, a fazer passar dos 18 para os 25 anos a idade para poder ser titular deste direito ocorrera entretanto com a apresentação do Projecto de lei nº 176/VII (CDS-PP), rejeitado no Parlamento, quando da sua votação na generalidade (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 35, de 27 de Abril e I Série, nº 75, de
8 de Junho de 2000).
7. É neste contexto que surge, pois, a Proposta de lei nº 6/IX
(Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 10, de 1 de Junho de 2002), em cuja exposição de motivos se justifica assim, no passo mais relevante, a alteração legislativa concretamente questionada pelo Presidente da República:
[...] Nestes termos, e à semelhança do que se verifica noutros países da União Europeia, estabelece-se como idade mínima de acesso à prestação como titular os
25 anos, pois que a integração e a autonomia destes jovens deverá ser feita noutro plano, potenciando as medidas de formação e emprego já existentes e ainda estabelecendo metodologias de inserção prioritárias para esta faixa etária. Com efeito, a capacidade empreendedora e a disponibilidade dos jovens devem ser reconhecidas, aproveitadas e fomentadas de outra forma, designadamente através da prossecução e desenvolvimento de políticas activas de emprego.
No entanto, considerando o quão socialmente arreigado se encontra este direito, a presente proposta consagra um regime transitório para os titulares nestas condições [...]
Esta proposta de lei, depois de apreciada (Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 13, de 15 de Junho de 2002) pela competente comissão parlamentar especializada – a Comissão de Trabalho e dos Assuntos Sociais – , foi objecto de pareceres emitidos pela Assembleia Legislativa Regional da Madeira (Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 14, de 20 de Junho de
2002) e pela Assembleia Legislativa Regional dos Açores (Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 15, de 22 de Junho de 2002). O parecer desta última assembleia, negativo quanto ao ponto em causa, refere-se deste modo à questão:
O artigo 4º, ao passar a considerar como titulares do direito cidadãos com idade igual ou superior a 25 anos (quando o anterior sistema atribuía a titularidade do direito a cidadãos com idade igual ou superior a 18 anos), faz com que algumas centenas de açorianos fiquem excluídos do sistema.
Mais se considera que o hiato de tempo que decorrerá entre o fim da escolaridade mínima obrigatória e a idade proposta para aceder ao direito será um factor negativo, uma vez que este universo de jovens tem uma baixa escolaridade e constitui mão-de-obra não qualificada, dificultando o acesso aos canais normais de empregabilidade que o RMG facilitava e promovia e que o sistema ora proposto não preconiza e até pode subverter nos termos apresentados no artigo 19º.
Efectuada igualmente audição pública às comissões de trabalhadores, sindicatos e associações patronais (Separata nº 7/IX do Diário da Assembleia da República, de 24 de Junho de 2002), veio a proposta de lei a ser apreciada na generalidade (Diário da Assembleia da República, I Série, nº 20, de 15 de Junho de 2002). Durante esse debate na generalidade, a questão da idade mínima para a titularidade do direito foi também várias vezes suscitada.
Assim, logo na apresentação inicial da proposta de lei, o Ministro da Segurança Social e do Trabalho sublinhou:
Com esta proposta de lei procede-se a importantes alterações em relação ao quadro legal existente. Refiro-me, desde já, à alteração da idade de acesso à titularidade, que passa dos 18 para os 25 anos, sem prejuízo dos direitos adquiridos pelos actuais titulares naquelas condições.
Não se trata de menor atenção para com os jovens e nem sequer é uma medida inovadora, pois noutros países da União Europeia o limite é de 25 anos e, até, de 30 anos de idade. No início da sua vida, os jovens necessitam de um apoio específico na procura de um papel activo na comunidade. O que é prioritário é promover as capacidades de trabalho e empreendedora daquela população, pelo que esta nova orientação tem de ser conjugada com outros dispositivos, nomeadamente nas áreas do emprego e da formação profissional, cuja diversidade de programas é considerável e se encontram subaproveitados.
E, mais adiante, instado para concretizar as medidas que foram tomadas para compensar os jovens entre os 18 e os 25 anos, o mesmo membro do Governo, depois de esclarecer que, face à escassez de recursos, «em política social há uma questão fundamental, que é ter prioridades, e ter prioridades significa escolher umas coisas em detrimento de outras», logo acrescentou:
Portanto, a nossa ideia é a de que para este grupo dos 18 aos 25 anos
– considerando, repito, que esta é uma prestação de último recurso – há muitas e melhores soluções de opções prioritárias, designadamente nos programas de emprego, de formação profissional, de formação qualificante, de aprendizagem, de combate à toxicodependência [...] onde devem radicar as questões fundamentais destes jovens, onde lhes pode ser garantida autonomia, independência, dignidade cívica e capacidade laboral e não, pura e simplesmente, ser alimentados através de subsídios [...]
A proposta de lei em causa, depois de aprovada na generalidade
(Diário da Assembleia da República, I Série-A, nº 22, de 21 de Junho de 2002), foi votada na especialidade na comissão parlamentar respectiva (Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 30, de 8 de Outubro de 2002), onde a mesma questão foi particularmente controvertida, constando do respectivo relatório:
Relativamente ao artigo 4º («Titularidade») da proposta de lei, foram apresentadas pelo Grupo Parlamentar do PS propostas de substituição dos nºs 1 e
2 do artigo e, ainda, uma proposta de substituição de todo o artigo (tornando-o número único), apresentada pelo BE. Todas estas propostas tinham por base a consideração de que a alteração do limite etário dos titulares (de 18 para 25 anos) consubstanciava uma injustiça, deixando desprotegido um conjunto de cidadãos, pelo que as propostas de alteração iam no sentido da manutenção do limite etário constante da Lei nº 19-A/96.
O Deputado Vieira da Silva (PS) considerou que não se compreendia por que motivo um casal com determinado rendimento tinha direito à medida de inserção social em causa e dois irmãos órfãos com o mesmo rendimento, pelo facto de serem menores de 25 anos, já não poderiam auferir do mesmo benefício.
Finalmente, a proposta de lei foi aprovada em votação final global, com votos favoráveis do PPD/PSD e do CDS-PP e votos contrários do PS, do PCP, do BE e do PEV (Diário da Assembleia da República, I Série, nº 41, de 27 de Setembro de 2002).
a. Apreciação da questão de inconstitucionalidade
8. Partindo do princípio de que a legislação atinente ao rendimento mínimo garantido, que concretizou o direito à segurança social dos cidadãos mais carenciados – incluindo os jovens entre os 18 e os 25 anos em situação «de falta ou diminuição de meios de subsistência» - constitui «uma manifestação juridicamente sustentada de chamados direitos derivados a prestações», duvida o requerente que fosse possível «retroceder no grau de realização entretanto atingido», sem que tal retrocesso «se sustente numa comprovada incapacidade material, designadamente financeira» ou seja imposto «por força da necessária realização de outros valores de natureza constitucional». É que, tratando-se de
«verdadeiras restrições a direitos fundamentais», não bastariam «para fundamentar a afectação ou restrição do conteúdo dos direitos sociais ou dos direitos derivados a prestações neles baseados» a invocação de «razões ou preconceitos de natureza ideológica não constitucionalmente sustentados» ou a apresentação de «justificações meramente apoiadas em diferenças de opinião política próprias da variação conjuntural das maiorias de governo».
A questão da proibição do retrocesso não se colocará, em tese, apenas no que se refere aos direitos sociais. Pelo contrário, o Conselho Constitucional francês inaugurou a jurisprudência do denominado effet cliquet precisamente no domínio das liberdades fundamentais, na sua decisão DC 83-165, de 20 de Janeiro de 1984, considerando que não é possível a revogação total de uma lei, em tais matérias, sem a substituir por outra que ofereça garantias com eficácia equivalente (L. Favoreu/L. Philippe, Les grandes décisions du Conseil Constitutionnel, 10ª ed., Dalloz, 1999, págs. 581 e segs., e, em especial, nºs
26/27, págs. 595/596). E só bastante mais tarde veio, num caso (DC 90-287, de 16 de Janeiro de 1991, in Louis Favoreu, Recueil de jurisprudence constitutionnelle
1959-1993, págs. 432 e segs.) a admitir que o referido effet cliquet pudesse ainda operar no âmbito dos direitos económicos e sociais, não sem que a doutrina se tenha interrogado sobre essa extensão (Louis Favoreu, Revue Française de Droit Constitutionnel, 1991, 6, pág. 293).
A propósito desta problemática, afirmou-se no Acórdão n.º 39/84
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., pág. 95):
[...] a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de constituir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social.
Pronunciando-se em sentido idêntico, Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra Editora, 2000, págs. 397-398) assinala:
Logo não é possível eliminar, pura e simplesmente, as normas legais e concretizadoras, suprimindo os direitos derivados a prestações porque eliminá-las significaria retirar eficácia jurídica às correspondentes normas constitucionais.
Como escreve MIGUEL GALVÃO TELES em geral acerca das normas programáticas, quando um comando vise criar uma situação duradoura, uma vez cumprido convola-se em proibição – de destruir essa situação.
Por seu turno, J.J.Gomes Canotilho (ob. cit., pág. 477) ensina:
Os direitos derivados a prestações, naquilo em que constituem a densificação de direitos fundamentais, passam a desempenhar uma função de
'guarda de flanco' (J.P. Müller) desses direitos garantindo o grau de concretização já obtido. Consequentemente, eles radicam-se subjectivamente não podendo os poderes públicos eliminar, sem compensação ou alternativa, o núcleo essencial já realizado desses direitos.
E, mais desenvolvidamente sobre o princípio do não retrocesso social, o mesmo autor explana o seguinte:
O princípio da democracia económica e social aponta para a proibição de retrocesso social.
A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de
«contra-revolução social» ou da «evolução reaccionária». Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A «proibição de retrocesso social» nada pode fazer contra as recessões e crises económica (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. O reconhecimento desta protecção de «direitos prestacionais de propriedade», subjectivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação do núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada «justiça social». Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que extinga o direito ao subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionadamente o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito
à reforma (cfr. Ac TC 39/84 – Caso do Serviço Nacional de Saúde – e Ac 148/94, DR, I, 13/5/94 – Caso das Propinas). A liberdade de conformação do legislador nas leis sociais nunca pode afirmar-se sem reservas, pois está sempre sujeita ao princípio da proibição de discriminações sociais e políticas antisociais. As eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. As eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos sociais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas («lei da segurança social», «lei do subsídio de desemprego», «lei do serviço de saúde») deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa «anulação», «revogação» ou «aniquilação» pura e simples desse núcleo essencial. Não se trata, pois, de proibir um retrocesso social captado em termos ideológicos ou formulado em termos gerais ou de garantir em abstracto um status quo social, mas de proteger direitos fundamentais sociais sobretudo no seu núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado. [...]
Também José Carlos Vieira de Andrade (ob. cit., págs. 391-392) analisa detidamente a questão, que trata de forma mais sintética noutro lugar
(La protection des droits sociaux fondamentaux au Portugal, in La protection des droits sociaux fondamentaux dans les Etats membres de l’Union européenne, cit., pág. 690):
Em nossa opinião, é difícil aceitar um princípio geral do «acquis social» ou da «proibição do retrocesso», sob pena de se sacrificar a «liberdade constitutiva» do legislador, sobretudo numa época em que ficou demonstrado que não existe uma via única e progressiva para atingir a sociedade justa.
Todavia, pode-se admitir que existe uma certa garantia de estabilidade : o uma garantia mínima, no que se refere à proibição feita ao legislador de pura e simplesmente destruir o nível mínimo adquirido; o uma garantia média, quando se exige às leis «retrocedentes» o respeito pelo princípio da igualdade (como proibição do arbítrio) e do princípio da protecção da confiança ; o uma garantia máxima, apenas nos casos em que se deve concluir que o nível de concretização legislativa beneficia de uma tal «sedimentação» na consciência da comunidade que deve ser tido como «materialmente constitucional».
Mas o mesmo autor não deixa expressivamente de advertir (Os Direitos Fundamentais ..., loc. cit.):
Contudo, isso não implica a aceitação de um princípio geral de proibição do retrocesso, nem uma «eficácia irradiante» dos preceitos relativos aos direitos sociais, encarados como um «bloco constitucional dirigente». A proibição do retrocesso não pode constituir um princípio jurídico geral nesta matéria, sob pena de se destruir a autonomia da função legislativa, degradando-a a mera função executiva da Constituição. A liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade, ainda que limitadas, constituem características típicas da função legislativa e elas seriam praticamente eliminadas se, em matérias tão vastas como as abrangidas pelos direitos sociais, o legislador fosse obrigado a manter integralmente o nível de realização e a respeitar os direitos por ele criados.
9. Embora com importantes e significativos matizes, pode-se afirmar que a generalidade da doutrina converge na necessidade de harmonizar a estabilidade da concretização legislativa já alcançada no domínio dos direitos sociais com a liberdade de conformação do legislador. E essa harmonização implica que se distingam as situações.
Aí, por exemplo, onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível «determinar, com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade» (cfr. Acórdão nº 474/02, ainda inédito), a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não venha a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão – e terá sido essa a situação que se entendeu verdadeiramente ocorrer no caso tratado no já referido Acórdão nº 39/84.
Noutras circunstâncias, porém, a proibição do retrocesso social apenas pode funcionar em casos-limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, sob pena de se lhe reconhecer uma subsistência meramente formal, inculca a revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o carácter de opções legislativas fundamentais.
Este Tribunal já teve, aliás, ocasião de se mostrar particularmente restritivo nesta matéria, pois que no Acórdão nº 101/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 389-390), parece ter considerado que só ocorreria retrocesso social constitucionalmente proibido quando fossem diminuídos ou afectados «direitos adquiridos», e isto «em termos de se gerar violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no
âmbito económico, social e cultural», tendo em conta uma prévia subjectivação desses mesmos direitos. Ora, no caso vertente, é inteiramente de excluir que se possa lobrigar uma alteração redutora do direito violadora do princípio da protecção da confiança, no sentido apontado por aquele aresto, porquanto o artigo 39º do diploma em apreço procede a uma expressa ressalva dos direitos adquiridos.
Todavia, ainda que se não adopte posição tão restritiva, a proibição do retrocesso social operará tão-só quando, como refere J. J. Gomes Canotilho, se pretenda atingir «o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana», ou seja, quando «sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios», se pretenda proceder a uma
«anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial». Ou, ainda, tal como sustenta José Carlos Vieira de Andrade, quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se faça com violação do princípio da igualdade ou do princípio da protecção da confiança; ou, então, quando se atinja o conteúdo de um direito social cujos contornos se hajam iniludivelmente enraizado ou sedimentado no seio da sociedade.
No sentido de entender que, no caso sub judicio, se verificaria esta
última condição – ou seja, que o nível de concretização legislativa do direito se encontraria de tal modo sedimentado na comunidade que teria passado a revelar, no que à idade mínima se refere, um valor «materialmente constitucional» - sempre se poderia argumentar com a própria exposição de motivos da proposta de lei que deu origem ao decreto em apreço, já que para justificar a salvaguarda dos direitos adquiridos pelos titulares do direito com idade inferior a 25 anos, o Governo invoca expressamente «o quão socialmente arreigado se encontra este direito». Não se afigura, porém, que esta mera afirmação se apresente como suficiente para o efeito, tanto mais quanto, durante a anterior legislatura, a já mencionada proposta de lei nº 176/VII, tendente a aumentar para os 25 anos a idade mínima para a titularidade do direito, embora rejeitada, recebeu o voto favorável de uma minoria significativa, constituída pelos grupos parlamentares do PPD/PSD e do CDS-PP.
Por outro lado, o diploma em que se insere a norma questionada não procede a uma pura e simples eliminação da prestação de segurança social destinada a assegurar o direito a um mínimo de existência condigna, mas apenas a uma reformulação do seu âmbito de aplicação. É bem verdade que um certo grupo de cidadãos foi dele excluído para o futuro; todavia, nessa perspectiva, só se poderia falar, em bom rigor, em violação da proibição do retrocesso social pressupondo-se, desde logo, que uma tal exclusão colidiria com o conteúdo mínimo desse direito.
Ora, assim sendo, a apreciação da questão da proibição do retrocesso perderá interesse no caso de se concluir que o direito a um mínimo de existência condigna se encontra constitucionalmente garantido e que, quanto a esses cidadãos, não existem outros instrumentos que o possam assegurar, com um mínimo de eficácia jurídica. É que, então, sempre existirá uma inconstitucionalidade por violação desse direito, independentemente do conteúdo da legislação anteriormente vigente.
Nesta conformidade, o que importará é averiguar o que impõe a Constituição relativamente ao direito a um mínimo de existência condigna – o que se fará mais adiante.
No entanto, a questão de saber se a redução do conteúdo do direito é efectuada de modo a atingir-se o princípio da igualdade já mantém autonomia conceptual relativamente à invocada proibição do retrocesso, uma vez que a sua análise se há-de efectuar sobretudo em função das relações que intrinsecamente se estabelecem entre as diversas situações reguladas pelo decreto em apreciação
– e não da comparação entre o tratamento que agora lhes passará a ser dado e aquele que resultava do regime ainda vigente.
10. A eventual violação do princípio da igualdade assentaria, de acordo com o requerente, na circunstância de a norma questionada discriminar,
«sem fundamento razoável para o fazer, entre pessoas maiores e menores de 25 anos».
O sentido juridicamente vinculante do princípio da igualdade tem sido explicitado numa já larga jurisprudência do Tribunal Constitucional, de certo modo sintetizada no Acórdão nº 186/90 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º vol., pág. 383):
Princípio de conteúdo pluridimensional, postula várias exigências, entre as quais a de obrigar a um tratamento igual das situações de facto iguais e a um tratamento desigual das situações de facto desiguais, proibindo, inversamente, o tratamento desigual das situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais. Numa fórmula curta, a obrigação da igualdade de tratamento exige que «aquilo que é igual seja tratado igualmente, de acordo com o critério da sua igualdade, e aquilo que é desigual seja tratado desigualmente, segundo o critério da sua desigualdade».
Na sua dimensão material ou substancial, o princípio constitucional da igualdade vincula em primeira linha o legislador ordinário (para uma análise dos sentidos formal e material do princípio da igualdade, cfr., por todos, Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, pp. 380 e 381; Castanheira Neves, O Instituto dos «Assentos» e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, pp. 119,
120, 165 e 166; Böckenförde, W., Der Allgemeine Gleichheitssatz und die Aufgabe des Richters, Berlin, W. de Gruyter, 1957, pp. 43 e 68). Todavia, este princípio não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, dentro da sua liberdade de conformação legislativa.
Por outras palavras, o princípio constitucional da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular.
O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot).
Por outro lado, entrecruzando o controlo jurisdicional do princípio da igualdade com a protecção também jurisdicional dos direitos sociais, e depois de mencionar que, quanto a esta última, «na maior parte dos casos, o juiz tem de aceitar o poder de conformação do legislador e só em casos excepcionais ou em aspectos limitados se poderá concluir pela violação, que terá de ser manifesta, das normas constitucionais», José Carlos Vieira de Andrade (ob. cit., pág. 387), assinala:
Uma das hipóteses de mais fácil verificação será a da inconstitucionalidade resultante da violação do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio. Poderá acontecer quando uma lei organize ou regule prestações em cumprimento das imposições constitucionais ligadas ou decorrentes da consagração de direitos sociais e, ao fazê-lo, restrinja injustificadamente o
âmbito dos beneficiários, em manifesta contradição com os objectivos da norma constitucional, seja por um erro de qualificação, por força do hábito ou por uma intenção discriminatória.
Esta força normativa resulta do princípio da constitucionalidade e não pode ser negada aos preceitos relativos aos direitos sociais, nem subtraída ao poder de fiscalização judicial.
E o Tribunal Constitucional alemão, na sua decisão de 18 de Junho de
1975 (BverfGE, E 40, 121 (134)), sublinha:
[...] verifica-se uma violação do art.º 3, nº1, (igualdade) e do art.º 20 n.º1
(Estado social) da Lei Fundamental quando a ajuda aos necessitados não satisfaz as exigências da justiça social, seja porque o círculo dos beneficiários de uma determinada prestação do Estado é delimitado sem respeito pela realidade substantiva (sachwidrig abgegrenzt ist) ou porque num exame de conjunto da protecção social um grupo importante não é tido em consideração.
Razões da mesma natureza estiveram igualmente na origem do julgamento de inconstitucionalidade proferido por este Tribunal no Acórdão nº
181/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., pág. 747), relativamente a norma que estabelecia pressupostos mais gravosos para o viúvo do que para a viúva na atribuição do direito à pensão devida aos familiares de sinistrados falecidos por acidente de trabalho.
11. Significa isto que a distinção etária efectuada na norma questionada só será admissível se não for arbitrária, ou seja, se tiver uma justificação razoável.
Assim, o legislador não estará impedido de proceder a essa distinção, se a idade puder ser tida como factor relevante para a adopção de instrumentos jurídicos alternativos ao rendimento social de inserção, sublinhando-se aí certos e determinados objectivos específicos que se visa atingir relativamente ao grupo social dos jovens entre os 18 e os 25 anos – isto
é, uma particular preocupação com a sua integração no mercado de trabalho.
Ora, parece razoável admitir que, relativamente aos jovens, se procure conceder inteira prioridade à sua preparação para uma plena integração na vida social, dando particular ênfase à formação profissional, à aprendizagem e ao estabelecimento de condições que favoreçam a colocação num primeiro emprego. E isto, tanto mais quanto «os jovens gozam de protecção especial para efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais», nomeadamente «no acesso ao primeiro emprego, no trabalho e na segurança social», nos termos do preceituado no artigo 70º, nº 1, alínea b), da CRP, o que constitui credencial constitucional bastante para que lhes seja aplicável um regime que traduza, nesse domínio, uma discriminação positiva.
Dir-se-á, porém, que o que já não será possível é discriminar os jovens negativamente, excluindo-os da titularidade do rendimento social de inserção e não prevendo instrumentos suficientes de natureza alternativa. Só que, no fundo, uma tal questão também perde interesse, afinal, caso seja dada resposta afirmativa àquela já anteriormente identificada e que consiste em saber se o regime configurado, no que lhes concerne, respeita o conteúdo mínimo do direito a um mínimo de existência condigna, no caso de se concluir que ele se encontra constitucionalmente garantido e que, quanto aos referidos jovens, não existem outros instrumentos que o possam assegurar, com um mínimo de eficácia jurídica.
12. A questão que se perfila, pois, com decisivas repercussões na solução do problema colocado, é a de saber se existe uma garantia constitucional a um mínimo de existência condigna.
A este propósito, José Carlos Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 2ª ed., Almedina, 2001, pág. 388) interroga-se se, perante certas situações de carência, não se deverá reconhecer
«a todas as pessoas o direito a esse mínimo», colocando assim a questão:
[…] Não estará aí em causa directamente o valor da dignidade da pessoa humana ? Mas, a ser assim, não implicará isso um direito à sobrevivência, enquanto direito social de personalidade, entendido como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias e gozando, portanto, do respectivo regime, designadamente da sua imediata aplicabilidade?
E Wolfgang Däubler (La protection des droits sociaux fondamentaux dans l’ordre juridique de l’Allemagne, in La protection des droits sociaux fondamentaux dans les Etats membres de l’Union européenne, Bruylant, Bruxelas,
2000, pág. 68, assinala, no que se reporta ao direito à existência:
O texto da Lei fundamental não prevê expressamente uma obrigação para o Estado de conceder um mínimo de bens para assegurar a subsistência das pessoas que se encontram em território nacional.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional, no entanto, deduziu do art.º 1º da Lei Fundamental, que garante a dignidade do homem, um direito subjectivo aos meios necessários à existência do indivíduo. Num acórdão de 18 de Junho de 1975, o Tribunal decidiu que a assistência social faz parte das obrigações de um Estado Social «que decorrem do próprio conceito»; e que deve ser garantida uma existência «digna». Dada a diversidade dos meios possíveis para atingir esse fim, é o legislador que decide quanto aos instrumentos e ao montante do auxílio, se não se tratar do «mínimo indispensável». Esse mínimo é pois obrigatório e poderia, eventualmente ser invocado perante a jurisdição administrativa.
Na sua já citada decisão de 18 de Junho de 1975 (loc. cit., (133)), afirma o Tribunal Constitucional alemão:
A comunidade estatal deve garantir-lhes, em qualquer caso, os pressupostos mínimos para uma existência humanamente digna e, além disso, esforçar-se pela sua integração na sociedade tanto quanto possível [...].
Este dever geral de protecção não pode, naturalmente, terminar numa determinada idade: antes deve corresponder à necessidade existente de auxílio social. No entanto existem muito diversas possibilidades de realizar a protecção prevista.
Também Gerrit Manssen (Grundrechte, C. H. Beck, Munique, 2000, nº
181, pág. 52) escreve:
Em parte também se deduzem da dignidade humana pretensões a prestações efectivas. Em conexão com o princípio do Estado social pode-se daí deduzir que o Estado está obrigado a garantir o mínimo de existência da pessoa.
13. Este Tribunal, na esteira da Comissão Constitucional (cfr. Acórdão nº 479, Boletim do Ministério da Justiça, nº 327, Junho de 1983, pág.
424 e segs.), tem vindo a reconhecer, embora de forma indirecta, a garantia do direito a uma sobrevivência minimamente condigna ou a um mínimo de sobrevivência, seja a propósito da actualização das pensões por acidentes de trabalho (Acórdão nº 232/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., pág.
341), seja a propósito da impenhorabilidade de certas prestações sociais
(designadamente, do rendimento mínimo garantido – Acórdão nº 62/02, Diário da República, II Série, de 11 de Março de 2002), na parte em que estas não excedam um rendimento mínimo de subsistência ou o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna (cfr. Acórdão nº 349/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., pág. 515; Acórdão nº 411/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., pág. 615; Acórdão nº 318/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43º vol., pág. 639; e Acórdão nº 177/02, Diário da República, I Série-A, de 2 de Julho de 2002).
No Acórdão nº 62/02, em que se julgaram inconstitucionais certas normas que permitiam a penhora do rendimento mínimo garantido, «por violação do princípio da Dignidade Humana contido no princípio do Estado de Direito, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 1º e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República», sublinhou-se:
Ora, no caso do rendimento mínimo garantido [...] parece fora de dúvida, quer pelo montante da prestação (...), quer pelas suas finalidades, condições de atribuição e forma de cálculo, que ela visa justamente assegurar à recorrente o mínimo indispensável à sua sobrevivência condigna e do seu agregado familiar.
Importa, porém, distinguir entre o reconhecimento de um direito a não ser privado do que se considera essencial à conservação de um rendimento indispensável a uma existência minimamente condigna, como aconteceu nos referidos arestos, e um direito a exigir do Estado esse mínimo de existência condigna, designadamente através de prestações, como resulta da doutrina e da jurisprudência alemãs. É que esta última considera que «do princípio da dignidade humana, em conjugação com o princípio do Estado social decorre uma pretensão a prestações que garantam a existência», sendo de incluir na garantia do mínimo de existência «as prestações sociais suficientes», nos termos da legislação sobre auxílio social (Horst Dreier, Grundgesetz Kommentar, Band I, Mohr Siebeck, Tübingen, 1996, págs. 62 e 125-126); ou seja, que «o Estado está obrigado a garantir ao cidadão desprovido de meios, através de prestações sociais» os «pressupostos mínimos» para «uma existência humanamente digna»
(BverfGE, 82, 60 (85) .
Esta afirmação de uma dimensão positiva de um direito ao mínimo de existência condigna, em paralelo com a sua dimensão negativa, parece ter sido igualmente recebida na fundamentação do Acórdão nº 349/91 – e retomada no Acórdão nº 318/99 – , tendo-se aí salientado:
[...] o artigo 63º da Constituição reconhece a todos os cidadãos um direito à segurança social, determinando o nº 4 do mesmo preceito que «o sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho».
Este preceito constitucional poderá, desde logo, ser interpretado como garantindo a todo o cidadão a percepção de uma prestação proveniente do sistema de segurança social que lhe possibilite uma subsistência condigna em todas as situações de doença, velhice ou outras semelhantes. Mas ainda que não possa ver-se garantido no artigo 63º da Lei Fundamental um direito a um mínimo de sobrevivência, é seguro que este direito há-de extrair-se do princípio da dignidade da pessoa humana condensado no artigo 1º da Constituição» (cf. Acórdão n.º 232/91(...)).
É também por o considerar «inerente ao respeito da dignidade da pessoa humana» que J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª ed., Almedina, 2002, pág. 343) considera que o princípio da defesa de condições mínimas de existência pode fundar «uma imediata pretensão dos cidadãos», «no caso de particulares situações sociais de necessidade».
Daqui se pode retirar que o princípio do respeito da dignidade humana, proclamado logo no artigo 1º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignado no seu artigo 2º, e ainda aflorado no artigo 63º, nºs 1 e 3, da mesma CRP, que garante a todos o direito à segurança social e comete ao sistema de segurança social a protecção dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do direito ou da garantia a um mínimo de subsistência condigna.
Todavia, o legislador, «dada a diversidade dos meios possíveis para atingir esse fim» (cfr. Wolfgang Däubler, cit.), goza de uma larga margem de liberdade conformadora, podendo decidir «quanto aos instrumentos e ao montante do auxílio», sem prejuízo de dever assegurar sempre o «mínimo indispensável». Essa é uma decorrência do princípio democrático, que supõe a possibilidade de escolhas e de opções que dê significado ao pluralismo e à alternância democrática, embora no quadro das balizas constitucionalmente fixadas, devendo aqui harmonizar-se os pilares em que, nos termos do artigo 1º da Constituição, se baseia a República Portuguesa: por um lado, a dignidade da pessoa humana e, por outro lado, a vontade popular expressa nas eleições.
Significa isto que, nesta perspectiva, o legislador goza da margem de autonomia necessária para escolher os instrumentos adequados para garantir o direito a um mínimo de existência condigna, podendo modelá-los em função das circunstâncias e dos seus critérios políticos próprios. Assim, in casu, podia perfeitamente considerar que, no que se refere aos jovens, não deveria ser escolhida a via do subsídio – designadamente, a do alargamento do âmbito de aplicação do rendimento social de inserção – , mas antes a de outras prestações, pecuniárias ou em espécie, como bolsas de estudo, de estágio ou de formação profissional ou salários de aprendizagem (maxime, quando associadas a medidas de inserção social).
Pressuposto é, porém, que as suas escolhas assegurem, com um mínimo de eficácia jurídica, a garantia do direito a um mínimo de existência condigna, para todos os casos.
14. Ora, os instrumentos jurídicos actualmente existentes destinados especificamente a promover a integração dos jovens na vida activa ou a sua formação profissional – a Portaria nº 414/96, de 24 de Agosto, atinente ao
«Programa Escolas-Oficinas»; a Portaria nº 268/97, de 18 de Abril, alterada pelas Portarias nº 1271/97, de 26 de Dezembro, e nº 814/98, de 24 de Setembro, respeitante aos «Estágios Profissionais»; e o Despacho Normativo nº 27/96, de 9 de Julho de 1996, regulador das «UNIVA – unidades de inserção na vida activa» – não conferem qualquer direito em situação de carência, nem asseguram aos jovens a possibilidade de, potestativamente, recorrerem aos programas neles previstos.
Assim, o «Programa Escolas-Oficinas» é de âmbito necessariamente limitado, porquanto, de um lado, visa tão-só a formação em actividades que abrangem os ofícios tradicionais de tipo artesanal e as novas profissões relacionadas com o meio ambiente e a jardinagem, e de outro lado, depende da candidatura de entidades enquadradoras, de natureza pública ou privada, ficando a concessão de apoios financeiros dependente das disponibilidades financeiras do IEFP para este Programa. A medida «Estágios Profissionais» depende igualmente da candidatura de entidades promotoras ou organizadoras e tem unicamente como destinatários os jovens com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos habilitados com qualificação de nível superior ou intermédio. Finalmente, os projectos «UNIVA» dependem essencialmente de iniciativas de entidades não-estaduais em que o apoio financeiro por parte do IEFP incide sobretudo na respectiva fase de arranque (3 anos), já que se visa um «desenvolvimento destas estruturas progressivamente auto-sustentada ou sustentada, pela entidade promotora».
Pode, assim, afirmar-se com segurança que não existem hoje – contrariamente ao que se poderia entender suceder durante a vigência da Lei nº
50/88 – instrumentos alternativos ao rendimento social de inserção que possam garantir, em todos os casos, para os jovens entre os 18 e os 25 anos por ele não abrangidos, o direito a um mínimo de existência condigna, sendo certo que se tem vindo a assistir, nos últimos anos, a uma diminuição do emprego de jovens e a um aumento da sua taxa de desemprego relativamente aos adultos (cfr. Instituto do Emprego e Formação Profissional, Relatório de Actividades, 2001, págs. A-5 e A-8). E o problema coloca-se relativamente aos jovens desta faixa etária, já que no que concerne aos menores existem outros instrumentos, nomeadamente o acolhimento familiar, o internamento e a garantia da prestação de alimentos.
15. Consequentemente, importa concluir que a norma em apreciação vem atingir o conteúdo mínimo do direito a um mínimo de existência condigna, postulado, em primeira linha, pelo princípio do respeito pela dignidade humana
(sobre o valor jurídico deste princípio, cfr. José Manuel Cardoso da Costa, Le Principe de la dignité de la personne humaine dans les jurisprudences européennes, Science et technique de la démocratie, nº 26, Commission européenne pour la démocratie par le droit, pág. 53), princípio esse consagrado pelo artigo
1º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignado no seu artigo 2º, e ainda aflorado no artigo 63º, nºs 1 e 3, da mesma CRP.
III – Decisão
16. Nestes termos, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4º, nº 1, do Decreto da Assembleia da República nº 18/IX, por violação do direito a um mínimo de existência condigna inerente ao princípio do respeito da dignidade humana, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 1º, 2º e 63º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa. Lisboa, 19 de Dezembro de 2002 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Gil Galvão Mário Torres Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Carlos Pamplona (vencido nos termos da declaração que anexo) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto junta) Benjamim Rodrigues (vencido nos termos da declaração de voto junta Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto apresentada pela Exmª Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza para a qual, com vénia remeto) José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme declaração junta) Declaração de voto. Salvo o devido respeito, afigura-se-me que a presente decisão não é favorecida por uma robusta consistência doutrinária. Na verdade, toda a fundamentação jurídica da decisão de inconstitucionalidade se concentra no ponto 14 dos respectivos fundamentos e é nestas poucas linhas, depois de exaustiva e significativamente ter afastado ou desvalorizado os argumentos aduzidos pelo Presidente da República e mesmo sem tomar posição sobre o problema de uma hipotética inconstitucionalidade por omissão, que o Tribunal vai surpreendentemente detectar um vício que é exterior ao diploma, pois proviria da circunstância de não existir uma outra normação (ainda que de natureza meramente administrativa) a garantir aquilo que entende dever ser 'o conteúdo mínimo do direito a um mínimo de existência condigna'. Ora, mesmo aceitando como correcto este (muito discutível) caminho lógico, impor-se-ia uma reflexão, que foi totalmente omitida, sobre a possibilidade de mediante outras fórmulas não necessariamente inscritas em lei o Estado garantir 'o mínimo' do direito cuja ofensa se vê aqui desenhada na concretização de uma tarefa que, como bem se reconhece no anterior ponto 13, incumbe exclusivamente ao poder político, maxime aos governos, sem qualquer intervenção do Tribunal - sob pena de desvirtuamento da lógica de equilíbrio de poder dos órgãos de soberania que integram um Estado democrático. Votaria, portanto, pela não inconstitucionalidade da norma em análise.
(Carlos Pamplona de Oliveira)
Declaração de voto
Votei vencida, em síntese, pelas seguintes razões:
1. O pedido de fiscalização preventiva do nº 1 do artigo 4º do Decreto nº 18/IX da Assembleia da República formulado pelo Presidente da República restringe-se à exigência da idade mínima de 25 anos (ressalvados os casos previstos no nº 2 do mesmo preceito) como condição de acesso ao rendimento social de inserção; e a dúvida de constitucionalidade resulta do confronto com o regime que a Assembleia da República pretendeu substituir, constante da Lei nº 19-A/96, de 29 de Junho, que previa a possibilidade de acesso ao rendimento mínimo garantido (também com a ressalva que veio a ser introduzida pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 196/97, de 31 de Julho) a partir dos 18 anos. No seu entender, a elevação da idade mínima, não acompanhada, nem da repristinação do regime constante na Lei nº 50/88, de 19 de Abril (que foi revogada pela Lei nº 19-A/96 e que previa o subsídio de inserção de jovens na vida activa), nem de 'qualquer compensação afim', constitui uma 'regressão na protecção social correspondente aos tempos anteriores a 1988'. Ora, estando em causa a concretização do direito fundamental à segurança social, e não existindo condicionantes financeiras a impor tal restrição, o Presidente da República entende que o Estado 'não pode bastar-se' para a justificar 'com razões ou preconceitos de natureza ideológica não constitucionalmente sustentados ou com justificações meramente apoiadas em diferenças de opinião plítica próprias da variação conjuntural das maiorias de governo'. Assim, coloca a dúvida de saber se tal restrição não violará o 'direito de todos
à segurança social e da obrigação estatal de prover nas situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho do artigo
63º, nº 1 e nº 3, da Constituição', bem como o princípio da igualdade (artigo
13º) e o princípio da universalidade relativamente ao direito à segurança social
(artigos 12º, nº 1 e 63º, nº 1).
2. O juízo de inconstitucionalidade que fez vencimento coincide com o pedido de apreciação no que respeita à medida da inconstitucionalidade verificada mas não acolhe a fundamentação apresentada no requerimento. Com efeito, o acórdão considera que, no caso, não tem interessa analisar, nem a
'questão da proibição do retrocesso', nem a eventual existência de violação do princípio da igualdade. Em síntese, e porque concluiu pela consagração constitucional de um direito a um 'mínimo de existência condigna' e pela sua violação pelo regime aprovado, o acórdão considerou não relevante, nem o confronto com o regime que se pretendeu substituir, nem a análise da questão de saber se estaria ou não em causa uma discriminação arbitrária dos jovens com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos.
3. Em meu entender, e independentemente de quaisquer considerações gerais sobre uma eventual tutela constitucional da proibição de retrocesso no âmbito da concretização pela lei ordinária de direitos sociais constitucionalmente previstos, deveria ter sido claramente afastada a existência de qualquer retrocesso constitucionalmente censurável. A mera invocação de tal princípio pelo pedido, desacompanhada da demonstração da adequação de um regime e da desadequação do outro, equivale a dar por assente, numa área em que há que reconhecer a legitimidade de concepções de política social diferentes, que só é constitucionalmente aceitável aquela que vingou quando foi aprovada a Lei nº
19-A/96, cristalizando a opção que a informou e negando ao legislador a liberdade de a considerar inadequada ao progresso social.
4. A posição que fez vencimento filiou a inconstitucionalidade, directamente, na violação do 'direito a um mínimo de existência condigna, inerente ao princípio do respeito da dignidade humana, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 1º, 2º e 63º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa'. Entendeu que, na concretização desse direito, o legislador goza de 'uma larga margem de liberdade conformadora' na escolha dos instrumentos necessários para o efeito; necessário é que esses instrumentos sejam dotados de um 'mínimo de eficácia jurídica'. Entendeu ainda que os instrumentos actualmente existentes
'não conferem qualquer direito em situação de carência nem asseguram aos jovens a possibilidade de, potestativamente, recorrerem aos programas neles previstos'; e daí concluiu que hoje, 'contrariamente ao que se poderia entender suceder durante a vigência da Lei nº 50/88', não existem instrumentos alternativos ao rendimento que o novo regime reserva aos maiores de 25 anos que possam garantir o 'direito a um mínimo de existência condigna', em todos os casos, aos jovens de idade compreendida entre os 18 e os 25 anos (sendo certo que, para os menores, há outros instrumentos).
Só que, ao prescindir de qualquer confronto, quer com o regime que se pretendeu substituir, quer com a situação dos maiores de 25 anos, e ao justificar a inconstitucionalidade na ausência de outros instrumentos eficazes, o acórdão transformou em inconstitucionalidade por acção uma hipotética inconstitucionalidade por omissão, cujos pressupostos, aliás, não estariam verificados.
5. Não se nega que se possa filiar na Constituição o 'direito a um mínimo de existência condigna, inerente ao princípio do respeito da dignidade humana'. O Tribunal Constitucional já o reconheceu, embora num contexto e para efeitos de tal forma diferentes que não parece que a jurisprudência citada no acórdão possa ser aqui relevante.
Na verdade, no acórdão nº 232/91 foi apreciada uma norma que impunha
às seguradoras o encargo da actualização de pensões por morte causada por acidente de trabalho, já fixadas à data em que a mesma entrou em vigor; a referência àquele princípio não aparece como fundamento para o juízo de não inconstitucionalidade, que se baseou na ausência de violação do princípio da confiança, mas, tão somente, para justificar o novo regime.
Nos demais arestos indicados estava em causa um conflito de direitos entre o direito credor-exequente a ser pago pelo seu crédito e o direito à subsistência por parte do devedor-executado; o Tribunal Constitucional entendeu então ser inconstitucional não considerar impenhoráveis determinados rendimentos considerados indispensáveis à sobrevivência condigna do devedor.
Como se reconhece no acórdão, é diferente afirmar a protecção constitucional de um 'direito a não ser privado' do mínimo indispensável à subsistência e entender que a Constituição impõe que se reconheça 'um direito a exigir do Estado esse mínimo de subsistência', como veio a concluir a posição que fez vencimento. Ora não creio que seja possível retirar esta conclusão, que exigiria uma muito maior precisão na definição constitucional do conteúdo do direito em causa.
6. Finalmente, não penso que tenha ficado suficientemente demonstrada no acórdão a inexistência instrumentos alternativos dotados de um 'mínimo de eficácia jurídica'. Desde logo, o acórdão não retirou qualquer consequência da circunstância de, como refere, se tratar de um subsídio integrado no âmbito de um subsistema da segurança social, o subsistema de protecção social de cidadania, que inclui, também, a acção social (cfr. artigos 24º e seguintes da Lei nº 17/2000, de 8 de Agosto). Ora a acção social, levada a cabo pelo Estado directamente ou em colaboração com entidades cooperativas e sociais e privadas não lucrativas, dirige-se especialmente 'aos grupos de cidadãos mais vulneráveis, tais como
(...) jovens (...)' e realiza-se através de prestações (artigos 35º e 36º da Lei nº 17/2000. Estas afirmações continuam a ser verdadeiras para a Lei de Bases da Segurança Social recentemente aprovada pela Assembleia da República – Decreto nº19/XI, artigos 82º e seguintes). Para além disso, não é exacto que os diplomas analisados no ponto 14. do acórdão não possam ser considerados meio alternativos de tutela suficiente do direito em causa, justamente por não estar demonstrado que ele implica qualquer direito de exigir. Saliente-se, a teminar, que, pese embora a contraposição feita entre o regime constante da Lei nº 50/88 e os instrumentos normativos analisados no acórdão, da sua fundamentação retira-se não ser a concessão de um subsídio (semelhante ou não ao que consta do Decreto nº 18/IX da Assembleia da República) a única via de dar cumprimento ao imperativo constitucional de respeito do direito a um mínimo de existência condigna, ainda que entendido como foi na posição que fez vencimento. Não considero, pois, que tenha sido demonstrada a inconstitucionalidade na norma questionada pelo Presidente da República; o acórdão não deveria, assim, ter concluído nesse sentido. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Declaração de voto
Votei vencido por não poder acompanhar a tese que fez vencimento. Numa situação em que o Tribunal não pôde concluir – e bem - pela inconstitucionalidade do art.º 4º, n.º 1 do Decreto da Assembleia da República n.º 18/IX com base no princípio que havia sido alegado como fundamento autónomo do pedido como tendo natureza constitucional – do princípio da proibição do retrocesso social – por considerar não se poder afirmar ter-se por autonomamente atingido «o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana», nem pela violação do princípio da igualdade, só de forma incoerente se poderá ter concluído que a não previsão dos jovens como titulares do direito ao rendimento social de inserção viola o conteúdo mínimo do direito a uma existência condigna postulado pelo princípio do respeito pela dignidade humana. Muito embora aceitando poder o princípio da dignidade humana constituir fonte constitucional autónoma de um direito a exigir do Estado uma prestação positiva, que poderá assumir as mais diversas formas, desde que funcionalmente adequadas a poder salvaguardar a existência física e psíquica humanas - atenta a circunstância desse princípio ser um princípio estruturante de todo o sistema constitucional e do próprio Estado - nunca tal direito será definido como um direito categorial ou respeitante a certo círculo de pessoas, mas antes um verdadeiro direito subjectivo constitucional que só existirá onde esse mínimo de existência possa ser surpreendido. Ora, esse mínimo é, por natureza diferente, de pessoa para pessoa e de idade para idade, e mormente nas idades que estão em causa. Nesta perspectiva e considerando que os menores de 25 anos tendem a estar ainda integrados na família e que as suas necessidades são essencialmente de inserção na comunidade de emprego, não se vê terreno para poder afirmar-se a necessidade de salvaguarda de um direito subjectivamente categorial a um mínimo de existência traduzido na atribuição de uma prestação pecuniária. A tudo acresce que existem já alguns instrumentos jurídicos, como são aqueles de que o próprio acórdão dá conta, que, em concreto e relativamente a uma parte dos jovens, dão já alguma satisfação à necessidade de inserção na comunidade do trabalho. Por outro lado, o acórdão nem sequer equacionou o facto bem conhecido da realização de muitas prestações, inseridas neste âmbito material, que são realizadas pelas Organizações Não Governamentais. Finalmente, o acórdão sofre de uma petição de princípio, pois deixa por demonstrar quais as utilidades ou feixes de utilidades e a sua expressão positiva, mormente de natureza quântica, que devam integrar o núcleo do direito a um mínimo de existência e que o rendimento de inserção a que se refere o art.º
4º do Decreto da Assembleia da República, cuja constitucionalidade se sindicou, corresponda a esse mínimo que tenha de ser necessariamente garantido de forma categorial. Benjamim Rodrigues
Declaração de voto
1. Não obstante os termos sintéticos da fórmula decisória, é óbvio – como, de resto, resulta à evidência dos termos em que a questão foi posta ao Tribunal e dos fundamentos do precedente acórdão – que o juízo de inconstitucionalidade neste emitido se cinge ao facto de o preceito em apreço, que define a titularidade do 'rendimento de inserção social', não abranger, em geral, os cidadãos de idade compreendida entre os 18 e os 25 anos: está-se, pois, diante de uma inconstitucionalidade parcial 'qualitativa', a qual radica, no fundo, e num certo sentido, numa 'omissão' do legislador. Mas – emerge isso ainda, clara e expressamente, da fundamentação do acórdão – tal inconstitucionalidade (ou omissão) não reside sequer, e sem mais, na circunstância de os cidadãos antes referidos não poderem ser, em regra, beneficiários do dito rendimento: reside mais precisamente, e tão-só, no facto de não poderem ser beneficiários dele nem lhes estar garantida, pelo conjunto da ordem jurídica, qualquer outra prestação 'alternativa' (pecuniária ou em espécie) que lhes assegure o 'direito a um mínimo de existência condigna'. No juízo de inconstitucionalidade assim emitido pelo Tribunal, destacarei, pois, dois aspectos:
- que ele se fundamenta na violação, não de um princípio de 'proibição do retrocesso social', mas antes do direito (a um mínimo de existência condigna) acabado de referir;
- e que, no tocante à concreta modelação da prestação que há-de ser garantida aos jovens entre os 18 e os 25 anos, em geral, o Tribunal a deixa ao 'poder de conformação'
ou 'autonomia' de escolha do legislador. O que significa – sem margem para qualquer dúvida – que o expurgo da inconstitucionalidade agora reconhecida não tem de passar necessariamente pelo alargamento do 'rendimento de inserção social' (tal
como regulado no diploma em que se insere a norma em apreço) àquele universo de pessoas (através de uma reformulação, em conformidade, dessa norma): pode perfeitamente ser obtido percorrendo outros caminhos.
2. Pese o fundamento do juízo de inconstitucionalidade, a que o Tribunal chegou, ser o referido (e não um princípio de 'proibição do retrocesso social', que continua a merecer-me as maiores reservas, à luz da 'teoria constitucional' que logo na declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 39/84, p.ex., evoquei, e à qual me mantenho fiel) e pese, por outra banda, o alcance – afinal, limitado – desse juízo, não pude acompanhá-lo. As razões do meu dissentimento convergem, no essencial, com as que constam das declarações de voto dos Ex.mos Juízes Conselheiros que igualmente não subscreveram a decisão do Tribunal. Apenas sublinharei, por isso, o seguinte:
- também comungo da ideia de que há um dever do Estado de promover as condições
(de assegurar, se se quiser) a realização do limiar mínimo da existência condigna de todas e cada uma das pessoas concretas que integram a comunidade política: um Estado que se confessa baseado, antes de mais, na 'dignidade da pessoa humana' e se pretende 'ao serviço da pessoa' (um Estado que existe propter nos homines et propter nostram salutem) há-de hoje, certamente, inscrever aquele objectivo entre os fins primários da sua actuação. Mas construir, a partir daí, logo ao nível constitucional, um direito, no sentido estrito e dogmático do conceito (sublinho o ponto), com identidade e consistência bastantes, ainda que mínimas, para dele se extrair a conclusão a que o Tribunal chegou (e, afinal, como creio estar implicitamente contida na lógica do acórdão, também a de que, antes do diploma instituidor do 'rendimento mínimo garantido', haveria nessa área uma vasta 'omissão legislativa'), vai um largo e arrojado, mas problemático passo;
- depois, e mesmo dando esse passo, sucede que, tendo em conta, não apenas a norma em apreço, mas a regulamentação legal do diploma em que se acha inserida, mormente o disposto no n.º 2 do artigo 4º e nos artigos 3º e 5º (destes resultando que a 'unidade de atribuição' do 'rendimento de inserção social' é o
'agregado familiar', tal como definido nesse último preceito), tenderão a ser muito residuais – se bem vejo – as
situações em que os cidadãos entre os 18 e os 25 anos poderão ficar, mormente por facto independente da sua vontade (que seria a situação mais justificadora, ou até verdadeiramente justificadora de uma tutela protectiva específica), fora da cobertura do dito rendimento. Ora, sem uma indagação particularmente exaustiva, não só do direito como da realidade institucional portuguesa em matéria de protecção social, não me abalanço a concluir que essas situações
(mais, ou verdadeiramente, carecidas de tutela) ficarão (ou ficariam) inteiramente desprovidas de qualquer protecção desse tipo;
- por último, ainda que assim fosse, e houvesse (ou haja) realmente uma situação de 'omissão', e ainda que – deslocando-me agora para outro plano argumentativo – não rejeite a possibilidade jurídica de, havendo a emissão de uma norma (como sucede no caso sub judicio), a 'omissão' do legislador ser sancionada através de um juízo de inconstitucionalidade parcial 'qualitativa', não tendo forçosamente de ficar-se por um simples juízo de 'omissão', ainda aceitando esse postulado metodológico, afigura-se-me que na situação em presença, tudo somado, e a verificarem-se realmente os correspondentes pressupostos (consoante o Tribunal entendeu) não deveria ir-se além desse outro tipo de juízo (se bem que o Tribunal o não pudesse emitir 'formalmente', uma vez que para tanto se carece, como é sabido, de um processo próprio). É que emitir um juízo de inconstitucionalidade parcial redunda, afinal, em exigir ao legislador uma perfeita e completa 'sincronia' de actuação - e, para além de tudo o que antes ficou dito, sempre isso se me afiguraria, na hipótese, claramente excessivo. José Manuel Cardoso da Costa