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Processo nº 267/2002
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença de 22 de Janeiro de 2001 do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, de fls. 145, foi julgado parcialmente procedente o recurso interposto por A e outros, expropriados no processo em que é expropriante a CÂMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE GAIA, relativo a uma parcela de terreno, devidamente identificada nos autos. Foi, assim, aumentada para 25.500.000$00 a indemnização correspondente (que os árbitros haviam fixado em 10.089.000$00), valor ao qual o tribunal mandou subtrair o montante de 9.807.000$00, já recebido, e acrescentar a actualização devida. Para o efeito, entendeu-se que a parcela em causa se classificava como solo apto para construção, nos termos do disposto no artigo 24º do Código das Expropriações de 1991, e que o valor da indemnização devia ser actualizado de acordo com o nº 1 do artigo 23º do mesmo Código. Inconformada, a CÂMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE GAIA recorreu para o Tribunal da Relação do Porto. Nas alegações que então apresentou, sustentou, em síntese, que o solo deveria ter sido classificado como 'solo para outros fins', por se situar em zona onde não era possível edificar, pois que, segundo o P.D.M. de Vila Nova de Gaia, se destinava a equipamentos. E concluiu afirmando que 'a sentença' da 1ª instância 'fez errada interpretação e aplicação do direito aos factos', 'violando o prescrito nos arts. 15º e 51º do P.D.M. de Gaia [,] os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e da justa indemnização consignados nos arts. 13º, 18º, nº 2 e 62º da Constituição da República Portuguesa e arts. nº 1, 22º, 24º nº 5 e 25 nº 1 do Código das Expropriações de 1991 (aplicável)'. Note-se que a alegação de violação dos referidos princípios constitucionais assenta na comparação do caso dos autos com os de outros processos julgados pelo Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia. O Tribunal da Relação do Porto, porém, por acórdão de 25 de Fevereiro de 2002, de fls. 272, confirmou a qualificação da parcela expropriada como 'solo apto para construção', tendo em conta 'o disposto no artº 24º, nº 2, al. a) do Dec. Lei nº 438/91 (Código de Expropriações)'. Considerou que, 'como último recurso', não seria 'de todo estranha a aplicabilidade (...) do disposto no artº 26º, nº 2 do Dec. Lei nº 438/91, de 9/11 (Código das Expropriações), atento o destino invocado para a parcela expropriada'; e concluiu pela aplicação do critério de cálculo do valor constante do artigo 25º do mesmo Código, por se tratar, efectivamente, de um 'solo apto para construção'. Finalmente, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto entendeu não terem fundamento as acusações de que a sentença da 1ª instância violara os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, tecendo diversas considerações sobre a aplicação destes princípios às decisões judiciais.
2. De novo inconformada, a CÂMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE GAIA recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da constitucionalidade 'da norma contida no art. 25º do D.L. 438/91, de 9/11, quando interpretada no sentido de que ele ‘não restringe qualquer hipotética construção habitacional’ (sic) bem como da norma do art. 26º nº 2 do citado D.L.
438/91 quando interpretada no sentido da sua aplicação a casos de expropriação de solos classificados como zona verde ou de lazer por plano municipal de ordenamento, sem que a expropriante os destine a finalidades diversas daquela que tinham antes da expropriação, por violação dos princípios constitucionais de igualdade, proporcionalidade e de justa indemnização consignados nos artºs 13º,
18º e 62º da Constituição da República Portuguesa'. O recurso foi admitido, embora 'por mera cautela', em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as respectivas alegações. Quanto à recorrente, começou por justificar a violação dos referidos princípios constitucionais sustentando que, ao considerar a parcela expropriada como
'susceptível de construção habitacional', ignorando a sua inserção, pelo P.D.M.,
'em Área de Equipamento', a 'sentença' não respeitou 'o consignado no nº 1 do art. 25º do C.E. de 1991' quando acolheu a avaliação 'da forma como o foi pelos Srs. Peritos'. Para além disso, essa consideração levou a uma sobrevalorização da parcela em causa, por confronto com 'outras que, encontrando-se também inseridas em Área de Equipamentos não são objecto de expropriação'. Seguidamente, afirmou – sem fundamentar – que a norma do artigo 26º, tal como a definiu no requerimento de interposição de recurso, viola os mesmos princípios. E terminou com as seguintes conclusões:
' – A norma do artigo 25º do D.L. 438/91, de 9/11, quando interpretada no sentido de que ela não restringe ou distingue qualquer hipotética construção habitacional com a consequente fixação desigual de indemnização.
– A norma do artigo 26º nº 2 do citado D.L. 438/91, de 9/1, quando interpretada no sentido da sua aplicação em casos de expropriação de solos classificados como zona verde ou de lazer por plano municipal de ordenamento sem que a expropriante os destine a finalidades diversas daquelas que tinham antes da expropriação.
– A interpretação e aplicação das referidas normas no sentido mencionado, ofende os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e da justa indemnização consignada nos artigos 13º, 18º e 62º da Constituição da República Portuguesa.' Quanto aos recorridos, vieram começar por sustentar a inadmissibilidade do recurso, quer porque 'O Tribunal comum não deixou de aplicar qualquer norma por ser inconstitucional', quer porque 'Tão pouco aplicou a norma do nº 2 do artigo
26º do CE/91', tendo antes aplicado, quanto à qualificação do solo, 'a norma do nº 2, a), do artigo 24º do referido CE'. Observaram em seguida não se estar perante um verdadeiro recurso de constitucionalidade, mas sim face a um 'recurso ordinário', no qual se questiona, não a constitucionalidade do nº 1 do artigo
25º do Código das Expropriações, mas o seu desrespeito. E concluíram desta forma:
'1 – O presente recurso não é admissível;
2 – Se for considerado diferentemente então o que está em causa não é a constitucionalidade do nº 1 do artigo 25 do CE/91 mas sim a sua não aplicação;
3 – E quanto ao artigo 26º nº 2 tão pouco foi aplicado'.
4. Notificada para se pronunciar sobre os obstáculos ao conhecimento do recurso suscitados pelos recorridos, a CÂMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE GAIA veio dizer o seguinte:
'1 – Desde logo, e com o devido respeito, entendemos que o presente recurso é por demais admissível. Com efeito,
2 – Desde logo, no que diz respeito à utilização do preceituado no n.º 2 do artigo 26º do Código das Expropriações de 1991 ela resulta clara do acórdão sub judice onde se pode ler: ‘À situação dos autos, não será de todo estranho a aplicabilidade, como último recurso, do disposto no artigo 26º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro (Código das Expropriações) atento o destino invocado para a parcela expropriada, como seja integrar o Parque Biológico', portanto, zona verde ou de lazer, o que sempre determinaria que se levasse em conta a potencialidade de edificar na parcela. Ou seja,
3 – Expropriar-se uma parcela que estava incluída no P.D.M. numa unidade operativa destinada apenas a equipamentos, na qual os seus proprietários não poderiam levar a cabo qualquer construção habitacional e integrar-se essa parcela numa zona de lazer onde nada se pode construir e classificar-se a parcela como apta para construção (habitacional).
4 – Ora, daqui tem de concluir-se que a lei neste caso foi interpretada e aplicada ao contrário daquilo que deveria ter sido porquanto, como é consabido, a norma do n.º 2 do artigo 26º do Código das Expropriações de 1991 tem aplicação nos casos de expropriação de solos classificados como zona verde ou de lazer por plano de ordenamento do território e se a entidade expropriante destinar os solos à construção.
5 – Quanto à questão relacionada com a aplicação do mesmo do n.º 2, alínea a), do artigo 24º do referido Código das Expropriações é por demais evidente que estando no terreno em causa vedado pelo P.D.M. de Vila Nova de Gaia, a construção habitacional não pode ter aplicação ao caso a alínea a) do artigo 24º do Código das Expropriações mas antes o n.º 5 do referido artigo 24º.'
5. Ora a verdade é que são procedentes os obstáculos que os recorridos formularam relativamente à possibilidade de conhecimento do objecto do recurso. Como se sabe, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, como é o caso, destina-se a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade
'durante o processo'. Não pode, assim, ter como objecto a inconstitucionalidade das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de exemplo, os acórdãos nºs
612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de
1996). Para além disso, só pode versar sobre uma inconstitucionalidade atribuída a uma norma (ou a uma interpretação normativa) efectivamente aplicada pela decisão recorrida, como expressamente ali se refere ('Cabe recurso para o Tribunal Constitucional em secção, das decisões dos tribunais: b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.') e o Tribunal Constitucional igualmente tem observado (cfr., por exemplo, o acórdão nº 367/94, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994).
6. Assim, e no que toca à norma que, no requerimento de interposição de recurso, a recorrente refere ao artigo 25º do Código das Expropriações, 'quando interpretada no sentido de que ele ‘não restringe qualquer hipotética construção habitacional’ (sic)', a verdade é que decorre das alegações apresentadas neste Tribunal (e, aliás, das que juntou no recurso de apelação) que, como observam os recorridos, a recorrente não coloca nenhuma questão de constitucionalidade normativa que possa ser analisada no presente recurso. Com efeito, o que a recorrente contesta é que a parcela em questão tenha sido qualificada como solo apto para construção, e que haja sido tratada como um solo onde pudesse ser edificado 'qualquer tipo de construção habitacional', por estar inserido, pelo P.D.M.. de Vila Nova de Gaia, em 'Área de Equipamento'. Assim sendo, a recorrente considera que 'não foi respeitado o consignado no nº 1 do art. 25º do C.E. de 1991', 'ao ser avaliada da forma como o foi pelos Srs. Peritos, e foi acolhida na sentença sub iudice' a referida parcela (a recorrente não esclarece se está a referir-se à sentença da 1ª instância ou ao acórdão recorrido). Ora, sempre na alegação da recorrente, desta errada aplicação da lei decorreu a sobrevalorização da parcela em causa 'em relação a outras que, encontrando-se também inseridas em Área de Equipamento não são objecto de expropriação. Pelo que, a ser assim, se verifica violação dos princípios da igualdade, proporcionalidade e da justa indemnização consignados na C.R.P. bem como nos arts. 1º e 22º do C.E.'. Verifica-se, pois, que a recorrente atribui a infracção destes princípios constitucionais à decisão que negou provimento ao recurso que interpôs, e não a quaisquer normas que nela tenham sido aplicadas, o que impede que o Tribunal Constitucional possa conhecer do recurso quanto ao artigo 25º do Código das Expropriações de 1991; torna-se, então, desnecessário averiguar se foi ou não suscitada 'durante o processo' qualquer questão de constitucionalidade normativa, como também exigem a al. b) do nº 1 do artigo 70º e o nº 2 do artigo
72º da Lei nº 28/82.
7. Finalmente, e como também observaram os recorridos, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso no que respeita à norma que a recorrente refere ao nº 2 do artigo 26º do Código das Expropriações porque ela não foi aplicada pela decisão recorrida. É incontestável que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto se lhe refere, observando que 'à situação dos autos, não será de todo estranha a aplicabilidade, como último recurso, do disposto no artº 26º, nº 2 (...)', como já se disse. Mas é igualmente incontestável que o mesmo acórdão cita esse nº 2 com o objectivo de afirmar que, se não fosse aplicável a al. a) do nº 2 do artigo 24º do Código das Expropriações de 1991, da qual decorre que a parcela em causa deve ser havida como 'solo apto para construção', se poderia recorrer ao citado nº 2 do artigo 26º para levar em conta 'a potencialidade de edificar na referida parcela'. Mas o preceito efectivamente aplicado para o efeito foi, não o nº 2 do artigo
26º, mas a al. a) do nº 2 do artigo 24º; aliás, o acórdão afirma expressamente que 'deve ter-se como afastada a consideração da parcela expropriada como ‘solo apto para outros fins’', (sendo certo que o artigo 26º versa sobre o «Cálculo do valor do solo para outros fins») 'devendo ser considerada, como foi, como ‘solo apto para construção’ e, consequentemente, ser calculado o seu valor em função do disposto no artº 25º (..)'. O nº 2 do artigo 26º foi, apenas, referido como argumento interpretativo, e não, de forma alguma, como 'ratio decidendi'. Não pode, pois, o Tribunal Constitucional conhecer do recurso, também no que respeita ao nº 2 do artigo 26º do Código das Expropriações de 1991.
Nestes termos, decide-se não conhecer do recurso. Lisboa, 29 de Janeiro de 2003 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Gil Galvão Luís Nunes de Almeida