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Proc. nº 558/02
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que figura como recorrente A, e como recorrido o Ministério Público, foi proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Loulé, a fls. 73 e ss., decisão instrutória em que, a determinado passo e no que agora importa, se ponderou:
'(...) c) Quanto à nulidade/ilegalidade suscitada pelo arguido A: As intercepções e gravações de conversas telefónicas (escutas) referidas pelo arguido foram legalmente autorizadas em 14.09.00 (fls. 17) e foi elaborado o respectivo auto (fls. 24). Foram prorrogadas pelo juiz de instrução, tendo sido presentes todos os elementos relevantes a tal autorização e foi ordenada a fls.
66 a respectiva transcrição. A questão suscitada pelo arguido parece ter que ver com a apresentação ao juiz de instrução dos elementos relevantes com vista à fiscalização das escutas determinadas. Ora, como bem se refere a fls. 1765, assentando-se parecer no Ac. TC de 21.05.97 e Ac RP de 08.03.00 (CJ, ano XXV, tomo II, 233), a lei quando diz que o auto lavrado e suportes técnicos são imediatamente levados ao conhecimento do juiz não pressupõe, e nem poderia fazê-lo, que a entidade que procede às escutas venha, a cada passo delas, e em marcha de urgência assinalada, depositar na mesa do Magistrado esses elementos; nem pressupõe ou pode pressupor que se permita à entidade que procede às escutas a apresentação dos elementos ao juiz quando para isso tiver disponibilidade. As regras processuais têm em vista a preservação de direitos fundamentais dos cidadãos, tendo por escopo restringir ao mínimo indispensável a liberdade individual de cada um. E este mínimo indispensável afere-se por critérios de investigação criminal e de preservação, através daqueles, dos valores sociais fundamentais – a preservação do bem comum. Assim, o que se pretende é que o juiz, que ordena e fiscaliza a realização das escutas, possa, efectivamente, exercer esse poder de fiscalização, ou seja, com autoridade e oportunidades processuais, acompanhado de forma contínua e próxima o exercício de um meio de obtenção de prova que, pela sua própria natureza, reveste a especialidade de interferir com a intimidade/privacidade da vida de quem está a ser objecto de averiguação criminal. Assim, como pode verificar-se pelo processado, em nenhum momento deixou o juiz de instrução de acompanhar o desenrolar das escutas que ordenou. Pelo exposto, falece o alegado fundamento de nulidade.
(...)'.
2. Inconformado, nesta parte, com a decisão instrutória, o arguido recorreu dela para o Tribunal da Relação de Évora tendo, a concluir a sua alegação, dito, designadamente, o seguinte:
'A) Durante o longo tempo das escutas nunca o meritíssimo juiz a quo teve um efectivo acompanhamento e controlo da escuta, enquanto as operações em que esta se materializa decorrem. De forma alguma imediatamente poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse acompanhamento e controlo ou a existência de longos períodos de tempo em que a actividade do juiz não resulte do processo – veja-se Ac. Do Tribunal Constitucional (2ª Secção) nº 407/97 de 21 de Maio de 1997, processo 649(96 (B.M.J. 467/1997). E porque durante todo o tempo das escutas não se verifica qualquer actividade da meritíssima juiz a quo o douto despacho recorrido violou o nº 1 do art. 188º do C.P.P., porque não interpretou no sentido que lhe é dado pelo Tribunal Constitucional; tal interpretação é inconstitucional por violação do disposto no nº 6 do artigo 32º da Constituição. B) Na verdade, ao fixar a interpretação constitucionalmente conforme aquele artigo 188º, nº 1, no segmento em que se insere a expressão imediatamente este não poderá reportar-se apenas ao momento em que as transcrições se mostrem feitas, pressupondo um efectivo acompanhamento e controlo da escuta pelo juiz que a tiver ordenado, enquanto durarem as operações em que esta se materializa – sem que decorram largos períodos de tempo em que essa actividade do juiz se não mostre documentada nos autos – sumário do mesmo acórdão.
(...)'.
3. O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 4 de Junho de 2002 (fls. 136 a
152), decidiu negar provimento ao recurso. A concluir a fundamentação da decisão ponderou aquele Tribunal:
'Em conclusão:
- As operações de intercepção e gravação de comunicações estão sujeitas às formalidades do art. 188º do CPP.
- É ao juiz de instrução, de forma indelegável, mesmo em inquérito, que compete exclusivamente ordenar ou autorizar intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187º e 190º (art. 269º, nº
1, c) do CPP).
- A realização de tais diligências sem ordem ou autorização do juiz de instrução ou desrespeito pelas formalidades exigidas pelo artigo 188º do CPP constitui nulidade nos termos do art. 189º do CPP, nulidade essa insanável por violação do disposto no art. 119º, e) do CPP.
- O conceito «imediatamente» a que alude o n 1 do art. 188º tem de ser entendido cum grano salis, pois que integrando-se numa situação factual de relevo jurídico, encontra-se correlacionado com a celeridade e eficácia da investigação criminal, por um lado, e com o respeito pelo princípio da legalidade e da fiscalização judicial por outro, devendo interpretar-se tal conceito como indicativo do prazo mais curto possível.
- Não implica nulidade o controlo de intercepções telefónicas autorizadas pelo juiz de instrução, e efectuado por agente de investigação criminal por se inserir no âmbito da investigação criminal de harmonia com autorização previamente concedida pelo juiz de instrução, e sem prejuízo do disposto no artigo 188º, nº 1 do CPP.
- A não transcrição imediata da gravação da intercepção de comunicações, não constitui nulidade, desde que tenha sido transcrita no mais curto prazo possível de harmonia com as razões justificativas apresentadas'.
4. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade, através de um requerimento que tem o seguinte teor:
'O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no art. 69º ss. da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com posteriores alterações) e, em especial tendo em vista o disposto na alínea b) do nº 1 do art. 70º do corpo normativo em questão. Com efeito, na sua motivação endereçada a esse Tribunal da Relação de Évora, o recorrente fez alusão a diversas normas formalmente constitucionais e, pelo menos a outra que não o sendo, deveria considerar-se, de acordo com entendimento pacífico, ainda materialmente com essa valência – art. 126º. Desde logo, na
«conclusão A) – fls. 6 – o recorrente alude a que certa interpretação do disposto no nº 1 do art. 188º do CPP viola o nº 6 (alusão estropiada, pois, como
é óbvio, queria o recorrente referir-se antes ao nº 8 do art. 32º da Constituição da República) do art. 32º do diploma fundamental. E, na verdade, foi (in)justamente, salvo o devido respeito, a interpretação do vocábulo imediatamente no sentido que se lhe exprobra na aludida conclusão do recurso aquela que veio a ser acolhida por V. Ex.as, como decorre do último parágrafo do texto do acórdão a fls. 16 do mesmo. Como assim, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a interpretação feita por V. Ex.as da norma do nº 1 do art. 180º do CPP e, em especial, do conteúdo de sentido a atribuir ao vocábulo imediatamente constante do mesmo. É que, no entender do recorrente, a interpretação acolhida pelo acórdão a tal propósito torna materialmente inconstitucional a referida norma, por violação do disposto no art. 32º, nº 8 da Constituição da República e 126º, nº 3 do CPP. Relativamente a esta última norma, há a considerar, como se referirá mais de espaço no momento próprio, que a mesma não estabelece uma
«mera» nulidade, relativamente a certas provas obtidas em contravenção da disciplina constitucional, indo mais longe do que isso e fulminando tais provas com a consequência da respectiva inutilizibilidade (art. 126º, nº 1 do CPP)'.
5. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'A) De acordo com o art. 2º da CRP o nosso Estado é de Direito; no entanto no Inquérito e no próprio processo, pelo desrespeito às leis, aparenta ser de polícia. B) Daí que haja contradições na transcrição apresentada nos autos. C)Somente a Directoria da Polícia Judiciária de Faro é que recebeu e teve o controlo absoluto de tudo o que é relativo a tais escutas. D) A Senhora Juíza de Instrução, somente autorizou, prorrogou, cancelou e mandou transcrever as escutas por força das promoções do Ministério Público. Não acompanhou, não controlou nem fiscalizou tais escutas. E) Tais escutas somente acabaram por serem transcritas em Fevereiro do ano seguinte, sempre sem conhecimento dessa Senhora Juíza, que somente poderia ver o processo quando lhe era concluso, por obrigação legal. F) A Senhora Juíza não soube que matéria mandou transcrever, e fê-lo apenas uma vez, por ter de aceitar a conclusão do processo face à promoção do MP. G) Toda a ilegalidade está provada nos autos. H) O Senhor Inspector Fuertes foi quem decidiu o que deveria ser transcrito, para documentara audiência de julgamento. I) O douto Ac. Recorrido limitou-se a especular sobre o «imediatamente» e a desconhecer o que deveria conhecer « que nunca foi levado qualquer auto, acompanhado com as fitas gravadas ou elementos análogos....ao conhecimento do juiz...». J) A forma como é mandado transcrever as cassetes pelo douto despacho da meritíssima Juiz só pelo despacho do MP é uma ofensa à lei, e uma desconsideração à sua própria dignidade profissional e um perigo para qualquer cidadão que esteja confiante no cumprimento da lei pelos tribunais. Nestes termos a interpretação pelo Tribunal recorrido do artigo 188º do CPP é inconstitucional, por violadora do nº 8 do art. 32º da Constituição, quando a interpretação em termos de não impor que o autor interpretação e gravação das conversações ou comunicações telefónicas, seja de imediato lavrado e levado ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles, e, bem assim, também atempadamente a decidir antes da junção ao processo de novo auto da mesma espécie sobre a manutenção ou alteração da decisão que ordenou as escutas; veja-se o Ac. TC de 21/05/97, 2ª Secção. O mesmo se passa quando o Tribunal recorrido considera e interpreta o nº 1 e 3 do artigo 188º do CPP, no sentido de não impor que é necessário, que lavrado o auto, o qual junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente levado ao conhecimento do juíz..., mas que basta autorizar as escutas e mandá-las transcrever'.
6. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o Ministério Público, a concluir:
'1º - O recurso interposto pelo recorrente não coloca à apreciação deste Tribunal Constitucional verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa
– questionando, nomeadamente a interpretação ou o critério normativo acolhido pelo acórdão recorrido – limitando-se a pretender que o Tribunal Constitucional se substitua à Relação na valoração da realidade processual que se considera existente, de modo a contrariar a conclusão a que – no plano fáctico e procedimental – chegou aquela Relação, acerca do âmbito da intervenção e controlo jurisdicional no procedimento de intercepção de comunicações telefónicas.
2º - Termos em que – por manifesta inidoneidade do objecto – não deverá dele conhecer-se'.
7. Notificado para se pronunciar, querendo, sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente veio aos autos (fls. 208 a 211) para sustentar a sua improcedência. Dispensados os vistos legais, cumpre decidir. II – Fundamentação
8. Questão prévia: admissibilidade do recurso. Como o Tribunal tem afirmado, repetidamente, o recurso previsto na al. b), do nº
1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que: a) o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa - e que; b) não obstante, a decisão recorrida a tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso Importa, por isso - dirimindo dessa forma a questão prévia colocada pelo Ministério Público na sua alegação - começar por averiguar se o recorrente colocou, durante o processo e de forma processualmente adequada, uma questão de inconstitucionalidade normativa reportada a uma certa interpretação do artigo
188º, nº 1, do Código de Processo Penal, para, num segundo momento, verificar se a decisão recorrida aplicou, como ratio decidendi, essa interpretação normativa que foi arguida de inconstitucional.
8.1. A suscitação pelo recorrente, durante o processo e em termos processualmente adequados, de uma questão de inconstitucionalidade normativa. Para decidir se o recorrente colocou, durante o processo e em termos processualmente adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa reportada a uma certa interpretação do artigo 188º, nº 1, do Código de Processo Penal, importa recuar à alegação de recurso apresentada no Tribunal da Relação de Évora e, concretamente, às conclusões A) e B) da referida peça processual, onde o recorrente ponderou:
'A) Durante o longo tempo das escutas nunca o meritíssimo juiz a quo teve um efectivo acompanhamento e controlo da escuta, enquanto as operações em que esta se materializa decorrem. De forma alguma imediatamente poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse acompanhamento e controlo ou a existência de longos períodos de tempo em que a actividade do juiz não resulte do processo – veja-se Ac. Do Tribunal Constitucional (2ª Secção) nº 407/97 de 21 de Maio de 1997, processo 649(96 (B.M.J. 467/1997). E porque durante todo o tempo das escutas não se verifica qualquer actividade da meritíssima juiz a quo o douto despacho recorrido violou o nº 1 do art. 188º do C.P.P., porque não interpretou no sentido que lhe é dado pelo Tribunal Constitucional; tal interpretação é inconstitucional por violação do disposto no nº 6 do artigo 32º da Constituição. B) Na verdade, ao fixar a interpretação constitucionalmente conforme aquele artigo 188º, nº 1, no segmento em que se insere a expressão imediatamente este não poderá reportar-se apenas ao momento em que as transcrições se mostrem feitas, pressupondo um efectivo acompanhamento e controlo da escuta pelo juiz que a tiver ordenado, enquanto durarem as operações em que esta se materializa – sem que decorram largos períodos de tempo em que essa actividade do juiz se não mostre documentada nos autos – sumário do mesmo acórdão.
(...)'.
Pois bem: ao contrário do que entendeu o Ministério Público, cremos que está aqui suficientemente identificada uma questão de inconstitucionalidade reportada a uma determinada interpretação normativa. A saber: a que se traduza em interpretar o artigo 188º, nº 1, do Código de Processo Penal, em termos de a expressão 'imediatamente', que nele se utiliza, poder significar a inexistência, documentada nos autos, de um efectivo acompanhamento e controlo das escutas por parte do juiz que as tiver ordenado enquanto as operações em que as mesmas se materializam decorrerem. Mas, dito isto, não pode ainda concluir-se pela possibilidade de conhecer do objecto do recurso. É que, como atrás se referiu, falta ainda averiguar se a decisão recorrida utilizou, como ratio decidendi, esta interpretação normativa.
8.2. A aplicação pela decisão recorrida, como 'ratio decidendi', da norma arguida de inconstitucional. Entende o Ministério Público que a decisão recorrida não aplicou o artigo 188º, nº 1, do Código de Processo Penal, na dimensão normativa identificada pelo recorrente naquelas conclusões da motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Évora. E, neste ponto, com razão. Na realidade - como, bem, refere o Ministério Público - não pode afirmar-se que a decisão recorrida tenha interpretado o artigo 188º, nº 1, do Código de Processo Penal, em termos de considerar dispensável a existência, documentada nos autos, de um efectivo acompanhamento e controlo das escutas por parte do juiz que as tiver ordenado enquanto as mesmas decorrem. O que a decisão recorrida entendeu foi – diferentemente do que entende o recorrente – que os autos demonstram que existiu esse efectivo acompanhamento e controlo das escutas por parte do juiz que as ordenou. Nesse sentido, afirma-se expressamente na decisão recorrida - que, nesta parte, cita o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 407/97 - 'Assim, o que se pretende
é que o juiz, que ordena e fiscaliza a realização das escutas possa, efectivamente, exercer esse poder de fiscalização, ou seja, com autoridade e oportunidade processuais, acompanhando de forma contínua e próxima o exercício de um meio de obtenção de prova que pela sua própria natureza, reveste a especialidade de interferir com a intimidade/privacidade da vida de quem está a ser objecto de averiguação criminal. Assim, como pode verificar-se pelo processado em nenhum momento deixou o juiz de instrução de acompanhar o desenrolar das escutas que ordenou'. Mais à frente, no mesmo sentido – agora para concordar com a conclusão do Ministério Público na primeira instância – pode ainda ler-se na decisão recorrida: 'A Mma Juiz de Instrução que ordenou as operações controlou e acompanhou de forma contínua e próxima todo o desenrolar das mesmas, e apreciou e valorou qual a matéria relevante para a prova contida nas escutas telefónicas ordenadas'. Ora, vindo a decisão recorrida fundamentada nestes termos, não tem o Tribunal Constitucional elementos para pensar que a mesma terá dado à expressão
'imediatamente' outro sentido do que aquele que resulta do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 407/97 - que a decisão recorrida expressamente cita para com ele manifestar a sua concordância - e, concretamente, aquele que lhe imputa o recorrente e cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada. III Decisão Por tudo o exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta. Lisboa, 8 de Novembro de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida