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Processo n.º 30/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., deduziu impugnação judicial (parcial) contra o acto de liquidação de IRC, derrama e juros compensatórios relativo ao ano de 1991, no montante de Esc. 89.974.049$00. Para o que agora releva, a impugnante veio sustentar que não devia considerar-se como relativos a um 'avião de turismo' os encargos correspondentes a um contrato de locação financeira que celebrou com a finalidade de utilizar tal meio de transporte no exercício da sua actividade, bem como as demais despesas realizadas para a respectiva utilização (al. f) do nº 1 do artigo 41º e al. f) do nº 1 do artigo 32º do Código do IRC).
Por sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, de 30 de Junho de 2000, de fls. 149 e seguintes, julgou-se a impugnação procedente na parte relativa ao acréscimo de Esc. 213.292$00 que a Administração Fiscal efectuara ao valor do lucro tributável que havia sido declarado, do que resultou também a anulação correspondente dos juros compensatórios e da derrama liquidadas em razão desta importância, e improcedente na parte restante.
Inconformada, a impugnante recorreu para a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo que, por Acórdão de 7 de Novembro de 2001, de fls. 199 e seguintes, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.
No seu Acórdão de 7 de Novembro de 2001, pronunciando-se sobre a questão da inconstitucionalidade, aliás já suscitada perante o Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, das normas dos artigos 32º, n.º 1, alínea f), e 41º, n.º 1, alínea f), do Código do IRC, na redacção vigente à data do exercício de 1991, por violação dos artigos 106º, n.º 2, 107º, n.º 2, 164º e
168º, n.º 2, da Constituição, na redacção ao tempo em vigor, o Supremo Tribunal Administrativo julgou-a improcedente.
Em síntese, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu que 'a ideia que domina os artºs 32º, n.º 1, alínea f), e 41º, n.º 1, alínea f), do CIRC, vigente ao tempo (1991), foi a de não se aceitarem fiscalmente custos excessivos', sustentando que 'as normas em causa não são inconstitucionais', designadamente na interpretação e aplicação que delas fez a sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto. Com efeito, pode ler-se neste acórdão o seguinte:
«Em 1991, o artº 32º, n.º 1, al. f), do CIRC, no que agora interessa, rezava o seguinte: não são aceites como custos as reintegrações das viaturas ligeiras de passageiros na parte correspondente ao valor da aquisição excedente a
4.000.000$00, bem como os barcos de recreio e aviões de turismo e todos os encargos com estes relacionados, desde que tais bens não estejam afectos a empresas exploradoras de serviços públicos de transportes ou não se destinem a ser alugados no exercício de actividade normal da empresa sua proprietária. Por sua vez, o artº 41º, n.º 1, al. f), do CIRC, vigente em 1991, prescrevia o seguinte: não são dedutíveis para efeitos de determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como custos ou perdas de exercício: as rendas de locação financeira de viaturas ligeiras de passageiros e de barcos de recreio e de aviões de turismo na parte em que não seja aceite reintegração nos termos da alínea f) do n.º 1 do citado artigo 32º.
(...) Na sentença recorrida, a Mª Juíza a quo não acolheu a qualificação do avião, feita pela recorrente, como 'avião próprio para viagens de negócios
(Executive)'. Pelo contrário, no entender da Mª Juíza, 'o conceito de avião de turismo deve ser encontrado por contraposição aos aviões de carga ou de transporte de mercadorias, isto é, por reporte a uma destinação essencialmente de transporte de pessoas'. Dito de outro modo, na sentença recorrida entendeu-se que avião de turismo é o que se destina ao transporte de pessoas e não de carga ou de mercadorias. Logo, o avião em causa é avião de turismo. Nas suas alegações, a recorrente entende que não estamos perante um avião de turismo pelo facto de o mesmo ser absolutamente necessário ao exercício da sua actividade e não destinado a lazer. Por outro lado, a recorrente insiste no facto de o avião não ser da sua propriedade, mas estar em regime de leasing. Vejamos esta questão. A lei fiscal alude por duas vezes a 'avião de turismo', mas não dá uma definição desse conceito. Após buscas na legislação aeronáutica, não encontramos qualquer diploma legal que nos dê a classificação dos aviões ou aeronaves. Nos termos do artº 49º, n.º
1, do Código de Registo de Bens Móveis aprovado pelo Decreto-Lei nº 277/95, de
25 de Outubro, considera-se 'aeronave qualquer aparelho que se mantenha na atmosfera, pelos adequados meios propulsores próprios e que esteja no comércio jurídico'. O nº 2 refere que não estão sujeitas a registo as aeronaves militares. O artº 4º do Decreto-Lei nº 274/77, de 4 de Julho, procede à classificação do voo dos aviões, mas não classifica estes. Assim, quanto os objectivos determinantes da sua realização, os voos não regulares classificam-se em 'voos de emergência', 'voos de táxi', 'voos para uso próprio' e 'voos para viagens turísticas'. Os voos para uso próprio' (nº 2 al. c)) são os que se efectuam quer em regime de fretamento de toda a capacidade da aeronave por conta de uma mesma pessoa singular ou colectiva, quer por conta do próprio transportador, para o transporte:
1. Do seu pessoal ou das suas mercadorias;
2. De pessoas associadas ao fretador; E em que prevaleça o carácter ocasional, nenhuma parte da capacidade seja revendida, os passageiros não partilhem entre si preço de fretamento e não haja arranjos de natureza comercial para o pagamento total ou parcial, directo ou indirecto, do custo do voo por outras pessoas que não sejam o fretador ou proprietário da aeronave, sem prejuízo de, no que se refere aos voos de carga, o fretador poder reaver da pessoa ou pessoas a quem as mercadorias se destinam efectivamente a totalidade ou parte do custo do transporte como parte integrante do preço de mercadorias. Nos temos do artº 4º, n.º 2, al. d), os 'voos para viagens turísticas' são os que se efectuem em regime de fretamento de toda a capacidade da aeronave por conta de uma ou mais pessoas, singulares ou colectivas (organizadores), para viagens turísticas ou abertas ao público em geral ou reservadas a indivíduos ligados entre si por afinidades associativas e organizadas, em ambos os casos, de acordo com requisitos especiais, com vista à deslocação de pessoas, individualmente ou em grupo, quer para seu aprazimento, em razão do itinerário ou do local de destino, quer para participar em manifestações culturais, religiosas profissionais, desportivas ou outras. Estas classificações dos voos não regulares vieram a ser repetidas pela Portaria n.º 313/84, de 25 de Maio. Reduzida a distinção à sua expressão mais simples, são voos para uso próprio os que se destinam ao transporte do pessoal ou das mercadorias de uma pessoa ou do transportador ou de pessoas associadas ao fretador, e são voos para viagens turísticas os que se efectuem para viagens turísticas do público em geral ou de certo grupo de pessoas, quer para seu aprazimento, quer para participar em certas manifestações culturais, religiosas, profissionais, desportivas ou outras. Numa aproximação a estes conceitos, parecia natural concluir que avião de turismo é aquele que se destina a efectuar voos para viagens turísticas e avião executivo ou próprio para viagens de negócios é aquele destinado a efectuar voos para uso próprio. Neste sentido, e tendo em conta a matéria de facto dada como provada pelo tribunal de 1ª instância, o avião em causa não seria avião de turismo, mas avião para uso próprio da impugnante recorrente. Acontece que o termo 'avião de turismo', aqui em causa, consta de uma norma de natureza fiscal, e os conceitos utilizados pelas normas fiscais têm regras próprias de interpretação. Sempre a doutrina e a jurisprudência fiscais entenderam, tal com hoje consta do artº 11º da Lei Geral Tributária, que na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis. Mas sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei. Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários. Ora, é duvidoso que o legislador, ao aludir a avião de turismo na lei fiscal, tivesse em mente o conceito de 'voos para viagens turísticas', utilizado no direito aeronáutico. Desde logo, não há lei que nos diga o que é um avião de turismo, mas apenas 'voo para viagem turística'. Depois, o artº 32º, nº 1, al. f). do CIRC punha em pé de igualdade as reintegracões das viaturas ligeiras de passageiros na parte correspondente ao valor da aquisição excedente a
4.000.000$00 e as reintegrações dos aviões de turismo. Finalmente, o artº 41º, nº 1, al. f), do CIRC, punha em pé de igualdade as rendas de locação financeira de viaturas ligeiras de passageiros e as rendas de locação financeira de aviões de turismo. Ora, seria contraditório com o espírito da lei que não se aceitasse como reintegração das viaturas ligeiras de passageiros um va1or superior a
4.000.000$00 e já se aceitasse como custo a reintegração do valor de aquisição de um avião de turismo, que é um valor muito superior a 4.000.000$00, pois é do conhecimento geral que os aviões são muito mais caros que os automóveis. A ideia que domina os artºs 32º, nº 1, al. f) e 41º, n.º 1, al. f), do CIRC, vigente ao tempo (1991), foi a de não se aceitarem fiscalmente custos excessivos. Para efeitos fiscais e nos termos do artº 23º do CIRC, custos são apenas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Ora, entendeu a lei que os custos decorrentes da aquisição de um avião de turismo, ou decorrentes de um contrato de locação financeira de um avião de turismo, qualquer que seja o conceito de avião de turismo, eram custos desproporcionados e excessivos e que não eram indispensáveis para obtenção dos correspondentes lucros. Nestes termos não pode o intérprete da lei fiscal deixar de atender à substância económica dos factos tributários, desprendendo-se de classificações meramente jurídicas e próprias de outros ramos do direito. Caso contrário, teríamos de admitir que o legislador fiscal tinha sido arbitrário, permitindo custos que não estavam no seu pensamento. Por isso, bem andou a Mª Juíza a quo ao fazer a contraposição entre avião de turismo e avião de carga, pois se o transporte é apenas de pessoas, pode ser efectuado nas carreiras regulares das empresas exploradoras de serviço público de transportes. No caso de se tratar de aviões de turismo afectos a empresas exploradoras de serviço público de transportes ou que se destinassem a ser alugados no exercício da actividade normal de empresa sua proprietária, então esses aviões já eram custo, nos termos do artº 32º, nº 1. al. f), do CIRC. Por todas estas razões, a sentença recorrida fez uma correcta interpretação e aplicação da lei fiscal. As normas em causa não são inconstitucionais.»
2. De novo inconformada, a impugnante recorreu para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo e nos termos do disposto no artº 280º, n.º 1, b) e n°
4, da Constituição da República Portuguesa e do art° 70°, n.º 1, b) da Lei n°
28/82, de 15 de Novembro', pretendendo que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade das referidas normas dos arts. 32°, n.º 1, f), e 41º, n.º
1, f), do Código do IRC, a qual a recorrente suscitou na petição da impugnação judicial (artigos 129 a 136) e no recurso que da Douta Sentença de 1ª Instância deduziu perante este Venerando Supremo Tribunal (cf. conclusões n.ºs 15 a 22 das respectivas alegações), por entender que normas violam os arts. 106°, n.º 2,
107°, n.º 2, 164° e 168° da Constituição da República portuguesa, em vigor ao tempo do exercício de 1991 (actuais arts. 103°, n.º2, 104°, n.º 2; 161° e 164°), e os princípios constitucionais da legalidade fiscal, da tributação do lucro real, da reserva de lei formal e da especificação da autorização'.
Admitido o recurso, as partes foram notificadas para alegar.
Quanto à recorrente, formulou, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
'1. Por violarem o disposto nos arts. 106°, n.º 2, 107°, n.º 3, e 168°, n.º 2, da CRP e os princípios constitucionais da legalidade fiscal, da especificação da autorização legislativa, da tributação do lucro real e da igualdade fiscal, as normas constantes dos art. 32°, n.º 1, f), e 41°, n.º 1, f), ambas do Código do IRC, aprovado pelo Governo na sequência da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, são inconstitucionais quando interpretadas no sentido de que para efeitos do apuramento do lucro tributável em IRC, as despesas com aviões de turismo não são, em qualquer caso, custos fiscais do exercício, isto é, sem atender se tais despesas foram ou não comprovadamente indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.
2. Por isso, não obstante o Código do IRC consagrar tais normas, caso se conclua que as despesas com aviões de turismo foram indispensáveis para a obtenção dos proveitos e ou para a manutenção da respectiva fonte produtora, nos termos do art. 23° daquele Código, o valor das referidas despesas deve ser considerado custo fiscal do exercício e consequentemente, ser considerado no apuramento do correspondente lucro tributável.
3. Face à matéria dada como provada no Douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de que ora se recorre, aquela conclusão ocorre no caso das despesas do montante de 140.195.085$00 que a recorrente realizou no exercício de
1991.
4. Por isso, o referido Douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo devia ter decidido que, por a Administração Fiscal não ter considerado as referidas despesas custo fiscal do mesmo exercício de 1991, manifestava-se a inconstitucionalidade indicada em 1, supra.
5. Como não foi assim que decidiu, o mesmo Douto Acórdão violou as normas e os princípios constitucionais mencionados em 1, supra.'
Notificada para o efeito, e decorrido o respectivo prazo, a recorrida Fazenda Pública não apresentou alegações.
3. Corridos os vistos, e não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso, cabe começar por fixar o respectivo objecto.
São os seguintes os textos das normas impugnadas: Artigo 32º
(...)
1 – Não são aceites como custos:
(...)
f) As reintegrações das viaturas ligeiras de passageiros, na parte correspondente ao valor de aquisição excedente a 4.000.000$, bem como dos barcos de recreio e aviões de turismo e todos os encargos com estes relacionados, desde que tais bens não estejam afectos a empresas exploradoras de serviço público de transportes ou não se destinem a ser alugados no exercício da actividade normal da empresa sua proprietária. Artigo 41º
(...)
1 – Não são dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como custos ou perdas de exercício:
f) (...) as rendas de locação financeira de (...) aviões de turismo, na parte em que não seja aceite reintegração nos termos da alínea f) do n.º 1 do citado artigo [artigo 32º].
Assim, as normas cuja inconstitucionalidade se vai apreciar são, quanto ao artigo 32º, n.º 1, alínea f), do CIRC, a norma segundo a qual as reintegrações dos aviões de turismo, entendendo-se como tais todos os aviões não destinados ao transporte de carga e mercadorias, bem como todos os encargos com ele relacionados, não são aceites como custos (para efeitos de determinação do lucro tributável, a que se referem os artigos 17º e seguintes do CIRC); quanto ao artigo 41º, n.º 1, alínea f), do mesmo código, a norma segundo a qual não são dedutíveis para efeito de determinação do lucro tributável os encargos, mesmo quando contabilizados como custos ou perdas de exercício, com as rendas de locação financeira de aviões de turismo, entendendo-se como tais todos os aviões não destinados ao transporte de carga e mercadorias, na parte em que não seja aceite reintegração nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 32º.
4. Contra as normas, com o sentido que acaba de ser descrito, dos artigos 32°, n.º 1, alínea f), e 41º, n.º 1, alínea f), ambos do Código do IRC, invoca a recorrente argumentos de duas ordens. Em primeiro lugar, se as referidas normas forem interpretadas no sentido de que, para efeitos de apuramento do lucro tributável em IRC, as despesas com aviões de turismo não são, em qualquer caso, custos fiscais do exercício, isto é, sem atender se tais despesas foram ou não comprovadamente indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtiva, tais normas excedem o âmbito da autorização parlamentar, tal como previsto nos artigos 19º, n.º 3, e 21º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, pelo que são inconstitucionais por violação dos artigos 106, n.º2, e
168º, n.º 2, da Constituição (actuais artigos 103º, n.º 2, e 165, n.º 2).
Em segundo lugar, se as referidas normas forem interpretadas com o sentido acabado de referir, elas seriam também inconstitucionais por violação do princípio da tributação do lucro real consagrado no artigo 107º, n.º 2, da Constituição (actual artigo 104º, n.º 2), e ainda por violação do princípio da igualdade fiscal, uma vez que os custos em causa não são reconhecidos, segundo a recorrente, pela simples razão de que as viagens a que respeitam foram realizadas em avião da própria empresa ou por esta utilizado em regime de locação financeira, assim já não acontecendo se tivessem sido realizados em aviões pertencentes às diversas companhias aéreas comerciais.
5. O primeiro argumento da recorrente assenta no confronto das normas em crise com a autorização parlamentar contida na Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro, e designadamente com os respectivos artigos 19º, n.º 3, e 21º, n.º
1, alínea a). De acordo com o artigo 19º, n.º 3, citado 'o lucro tributável reportar-se-á, sempre que possível, ao resultado apurado na contabilidade, sem prejuízo das correcções positivas ou negativas deste que forem definidas na lei'. Por seu turno, o artigo 21º, n.º 1, alínea a), prescreve que a determinação do lucro tributável far-se-á de acordo com o princípio da especialização dos exercícios, tendo ainda em conta que 'os custos serão os comprovadamente indispensáveis para a realização dos proveitos e para a manutenção da fonte produtora'.
Deste modo, segundo a recorrente, 'ao permitir que a lei definisse correcções negativas ao resultado apurado na contabilidade (resultado líquido contabilístico) a autorização legislativa possibilitou ao Governo eliminar ou retirar custos que influenciaram o apuramento daquele resultado, assim aumentado o valor do lucro tributável em IRC, comparativamente ao que decorria da contabilidade'. Essas correcções, previstas no artigo 19º, n.º 3, da Lei n.º
106/88, são apenas, no entanto, as 'que forem definidas na lei' e essa lei, entende ainda a recorrente, apenas pode ser a própria Lei n.º 106/88, a qual, no respectivo artigo 21º, n.º 1, alínea a), preceitua, como se disse, que 'os custos serão os comprovadamente indispensáveis para a realização dos proveitos e para a manutenção da fonte produtora'. Assim, prossegue a recorrente, 'as correcções negativas ao resultado da contabilidade, ou seja a eliminação de custos que a empresa registou na sua contabilidade e que determinaram o seu resultado contabilístico de exercício, que o decreto-lei do Governo podia prever ficou exclusivamente limitada aos custos que comprovadamente não se revelassem indispensáveis para a realização dos proveitos e para a manutenção da fonte produtora dos mesmos (a empresa)'.
Significa o que acaba de ser dito, sempre de acordo com o entendimento da recorrente, que a interpretação das normas objecto do presente recurso que foi adoptada pelo acórdão recorrido, ao implicar que as despesas com aviões de turismo não são, em qualquer caso – uma vez que não se tratem de aviões de carga ou transporte de mercadorias – , custos fiscais do exercício, conduz a um resultado que extravasa do âmbito da autorização parlamentar, pois, de acordo com o disposto nos artigos 19º, n.º 3, e 21º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 106/88, apenas podem ser efectuadas correcções negativas ao resultado do exercício, quando os custos contabilizados não sejam comprovadamente indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora. Nessa medida, as normas em crise, na interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido, ao excederem o âmbito da autorização parlamentar, violam o disposto nos artigos 106, n.º2, e 168º, n.º 2, da Constituição (actuais artigos 103º, n.º 2, e 165, n.º 2).
Mas ainda que assim não fosse, isto é, admitindo-se que as correcções negativas previstas pelas normas objecto do presente recurso, são consentidas pelo artigo 19º, n.º 3, da Lei n.º 106/88, então, conclui a recorrente quanto a esta primeira linha de argumentação, 'o que se nos depara é que a própria autorização legislativa contraria a CRP, isto porque o mencionado n.º 3 teria deixado ao livre arbítrio do Governo a regulação do apuramento do lucro tributável e, consequentemente, da matéria da incidência do IRC, o que contraria o disposto, quer no n.º 2 do artigo 106º, quer no n.º 2 do artigo
168º, ambos da CRP'.
6. Não assiste razão à recorrente, diga-se desde já, em relação a este seu primeiro argumento. Na verdade, quando o artigo 19º, n.º 3, da Lei n.º
106/88 admite as correcções negativas ao resultado apurado na contabilidade 'que forem definidas na lei' não está obviamente a referir-se, com esta expressão, à própria Lei n.º 106/88. Isso resulta, desde logo, do confronto do citado artigo 19º, n.º 3, com várias outras normas da Lei n.º 106/88 onde é utilizada semelhante expressão. Assim, o artigo 4º, n.º 4, da Lei n.º 106/88, estabelece que 'o imposto incidirá sobre o rendimento efectivo dos contribuintes, sem prejuízo de a lei, por razões de justiça ou de prevenção da evasão ou da fraude, poder presumir a sua existência ou fazer depender de presunções a determinação do seu valor'. No mesmo sentido, o artigo 6º, n.º 1, dispõe que 'a lei determinará as deduções a fazer em cada uma das categorias de rendimentos mencionados no artigo 4º, tomando como critério os custos ou encargos necessários à sua obtenção'. No artigo 15º estabelece-se que a 'a lei definirá' os rendimentos excepcionais ou plurianuais. A estes exemplos podem ainda somar-se os que resultam do disposto nos artigos
26º, n.ºs 1, 2 e 3, 30º, n.º 1, 32º, n.º 3, 33º, n.ºs 1, 2 e 3. Em todos estes preceitos a referência à 'lei' não pode ser entendida autoreferencialmente, sob pena de se conceber a lei de autorização como um acto ensimesmado, incapaz de produzir os efeitos delimitadores e habilitantes para os quais se acha constitucionalmente previsto. Tal referência deve antes ser entendida no sentido de acto legislativo do Governo emitido ao abrigo da lei de autorização, isto é, no sentido de que a matéria em causa apenas pode ser regulada por via legislativa e nunca por via regulamentar. Esta é, aliás, uma importante dimensão do princípio da legalidade fiscal, na sua vertente de reserva de acto legislativo; e, note-se, a satisfação desta vertente seria até suficiente para legitimar constitucionalmente a norma do artigo 19º, n.º 3, da Lei n.º 106/88 para aqueles autores para os quais 'quer o Governo, quer as Assembleias Legislativas Regionais podem determinar os elementos enunciados nesses n.ºs 2 e 3 (do artigo 103º da Constituição), quais sejam, a incidência, a taxa, as garantias dos contribuintes, os benefícios fiscais, a liquidação e a cobrança, pois esse é o significado da reserva de lei formal'
(Ana Paula Dourado, 'O Princípio da Legalidade Fiscal na Constituição Portuguesa', in Jorge Miranda (ed.), Perspectivas Constitucionais, Nos 20 anos da Constituição de 1976, vol. II, Coimbra, 1997, p. 433).
Acautelando o entendimento que acaba de ser exposto, a recorrente afirma que 'se se perfilhar a tese de que ambos aqueles normativos [as normas dos artigos 32º, n.º 1, alínea f), e 41º, n.º 1, alínea f), do Código do IRC] consignam correcções negativas que, sem mais, são consentidas pelo artigo 19º, n.º 3, da citada Lei n.º 106/88, o que se nos depara é que a própria autorização legislativa contraria a CRP, isto porque o mencionado n.º 3 teria deixado ao livre arbítrio do Governo a regulação do apuramento do lucro tributável e, consequentemente, da matéria da incidência do IRC, o que contraria o disposto, quer no n.º 2 do artigo 106º, quer no n.º 2 do artigo 168º, ambos da CRP'. Por outras palavras, a recorrente invoca a violação do princípio da legalidade fiscal, mas agora na sua vertente de reserva de lei parlamentar. Também aqui, todavia, lhe falta a razão.
Não se ignora, naturalmente, que 'em matéria de regime de impostos, aquilo que é reserva de lei segundo o artigo 106º, n.º 2, é reserva de lei da Assembleia da República segundo o artigo 168º' (actuais artigos 103º e 165º), como se afirmou no Acórdão n.º 274/86 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional,
8º vol., 1986, p. 49; cfr., ainda, os Acórdãos n.ºs 358/92 e 57/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º vol., pp. 109 e ss., e 30º vol., 1995, p. 199, respectivamente). As duas disposições da Constituição citadas consagram os dois subprincípios do princípio da legalidade fiscal, entendido como reserva material de lei formal. Deste modo, o artigo 106º, n.º 2, clarifica o significado da referência à
'criação de impostos' do artigo 168º, ao estabelecer que a lei deverá determinar
'a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes'
(cfr., neste sentido, José Manuel Cardoso da Costa, 'O Enquadramento Constitucional do Direito dos Impostos em Portugal: A Jurisprudência do Tribunal Constitucional', in Jorge Miranda (ed.), Perspectivas Constitucionais, Nos 20 Anos da Constituição de 76, vol. II, Coimbra, 1997, p. 409; cfr., ainda, José Casalta Nabais, 'Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal', in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LXXIX, 1993, p. 405).
Não se ignora, de igual modo, que muito embora a lei de autorização não constitua objecto do presente recurso, a sua inconstitucionalidade acarreta
'forçosa e necessariamente, a inconstitucionalidade orgânica da legislação delegada', como se afirmou no Acórdão n.º 414/96 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., 1996, p. 644).
O que agora se torna necessário apurar é, pois, se o entendimento atrás adoptado quanto ao alcance do artigo 19º, n.º 3, da Lei n.º 106/88 implica uma violação do princípio da legalidade fiscal. Ou seja, importa apurar se a Lei n.º 106/88, enquanto lei de autorização de imposto, se reveste dos graus de especificação, determinação e precisão constitucionalmente adequados no que concerne à definição da incidência do IRC.
A resposta a esta questão implica saber se o princípio da reserva de lei (parlamentar) em matéria fiscal impõe que a lei (de autorização) defina ela própria as correcções positivas e negativas ao resultado apurado na contabilidade, para efeitos de ulterior determinação do lucro tributável, ou se, pelo contrário, essa definição pode constar do decreto-lei autorizado. Os próprios termos em que a questão é posta apontam para uma resposta que se inclina neste último sentido, sempre com o limite, é claro, de a matéria em causa não poder ser disciplinada por via regulamentar. Na verdade, a opção pela solução contrária implicaria, na prática e no caso em análise, que a autorização contivesse em si mesma o texto legislativo autorizado, exaurindo assim a sua própria razão de ser. Atendendo ao que acaba de ser dito e ainda ao contexto do artigo 19º da Lei n.º
106/88, não pode deixar de se entender que o requisito da incidência, actualmente previsto no artigo 103º, n.º 2, da Constituição, se encontra também aí suficientemente satisfeito.
7. A segunda linha de argumentação da recorrente alicerça-se, como se disse, na violação do princípio da tributação do lucro real consagrado no artigo 107º, n.º 2, da Constituição (actual artigo 104º, n.º 2), e ainda na violação do princípio da igualdade fiscal, uma vez que os custos em causa não são reconhecidos, segundo a recorrente, pela simples razão de que as viagens a que respeitam foram realizadas em avião da própria empresa ou por esta utilizado em regime de locação financeira, assim já não acontecendo se tivessem sido realizadas em aviões pertencentes às diversas companhias aéreas comerciais.
Começando por este último aspecto, deve salientar-se, como se disse por exemplo, no Acórdão n.º 57/95, atrás citado, que o princípio constitucional da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, circunscreve-se à ideia geral de proibição de arbítrio. À luz deste critério são, pois, apenas censuráveis, com base na violação do princípio da igualdade, as medidas legislativas que estabeleçam desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
Neste contexto, e tomando como ponto de partida o confronto entre o carácter exemplificativo do artigo 23º do CIRC, por um lado, e o carácter taxativo dos artigos 32º e 41º do mesmo código, por outro, resulta evidente, como se disse, aliás, na sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância, que o legislador entendeu, por razões de política fiscal, que nem todas as despesas que poderiam ser qualificadas como custos para efeitos do disposto no artigo 23º poderiam ser imputadas negativamente ao resultado líquido do exercício, enumerando estas taxativamente nos citados artigos 32º e 41º. Subjacentes a esta enumeração taxativa estão, pois, razões de política fiscal tendentes a uma limitação dos custos fiscalmente aceitáveis, eliminando-se aqueles que se revelam, na óptica do legislador, objectivamente excessivos. Tendo presente a referida orientação de política fiscal do Governo, o que se mostraria porventura violador do princípio da igualdade seria, como salienta o acórdão recorrido, não aceitar como custo as reintegrações de viaturas ligeiras de passageiros na parte correspondente ao valor de aquisição excedente a Esc.
4.000.000$, segundo preceitua o artigo 32º, n.º 1, alínea f), e, simultaneamente, aceitar a reintegração do valor de aquisição de um avião de turismo, que, como é do conhecimento geral, ascende a valores muito mais elevados. Já o mesmo não se poderá dizer da diferença de tratamento resultante da não aceitação de custos relativos a viagens realizadas em avião da própria empresa, ou por esta utilizado em regime de locação financeira, e da eventual aceitação de custos com viagens realizadas em aviões pertencentes às diversas companhias aéreas comerciais. Tratar-se-á, com efeito, de um tratamento diferenciado, mas não de um tratamento desigual, até porque não está demonstrado que os custos envolvidos pelas duas situações apontadas pela recorrente sejam idênticos ou sequer que sejam semelhantes os recursos financeiros com base nos quais seja possível optar por uma delas.
Por último, no que respeita ao princípio da tributação do lucro real, não procedem as razões apontadas pela recorrente, uma vez que a consagração constitucional da tributação dos lucros reais não foi feita em termos definitivos, exigindo-se apenas que a tributação incida
'fundamentalmente' sobre o rendimento real das empresas (como se retira do artigo 106º, n.º 2, correspondente ao actual artigo 104º, n.º 2, da Constituição). Ora não parece que o regime constante das normas impugnadas desvirtue esse sistema assente no princípio da tributação do lucro real.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à questão da constitucionalidade. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 30 de Outubro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida