Imprimir acórdão
Processo n.º 735/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. veio deduzir oposição à execução fiscal contra si revertida e instaurada pela Fazenda Pública originariamente contra a sociedade “B., Lda.”, por dívidas de coimas fiscais aplicadas nos anos de 2008 e 2009, no montante total de € 1.491,93.
Liminarmente admitida a oposição e notificada a Fazenda Pública para contestar, nada disse.
O Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência da oposição.
Foi proferida sentença que recusou a aplicação do artigo 8.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, com fundamento em inconstitucionalidade, e, em consequência, anulou o ato de reversão por dívidas de coimas fiscais aplicadas à sociedade executada.
O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, relativamente à recusa de aplicação do estatuído no artigo 8º do Regime Geral das Infrações Tributárias com base na sua inconstitucionalidade.
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
“1. O n.º 3 do artigo 8.º do RGIT consagra uma responsabilidade subsidiária dos TOCs pelos montantes das coimas aplicadas à pessoa coletiva pela prática de infrações específicas: falta ou atraso na entrega de declarações que devam ser apresentadas.
2. No entanto, como resulta do mesmo preceito, aqueles profissionais, só podem ser responsabilizados quando não comuniquem, no período de exercício das suas funções, até 30 dias após o termo do prazo da entrega da declaração, à Direção-Geral dos Impostos as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título.
3. Assim, a responsabilidade subsidiária dos TOCs radica, exclusivamente, num comportamento próprio e perfeitamente autónomo, no caso, omissivo: não comunicação à Direção-Geral dos Impostos, no prazo fixado, as razões porque as declarações tributárias que deviam ter sido apresentadas o não foram, ou não foram atempadamente, por razões que não lhe eram imputáveis.
4. Pelo exposto, a norma do nº 3 do artigo 8º do RGIT, não é inconstitucional, não violando os princípios da culpa, da igualdade, da proporcionalidade e da intransmissibilidade das penas.
5. Deve, consequentemente, conceder-se provimento ao recurso.”
Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
Na parte decisória da sentença recorrida refere-se que se recusa a aplicação do disposto no artigo 8.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias, com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Contudo, da leitura da sua fundamentação é evidente que apenas se recusou o disposto no n.º 3, daquele preceito, na parte em que estabelece a responsabilidade subsidiária dos Técnicos Oficiais de Contas, uma vez que apenas estava em causa a responsabilidade subsidiária de um Técnico Oficial de Contas, pelas dívidas da sociedade relativamente à qual elaborava a sua contabilidade, tendo assumido relevância nesse juízo de inconstitucionalidade o facto dessa responsabilização se ter efetuado através do mecanismo da reversão da execução fiscal.
Assim, o objeto deste recurso deve restringir-se à fiscalização da norma constante do n.º 3, do artigo 8.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias, no segmento em que responsabiliza os Técnicos Oficiais de Contas, pelas coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direção-Geral dos Impostos, as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título, efetuando-se essa responsabilização através do mecanismo da reversão fiscal.
2. Do mérito do recurso
Dispõe o artigo 8.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias:
“Responsabilidade civil pelas multas e coimas
1 - Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infrações por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.
2 - A responsabilidade subsidiária prevista no número anterior é solidária se forem várias as pessoas a praticar os atos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa.
3 - As pessoas referidas no n.º 1, bem como os técnicos oficiais de contas, são ainda subsidiariamente responsáveis, e solidariamente entre si, pelas coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direção-Geral dos Impostos as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título.
4 - As pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas, cometerem infrações fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as providências necessárias para os fazer observar a lei.
5 - O disposto no número anterior aplica-se aos pais e representantes legais dos menores ou incapazes, quanto às infrações por estes cometidas.
6 - O disposto no n.º 4 aplica-se às pessoas singulares, às pessoas coletivas, às sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e a outras entidades fiscalmente equiparadas.
7 - Quem colaborar dolosamente na prática de infração tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela infração, quando for o caso
8 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade.”
A Lei n.º 60-A/2005, de 31 de dezembro, que aprovou o Orçamento de Estado para 2006, veio evidenciar as ligações entre contabilidade e fiscalidade, tendo ampliado a responsabilidade dos Técnicos Oficiais de Contas pelo cumprimento das obrigações fiscais dos seus clientes, acompanhando uma tendência no sentido do reconhecimento do interesse público da atividade destes profissionais, enquanto interlocutores privilegiados entre os contribuintes e a administração fiscal e garantes da verdade tributária.
Este diploma, além de ampliar as situações em que os Técnicos Oficiais de Contas podem ser responsabilizados pelas dívidas tributárias dos seus clientes (artigo 24.º da Lei Geral Tributária), passou também a responsabilizá-los, subsidiariamente, pelo pagamento das coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações fiscais que devam ser apresentadas no período de exercício de funções pelos seus clientes, quando não comuniquem, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direção-Geral dos Impostos, as razões que impediram o cumprimento atempado dessa obrigação.
Deste modo, mesmo nas situações em que não é imputável aos técnicos oficiais de conta a violação do próprio dever de apresentação de declarações fiscais, podem vir a ser responsabilizados, quando o património do devedor principal se revela insuficiente ou inexistente para o pagamento da coima prevista no artigo 116.º, do RGIT, se não tiverem cumprido o referido dever de comunicação.
Daqui resulta a imposição para os Técnicos Oficiais de Contas de um dever de colaboração com a Administração Fiscal – informação sobre as razões do incumprimento pelo cliente da obrigação de entrega de quaisquer declarações fiscais – cujo desrespeito é sancionado com uma responsabilização, a título subsidiário, pelo pagamento da coima devida pela falta de entrega da declaração fiscal em causa.
Apesar de não se encontrar especificamente previsto o modo de efetivar esta responsabilidade, atento o seu caráter subsidiário, ela tem-se efetivado através do mecanismo da reversão, o qual traduz uma manifestação do princípio da economia processual, possibilitando a execução do responsável subsidiário no mesmo processo de execução que foi movido contra o devedor, onde passa a ocupar a posição de executado.
A decisão recorrida entendeu que a responsabilização dos técnicos oficiais de contas contida no artigo 8.º, n.º 3, do Regime Geral das Infrações Tributárias, através do mecanismo da reversão, violava o princípio da instransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição, e o direito de audiência e defesa previsto no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição.
O Tribunal Constitucional foi nos últimos anos confrontado com a constitucionalidade da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas coletivas em processo de contraordenação, face às acusações de que tais soluções encobriam uma transmissão de uma sanção contraordenacional e o mecanismo processual da reversão não assegurava um eficaz direito de defesa.
Tendo-se inicialmente pronunciado pela não inconstitucionalidade dessa responsabilidade (Acórdãos n.º 129/2009, 150/2009 e 234/2009, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt) veio, posteriormente, pelos Acórdãos n.º 481/2010, 24/11 26/11, 85/11 e 125/11 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), a julgar inconstitucional as normas constantes dos artigos 7.º - A, do Regime Jurídico das Infrações Fiscais não Aduaneiras, e do e 8.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na medida em que nesses preceitos se consagrava uma responsabilização subsidiária pelas coimas que se efetiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra os gerentes e administradores da sociedade devedora.
Perante a divergência de julgados foi requerida a intervenção do Plenário do Tribunal Constitucional que, nos Acórdãos n.º 437/11 e 561/2011 (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), proferiu julgamento de não inconstitucionalidade das normas contidas no 8.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na medida em que nesses preceitos se consagrava uma responsabilização subsidiária pelas coimas que se efetiva através do mecanismo da reversão da execução fiscal contra os gerentes e administradores da sociedade devedora, e no artigo 7.º - A, do Regime Jurídico das Infrações Fiscais não Aduaneiras.
A argumentação utilizada por estes arestos foi a inicialmente desenvolvida pelo acima referido Acórdão n.º 129/2009 e que foi a seguinte:
“No caso vertente, importa ter em consideração, antes de mais, que não estamos perante uma qualquer forma de transmissão de responsabilidade penal ou tão pouco de transmissão de responsabilidade contraordenacional.
O que o artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT prevê é uma forma de responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes, que resulta do facto culposo que lhes é imputável de terem gerado uma situação de insuficiência patrimonial da empresa, que tenha sido causadora do não pagamento da multa ou da coima que era devida, ou de não terem procedido a esse pagamento quando a sociedade ou pessoa coletiva foi notificada para esse efeito ainda durante o período de exercício do seu cargo.
O que está em causa não é, por conseguinte, a mera transmissão de uma responsabilidade contraordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa coletiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas.
A simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional; e de nenhum modo permite concluir que tenha havido a própria transmissão para o administrador ou gerente da responsabilidade contraordenacional.
Por outro lado, o facto de a execução fiscal poder prosseguir contra o administrador ou gerente é uma mera consequência processual da existência de uma responsabilidade subsidiária, e não constitui, em si, qualquer indício de que ocorre, no caso, a transmissão para terceiro da sanção aplicada no processo de contraordenação (cfr. artigo 160º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Acresce que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assenta, não no próprio facto típico que é caracterizado como infração contraordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduz num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal.
É esse facto, de caráter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamenta o dever de indemnizar, e que, como tal, origina a responsabilidade civil.
Tudo leva, por conseguinte, a considerar que não existe, na previsão da norma do artigo 8º, n.º 1, alíneas a) e b), do RGIT, um qualquer mecanismo de transmissibilidade da responsabilidade contraordenacional, nem ocorre qualquer violação do disposto no artigo 30º,n.º 3, da Constituição, mesmo que se pudesse entender - o que não é liquido - que a proibição aí contida se torna aplicável no domínio das contraordenações.”
Em síntese, entendeu-se que a responsabilidade dos gerentes ou administradores consagrada no artigo 8.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, tem o seu fundamento no instituto da responsabilidade civil delitual ou aquiliana, respondendo aqueles sujeitos, a título subsidiário, na exata medida do dano que produziram à Administração Fiscal, ao terem impossibilitado, pela sua administração, a efetivação do pagamento das coimas devidas.
E no Acórdão n.º 437/11, acrescentou-se que, relativamente à utilização do mecanismo da reversão, o Tribunal perfilhava a opinião que esta figura processual assegurava ao revertido a possibilidade de invocar as suas razões de facto e de direito e de oferecer provas, resultando do exercício destes seus direitos processuais a possibilidade comprovada de influir no sentido da decisão final, pelo que não se mostrava violado o seu direito de audição e defesa.
A responsabilidade subsidiária aqui em análise encontra-se prevista no mesmo artigo 8.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias, que tem precisamente como epígrafe “Responsabilidade civil pelas multas e coimas”, pelo que, por coerência de julgamentos, a interpretação seguida pelo Tribunal Constitucional, em Plenário, relativamente à qualificação jurídica desta responsabilidade, deve também aplicar-se à responsabilidade subsidiária dos Técnicos Oficiais de Contas prevista no n.º 3, do mesmo artigo.
A responsabilidade que lhes é atribuída nesse preceito legal deve, por isso, também ser encarada como uma responsabilidade civil aquiliana ou delitual, resultante do incumprimento do dever de comunicação no prazo legal à Direção-Geral dos Impostos, das razões que impediram o cumprimento atempado pelos seus clientes da obrigação de entrega de declarações fiscais.
Nesta perspetiva, o legislador entendeu que os técnicos oficiais de contas ao incumprirem este dever de comunicação dificultam o conhecimento pela Administração Fiscal das situações de falta de entrega das declarações fiscais e do circunstancialismo que as rodeia e a consequente aplicação das coimas previstas no artigo 116.º, do Regime Geral das Infrações Tributárias, assim contribuindo para a posterior impossibilidade da sua cobrança, correspondendo a coima ao valor da indemnização devida pelos prejuízos que resultaram para o Estado desse incumprimento. É um facto autónomo, constituído pelo incumprimento do dever de comunicação, que gera a obrigação de indemnizar, não se verificando uma situação de transmissão para o Técnico Oficial de Contas da responsabilidade pela não entrega atempada das declarações fiscais em falta.
Também aqui a simples circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da coima não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios definidos pelo legislador a forfait, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é coincidente com a receita que deixou de entrar nos cofres da Fazenda Nacional, não se podendo, pois, concluir que tenha ocorrido uma transmissão para o Técnico Oficial de Contas da responsabilidade contraordenacional.
Atenta a qualificação jurídica da responsabilidade consagrada no artigo 8.º, n.º 3, do Regime Geral das Infrações Tributárias, não tem sentido imputar-se à norma sob fiscalização, a violação do princípio da intransmissibilidade das penas, sendo certo que também está definido pela anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional que a utilização do mecanismo da reversão para efetivar esta responsabilidade não viola os direitos de audição e defesa dos responsáveis subsidiários.
Assim, por aplicação da doutrina sustentada nos anteriores Acórdãos n.º 437/11 e 561/2011, do Tribunal Constitucional, aprovados em Plenário, deve também proferir-se neste recurso um juízo de não inconstitucionalidade, o que conduz à sua procedência.
Decisão
Nestes termos:
a) Não se julga inconstitucional a norma constante do artigo 8.º, n.º 3, do Regime Geral das Infrações Tributárias, no segmento em que responsabiliza os técnicos oficiais de contas, pelas coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Direção-Geral dos Impostos, as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título, efetuando-se essa responsabilização através do mecanismo da reversão fiscal.
e, em consequência,
b) julga-se procedente o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida, de acordo com o precedente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 15 de julho de 2013. – João Cura Mariano – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro