Imprimir acórdão
Proc. nº 448/02
1ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1.O MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs recurso para este Tribunal para apreciação da questão da recusa de aplicação pelo Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto da norma constante «do artigo 191º do Código de Posturas do Concelho do Porto com referência ao artº 1º da Lei nº 97/88, de 17/8, no sentido em que permitem ou prevêem a tributação da utilização de espaços pertencentes a particulares para colocação de publicidade», nos termos do disposto na alínea a) do nº 1 e no nº 3 do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa e do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Com efeito, a ora recorrida, A, impugnou, junto do Tribunal de Pequena Instância Cível do Porto, a liquidação da quantia de € 2.493,99, efectuada pela Câmara Municipal do Porto a título de coima aplicada no respectivo processo de contra-ordenação relativo à manutenção pela recorrente de vários anúncios e reclamos luminosos não licenciados pela competente Câmara Municipal, colocados no prédio com o nº ... da Av. Fernão de Magalhães, no Porto.
Nessa impugnação considerou, desde logo, que a licença municipal referente à colocação de anúncios, constante do artigo 191º, nº 1, do Código das Posturas do Concelho do Porto e cuja não existência fundamentou o processo de contra-ordenação em causa, era inconstitucional, por possuir a natureza de um verdadeiro imposto.
E prosseguiu considerando também a própria coima como inconstitucional, porquanto a recorrente pagara já coima relativa aos mesmos factos, imputados em processo de contra-ordenação anteriormente decorrido, com o nº 673/2000. Assim, ao punir «pela segunda vez um mesmo facto» a coima impugnada revelar-se-ia violadora do artigo 29º, nº 5, da Constituição.
Por sentença de 24 de Maio de 2002, o Tribunal de Pequena Instância do Porto julgou inconstitucional a norma constante «do artigo 191º do Código de Posturas Municipais da Câmara Municipal do Porto, com referência ao artigo 1º, nº 1, da Lei 97/88, de 17-08 interpretadas no sentido em que permitem ou prevêem a tributação da utilização de espaços pertencentes a particulares – para colocação de publicidade», por violação dos artigos 103º, nº 2 e 165º, nº 1, alínea i), da Constituição, e a impugnação foi consequentemente julgada procedente.
2. Dessa decisão foi interposto pelo Ministério Público o presente recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal, onde o recorrente concluiu assim as suas alegações:
Não viola qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental o estabelecimento da necessidade do indispensável licenciamento municipal, relativamente a quaisquer inovações ou modificações da estrutura visível dos imóveis, de modo a facultar às autarquias a salvaguarda do equilíbrio urbano e ambiental – e sendo naturalmente sancionado, no plano do ilícito de mera ordenação social ( e não obviamente no plano do direito tributário), quaisquer comportamentos ilícitos e culposos dos particulares.
A coima aplicada ao interessado que cometeu tal contraordenação – prevista e punida na norma regulamentar desaplicada na decisão recorrida – e que integra o objecto do presente recurso carece, dada o seu carácter estritamente sancionatório, de natureza tributária, carecendo consequentemente de sentido proceder a uma sua qualificação como «taxa» ou «imposto».
Por sua vez, a recorrida formulou as seguintes conclusões:
«In casu» a existência de posturas municipais que exigem a obtenção de licenças mais não são do que o procedimento necessário à obtenção de receitas municipais, pela obrigatoriedade do pagamento de tributos.
Que por não poderem deixar de considerar-se impostos são inconstitucionais, e por isso tornam nulos os actos subsequentes.
Quando assim não se entenda aquelas normas são igualmente inconstitucionais quando interpretadas:
a) com o sentido de fazerem equivaler o valor da coima ao montante da taxa e,
b) quando interpretadas com o sentido de fazerem depender a concessão da licença ao pagamento de qualquer contraprestação pecuniária.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
3. Este Tribunal tem julgado inconstitucionais as normas constantes de posturas ou editais municipais que tributam a colocação e manutenção de anúncios ou reclamos publicitários, com fundamento na respectiva inconstitucionalidade orgânica. É o caso, nomeadamente, do Acórdão nº 558/98
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41º vol., págs. 55 e segs.), do Acórdão nº
32/99 (inédito), do Acórdão nº 63/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42º vol., págs. 291 e segs.), do Acórdão nº 515/00 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 48º vol., págs. 459 e segs.), e do Acórdão nº 92/2002 (inédito)
.
Como se afirmou no citado Acórdão 558/98, e tem sido reiterado na restante jurisprudência citada:
Simplesmente, não será do simples facto de o licenciamento da actividade publicitária competir, na área dos respectivos municípios, às câmaras municipais, que decorre, desde logo e sem mais, que o tributo cobrado pelas edilidades aos responsáveis pela afixação e inscrição das mensagens de propaganda, haja de ser considerado como uma «taxa».
Efectivamente, não passa este Tribunal em claro que, como se disse no citado Acórdão nº 313/92, 'mesmo nas hipóteses em que a actividade dos particulares sofre uma limitação, aqueloutra actividade estadual, consistente na retirada do obstáculo à mencionada limitação mediante o pagamento de um tributo,
é vista pela doutrina como a imposição de uma «taxa» somente desde que tal retirada se traduza na dação de possibilidade de utilização de um bem público ou semi-público (cfr., sobre o ponto, Teixeira Ribeiro na citada Revista)', acrescentando-se que, '[s]e este último condicionalismo não ocorrer, deparar-se-á uma situação subsumível à existência de um encargo ou de uma compensação, tributo que se aproximará da figura do «imposto» nos termos que a seguir se verão, sem que com isto se queira significar que a imposição de contributo só é recondutível à dicotomia de «taxas» ou «impostos»».
Na realidade, assente uma relação sinalagmática característica da
«taxa», o que, como é claro, implica uma contrapartida de diferentes naturezas por parte do ente público impositor do tributo, tem a doutrina entendido que são essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica e que se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização, pelo mesmo, de um bem público ou semi-público ou de um bem do domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares (cfr. Teixeira Ribeiro, ob. e loc. cits., Pitta e Cunha, Xavier de Basto e Lobo Xavier, também ob. e loc. cits.).
Ora, quando em causa se encontra a terceira daquelas situações
(rememore-se, a que consiste no levantamento do obstáculo jurídico ao exercício de determinada actividade por parte do tributado), defende a doutrina que o encargo pela remoção - in casu, a concessão de licenciamento para a afixação ou inscrição de publicidade - só pode configurar-se como «taxa» se com essa remoção se vier a possibilitar a utilização de um bem semi-público (v. autores por
último citados e Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4ª ed., vol. 1, p. 33, que, em vez de bens semipúblicos, fala de bens colectivos, quer públicos ou privados de uma perspectiva de provisão pública, quer de bens colectivos impuros).
Neste contexto, e não olvidando que a norma sub specie se reporta a painéis publicitários afixados ou inscritos, não em quaisquer bens ou locais públicos ou semi-públicos, mas sim em veículos de transporte colectivo ou em veículos particulares (e são desta última espécie os veículos da recorrente), não se lobriga, por um lado, que forma de utilização de um bem semi-público esteja em causa e, por outro, que o ente tributador venha a ser a ser constituído numa situação obrigacional de assumpção de maiores encargos pelo levantamento do obstáculo jurídico.
Mas, mesmo que o tributo criado pela norma em análise, possa ser visualizado como aquilo que certa doutrina (designadamente estrangeira) apelida de contribuições especiais ou tributos especiais (cfr. Perez de Ayala e Eusebio Gonzalez, Curso de Derecho Tributário, 1º Tomo, p. 208), o que é certo é que a doutrina nacional, quase diríamos sine discrepante, tem sustentado que tais contribuições ou tributos não devem, do ponto de vista do seu tratamento, ser vistas diferenciadamente dos «impostos».
Em face do exposto, e porque se não vê, por um lado - perspectivando o tributo em causa como um encargo derivado pelo levantamento de obstáculos jurídicos ao exercício ou ao desenvolvimento de uma actividade por parte de um particular - que haja da sua parte a utilização de um bem semi-público (ou colectivo, na linguagem de Sousa Franco) e, por outro, que, mesmo na óptica de nos situarmos perante uma contribuição ou um tributo especial, ele devesse ter um tratamento sui generis diferente do que deve ser conferido aos impostos, uma só solução se nos anteolha. É ela a de a respectiva imposição haver de obedecer aos ditames que pela Lei Fundamental são dirigidos aos «impostos».
E daí que a norma impositora do encargo em apreciação, porque criada por diploma não emanado pela Assembleia da República (ou pelo Governo devidamente credenciado por aquela), deva ser considerada como enfermando do vício de inconstitucionalidade orgânica.
4. Esta jurisprudência seria de manter se a situação a que se reporta fosse a mesma que se encontra em causa nos presentes autos. Todavia, como refere o Ministério Público, nas respectivas alegações, «a decisão recorrida assenta num claro equívoco, já que, no caso dos autos, estamos confrontados – não com a exigência à recorrida de qualquer 'tributo' pela autarquia, como decorrência de afixação de mensagens publicitárias no seu estabelecimento, mas com a imposição de uma coima – sanção contraordenacional decorrente de a arguida não ter procedido ao prévio e indispensável licenciamento municipal, destinado a facultar à autarquia a fiscalização da afixação ou inscrição de mensagens publicitárias, com vista à salvaguarda do equilíbrio urbano e ambiental».
E as autarquias não só não estão impedidas de exercer essa actividade fiscalizadora como na verdade tais funções lhes são expressamente atribuídas pela Lei nº 97/88, de 17 de Agosto, artigo 1º. A própria decisão recorrida reconhece expressamente que «cabe ao Município onde a arguida tenha sede social licenciar os anúncios a pôr nos edifícios e estabelecimentos de que seja proprietária». O que não poderá, face à orientação jurisprudencial dispendida, é fixar o tributo decorrente desse licenciamento quando estejam em causa bens do domínio privado ou particular.
Ora, foi a partir daquela errada premissa que a decisão recorrida proferiu o alegado juízo de inconstitucionalidade que fundamentou a procedência da impugnação em causa.
Todavia, o que estava em causa nos presentes autos não era o pagamento de qualquer taxa eventualmente devida pela licença dos anúncios colocados, mas antes, e tão só, a cobrança da coima devida pela não existência do necessário licenciamento para os anúncios em causa. Com efeito, a recorrida A não requereu oportunamente o licenciamento para a colocação dos anúncios ou reclamos referentes à sua actividade, pelo que a autarquia deu início ao respectivo processo de contraordenação, destinado a sancionar essa falta de licenciamento, e não a cobrar o tributo correspondente a essa mesma licença. Ora, a necessidade de licenciamento não foi posta em causa pela jurisprudência constitucional citada, e é a ela que se referem os nºs 1 e 2 do artigo 1º da Lei nº 97/88, bem como o artigo 191º do Código de Posturas Municipais, disposições infringidas pela recorrida.
O que vale por dizer que a decisão recorrida, ao interpretar esses normativos no sentido de permitirem «a tributação da utilização de espaços pertencentes a particulares», entendeu como abrangidas no conceito de «tributo» as coimas devidas pela não existência de licenciamento, afastando assim a possibilidade de sancionamento pelas autarquias desses mesmos comportamentos infractores. Ou seja, interpretou-os no sentido de abrangerem o sancionamento da ausência de licença, concluindo pela respectiva inconstitucionalidade.
Ora, tal sentido é manifestamente excessivo. Como bem referiu o Ministério Público, supra, aquela coima, «prevista e punida na norma regulamentar desaplicada na decisão recorrida» possui uma natureza clara e indubitavelmente sancionatória, «carecendo consequentemente de sentido proceder a uma sua qualificação como «taxa» ou «imposto»».
Pretende ainda a recorrida, todavia, que o estabelecimento da necessidade de licenciamento «mais não é do que a sujeição ao pagamento de uma taxa, que surge na sequência de um procedimento administrativo, que é acessório e a sanção mais não é do que a ausência do tal procedimento pelo não pagamento da respectiva taxa», alegando ainda que «procedimento» e «taxa» seriam uma e a mesma realidade. Para concluir assim, e ainda, que «não sendo lícito à autarquia cobrar a aludida taxa igualmente não lhe é lícito sancionar o comportamento pela ausência da licença, por nulidade da disposição que determina e discrimina a sanção».
Ora, tal argumento é de todo improcedente, já que a recorrente não logra fundamentar tais afirmações, pois que não é de todo possível confundir essas duas realidades distintas: por um lado, a obtenção da necessária licença municipal; por outro, o pagamento do tributo a ela correspondente.
Não se verifica, assim, qualquer inconstitucionalidade nas normas desaplicadas.
III – DECISÃO
5. Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 22 de Outubro de 2002- Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa