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Processo n.º 310/99 Plenário Relator – Cons. Paulo Mota Pinto Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional: I. Relatório O Provedor de Justiça veio, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 281º da Constituição da República e do n.º 3 do artigo 20º do seu Estatuto, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 490º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais (adiante designado por CSC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
262/86, de 2 de Setembro, norma, essa, que tem a seguinte redacção:
'A sociedade dominante pode tornar-se titular das acções ou quotas pertencentes aos sócios livres da sociedade dependente, se assim o declarar na proposta e, nos 60 dias seguintes, fizer lavrar escritura pública em que seja declarada a aquisição por ela das participações. A aquisição está sujeita a registo e publicação.' O requerente entende que esta norma viola os artigos 18º, n.º 2, e 62º, n.º 1, da Constituição, apresentando, para sustentar o pedido, a argumentação que se passa a resumir: a) O objecto do direito fundamental de propriedade privada não se circunscreve
às coisas – móveis e imóveis –, possuindo, ao invés, um âmbito muito mais extenso, equivalente ao conceito de património, tal como tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, pelo que se poderá considerar que 'as participações sociais, enquanto conjunto das obrigações e direitos dos sócios e suas quotas-partes no capital social das sociedades comerciais, se compreendem no âmbito de protecção normativa do direito de propriedade privada, consagrado pelo artigo 62º da Constituição' (artigos 6º a
11º do requerimento); b) A opção constitucional pela integração sistemática do direito de propriedade privada no título dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais não lhe retirou a sua dimensão fundamental de liberdade, sendo unanimemente reconhecida ao direito de propriedade privada, pela doutrina e pela jurisprudência constitucional, natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (artigos
12º a 15º do requerimento); c) Gozando o direito de propriedade privada, nos termos do artigo 17º da Constituição, do regime dos direitos, liberdades e garantias, as restrições ao mesmo têm de respeitar os requisitos definidos pelo artigo 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição (artigo 16º do requerimento); d) A salvaguarda da liberdade de iniciativa económica privada, garantida pelo artigo 61º da Constituição, 'surge como o valor constitucionalmente relevante em que o legislador se terá suportado para estabelecer o direito à aquisição forçada de participações sociais nos casos em que a sociedade dominante detenha mais de 90% da sociedade dominada', previsto no artigo 490º, n.º 3, do CSC, na medida em que o reforço ou consolidação dos grupos societários, através da constituição de grupos por domínio total, se insere no âmbito de protecção da liberdade de empresa, que por sua vez se contém na mencionada liberdade de iniciativa económica privada (artigos 19º a 22º do requerimento); e) Para além da salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, a 'admissibilidade constitucional da restrição ao direito de propriedade privada que esta possibilidade de aquisição forçada de participações sociais representa depende da observância do princípio da proporcionalidade, nas suas três vertentes: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito ou «justa medida»' (artigo 23º do requerimento). f) Quanto à primeira vertente, 'pode ter-se como adequada ao reforço dos grupos societários a possibilidade de aquisição forçada de participações sociais dos sócios minoritários, pela sociedade maioritária, na medida em que alarga o
âmbito de decisão desta na prossecução do objecto societário, mas já não enquanto meio de remover os obstáculos ou inconvenientes para esse projecto que o mero exercício pelos sócios minoritários dos seus direitos sociais, em especial do direito à informação e do direito à participação nas deliberações sociais, poderiam causar' (artigo 35º do requerimento). g) Já quanto à segunda vertente, mostrar-se-ia duvidosa a necessidade do direito de aquisição forçada prevista pelo artigo 490º, n.º 3, do CSC, para o reforço dos grupos societários, pois:
- O reforço dos grupos societários seria um objectivo que pode ser atingido por diversos meios, não passando necessariamente pelo domínio total da sociedade;
- A relação de grupo pode estabelecer-se, no direito português, por duas outras formas, o contrato de grupo paritário (artigo 492º do CSC) e o contrato de subordinação (artigo 493º do CSC), as quais 'representam formas de constituição de grupos societários menos restritivas do direito de propriedade privada dos sócios minoritários quando estes detenham, no seu conjunto, menos de 10% do capital social, pois mantêm a qualidade de sócios, o que não sucede no caso dos grupos constituídos por domínio total' (artigos 38º a 40º do requerimento);
- Ainda que se entenda que os grupos constituídos através da celebração de contratos de grupo paritário ou de contratos de subordinação não são tão coesos como aqueles constituídos por domínio total, atendendo aos casos em que as deliberações sociais só podem ser tomadas por unanimidade, deveria levar-se em linha de conta que considerar necessária uma medida restritiva sempre que as alternativas sejam menos eficazes equivaleria, na prática, a inutilizar a máxima da 'necessidade', já que a medida mais gravosa ou mais lesiva tem normalmente maior eficácia na prossecução das finalidades à partida seleccionadas (artigos
41º a 44º do requerimento);
- Mesmo que, através da constituição de um grupo de sociedades com base na celebração de contratos de grupo paritário ou de contratos de subordinação, o objectivo do reforço da coesão social não fosse alcançado de forma tão eficiente como através do mecanismo previsto pelo artigo 490º, n.º 3, do CSC, tal objectivo seria 'alcançado de modo suficientemente eficaz para permitir a direcção unitária pressuposta pela relação de grupo, pelo que a aquisição do domínio total, enquanto medida mais restritiva que a celebração de contratos de subordinação ou de contratos de grupo paritário, não se mostra necessária para o reforço dos grupos societários' (cfr. artigo 46º do requerimento); h) Quanto à terceira vertente do princípio da proporcionalidade, a proporcionalidade em sentido estrito ou 'justa medida', 'a medida legislativa contida no artigo 490º do CSC não se mostra[ria] admissível no quadro da ponderação dos bens ou valores implicados', sendo manifesta a desproporção entre o benefício auferido pela sociedade dominante e a desvantagem suportada pelos sócios minoritários (artigo 48º do requerimento). Com efeito – afirma-se –, enquanto 'à sociedade maioritária é permitida a aquisição da totalidade do capital social, por forma a poder tomar, por si só, o reduzido número de decisões que obrigam à aquiescência unânime dos sócios, os sócios minoritários têm de suportar, sem nada poderem obstar, a extinção do seu direito de propriedade relativamente à participação no capital social da sociedade dominada'. Ora, seria muito mais gravosa para os sócios minoritários a perda forçada e absoluta dos seus direitos sobre o capital social do que a eventual dificuldade em atingir a unanimidade nas deliberações sociais para a sociedade maioritária (artigos 48º e 49º do requerimento); i) Ainda segundo o requerente, não procederiam as duas objecções que poderiam ser levantadas contra esta ponderação. É o caso do argumento segundo o qual o instituto seria, como a exclusão e a amortização, um sucedâneo da dissolução total da sociedade, uma vez que com esta última não se verificariam as vantagens decorrentes da manutenção da personalidade jurídica da sociedade dominada, vantagens, essas, que no caso do mecanismo previsto no artigo 490º, n.º 3, do CSC irão beneficiar apenas a sociedade dominante em detrimento dos sócios minoritários (artigos 52º a 56º do requerimento); j) E é também o caso do argumento segundo o qual o direito potestativo de aquisição pela sociedade maioritária das participações dos sócios minoritários seria a contrapartida necessária do direito destes de impor àquela a aquisição das suas participações sociais, previsto pelo artigo 490º, n.º 5, do CSC, pois, por um lado, não existe qualquer nexo normativo entre as soluções contidas nos n.ºs 3 e 5 do artigo 490º do CSC, e, por outro lado, 'para além da especificidade da posição dos sócios minoritários, que suscita uma maior protecção por parte do ordenamento jurídico, verifica-se que, no caso vertente,
é muito mais fácil à sociedade maioritária determinar a sua participação no capital social por forma a que não ultrapasse os 90%, do que aos sócios minoritários impedir que a sociedade maioritária adquira tal posição' (artigos
57º a 59º do requerimento). O requerente chega, assim (artigo 60º do requerimento), à conclusão de que o direito potestativo da sociedade maioritária de se tornar titular das acções ou quotas detidas pelos sócios minoritários, nos termos definidos pelo artigo 490º do CSC, viola o princípio da proporcionalidade, na sua vertente da proporcionalidade em sentido estrito, mostrando-se, nessa medida, desconforme com o artigo 18º, n.º 2, da Constituição. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, n.º
3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro veio reafirmar a plena conformidade constitucional da norma objecto do requerimento apresentado pelo Provedor de Justiça. O Primeiro-Ministro começa por expressar a sua concordância com algumas das premissas utilizadas pelo requerente para fundamentar o seu pedido, a saber: as quotas e acções tituladas pelos 'sócios livres' de uma sociedade subordinada constituem direitos patrimoniais, que se compreendem no âmbito de protecção do direito constitucional de propriedade privada; o direito de propriedade privada, como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, pode ser objecto de restrições através de lei ordinária, desde que estas respeitem os requisitos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição; o reforço dos grupos societários constitui um valor constitucionalmente relevante para operar a restrição do direito de propriedade privada (cfr. artigo 17º da resposta). Seguidamente, porém, o Primeiro-Ministro tenta demonstrar, primeiro, que a norma questionada não é, em geral, incompatível com a Constituição (artigos 18º a 37º da resposta), e, depois, na especialidade, que não viola, nem o princípio da igualdade (aliás não invocado pelo requerente), nem o princípio da proporcionalidade. Pode sintetizar-se essa argumentação da seguinte forma: a) A relação de grupo caracterizado pelo domínio total constitui o grau mais intenso de direcção unitária no universo das relações grupais inter-societárias, fundando-se o seu vasto poder integrativo num conjunto de fins específicos, traduzidos em vantagens qualificadas tais como: faculdade de a sociedade dominante exercer um poder absoluto de direcção sobre a sociedade dominada, sem que possa existir a possibilidade de os sócios minoritários da segunda obstarem
à constituição de um grupo, de se prevalecerem de cláusulas garantísticas no pacto social para exercerem um direito à informação apto a desvendar uma indispensável reserva na estratégia empresarial, de vedarem necessárias alterações do pacto social favoráveis à dissolução da sociedade, ou de imporem a distribuição de lucros, mesmo que tal se mostre inconveniente para a economia da empresa; garantia de que a sociedade dominante possa reduzir os custos fixos, sem limites oriundos do interior do grupo, fazendo crescer em termos de economia de escala o respectivo poder de mercado; certeza de que a sociedade dominante irá assegurar uma integração vertical integral num grupo societário, eliminando os riscos de se ver privado das suas fontes de abastecimento ao melhor preço, quando estes forem assegurados pelas sociedades dominadas; facilitação, seja da conversão das sociedades dependentes em departamentos ou sucursais da sociedade dominante, seja do processo criativo de grupos familiares com sociedades subordinadas não cotadas em bolsa; prossecução do interesse geral inerente à existência de grupos económicos nacionais coesos e aptos a competirem, no universo de uma economia crescentemente internacionalizada e concentrada (artigo
21º da resposta); b) Semelhante lógica de concentração grupal de natureza totalista surgiria como plenamente compatível com a Constituição, nomeadamente com o n.º 1 do artigo
61º, que consagra o direito de iniciativa privada (artigo 22º da resposta). c) O artigo 490º, n.º 3, do CSC solucionou o potencial conflito entre dois titulares de direitos de propriedade na sociedade dominada fazendo ceder a posição jurídica activa de sócios expressivamente minoritários em favor da posição detida por uma sociedade largamente maioritária, solução, esta, que seria, no entanto, sustentável, quer no plano da admissibilidade abstracta da restrição a que aqueles são sujeitos, quer no da sua compatibilização com o princípio da igualdade, quer, ainda, no plano da sua adequação ao princípio da proporcionalidade (artigo 30º da resposta); d) A questão da admissibilidade da cedência forçada dos direitos patrimoniais de particulares a outros particulares já se suscitou relativamente a outros ordenamentos jurídicos, que prevêem institutos análogos de domínio total superveniente, como foi o caso da ordem jurídica sueca; assim, a Comissão Europeia dos Direitos do Homem entendeu já, em decisão de 12 de Outubro de 1982, que não contraria o artigo 1º do 1º Protocolo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o facto de se obrigar, em certas circunstâncias previstas na lei, os accionistas minoritários a ceder as suas acções aos accionistas maioritários, mediante pagamento de preço determinado na mesma lei; é que, uma vez que esse artigo 1º admite o sacrifício da propriedade privada não apenas com fundamento em utilidade pública, mas também noutras condições previstas na lei e nos princípios gerais do Direito Internacional, o direito da pessoa ao respeito pelos seus bens não impede o legislador de modificar, quando e como julgue necessário, as normas do direito privado com repercussão no património dos particulares, ressalvado que seja o necessário equilíbrio; e no entender da Comissão existiriam, nas leis que regem na Suécia as relações de direito privado entre particulares, outras disposições que determinariam a obrigação de uma pessoa ceder direitos a outros, como será o caso das partilhas sucessórias, liquidação de certos regimes matrimoniais e venda de bens em execução forçada, pelo que o artigo 9º do Código das Sociedades Anónimas apenas acrescentaria outro desses mesmos institutos (artigo 32º da resposta); e) Os argumentos que levaram a Comissão a admitir como legítimo esse instituto da aquisição forçada de títulos, em face do disposto no artigo 1º do 1º Protocolo da Convenção Europeia, valeriam igualmente na ordem jurídica portuguesa, pois, por um lado, da letra e do telos do n.º 2 do artigo 62º da Constituição resultaria que a lei fundamental não consagra a requisição como o
único instituto limitativo do direito de propriedade, nem a expropriação como
único acto ablativo dos direitos patrimoniais dos cidadãos, e, por outro lado, não deixa a doutrina de estimar que outras figuras afins, que afectam a propriedade ou os direitos patrimoniais dos cidadãos, se deverão submeter a limites similares aos que tangem à requisição e expropriação (artigos 33º a 35º da resposta); f) Constituindo a figura da aquisição forçada tendente ao domínio total uma figura afim da expropriação, aquela pautar-se-ia por um regime garantístico similar à segunda, no respeitante aos termos de desafectação dos títulos patrimoniais dos sócios livres em benefício da sociedade dominante, dado que: em primeiro lugar, o instituto em referência opera com base na lei (no caso sub judice, justamente o n.º 3 do artigo 490º do Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro); em segundo lugar, o regime legal de aquisição forçada prevê a atribuição de uma contrapartida compensatória, cujo valor é justificado nos termos do n.º 2 do artigo 490º, através de um relatório elaborado por revisor oficial de contas independente das sociedades interessadas, decorrendo, também, de uma interpretação sistemática e teleológica do n.º 6 do mesmo preceito, a possibilidade de os tribunais virem a fixar em definitivo o valor da mesma aquisição, se o mesmo for considerado insuficiente (artigo 36º da resposta); g) O entendimento segundo o qual a exclusão do sócio minoritário pela simples vontade do sócio maioritário violaria o princípio da igualdade foi também já analisado na jurisprudência constitucional alemã, não tendo merecido acolhimento
(artigo 38º da resposta); entre nós, da mesma forma, improcederia qualquer hipotética alegação de violação do artigo 13º da Constituição por parte do n.º 3 do artigo 490º do CSC, uma vez que, por um lado, na situação aqui prevista existe de base uma profunda desigualdade fáctica entre o que a doutrina entende ser uma 'tão larga maioria' e uma 'tão fraca minoria' (expressões de Raúl Ventura, Estudos vários sobre sociedades anónimas, Coimbra, 1992, p. 168), e que, por outro lado, para tão ampla desigualdade 'de facto', a norma define, em termos de poderes societários, efeitos jurídicos com o objectivo de a sociedade amplamente dominante poder constituir um 'grupo vertical', supondo esta teleologia o sacrifício patrimonialmente compensado das participações de sócios cuja presença na sociedade subordinada não só obstaria à criação dessa modalidade específica de grupo, como poderia também, em certas circunstâncias, vedar a própria formação de um grupo societário a partir de uma relação de domínio originário (artigo 39º da resposta); h) No que toca ao princípio da proporcionalidade, a norma em questão conformar-se-ia com ele, na medida em que, ponderada a simetria de direitos e garantias atribuídos à sociedade maioritária e aos sócios livres pelo artigo
490º do CSC, ponderados os prejuízos, decorrentes da frustração do expressivo investimento utilizado por uma sociedade para adquirir 90% do capital de outra devido ao eventual poder obstrucionista dos sócios livres, e ponderado, igualmente, o sacrifício, justamente ressarcido, que resultaria da aquisição forçada dos direitos patrimoniais dos mesmos sócios minoritários, se poderia concluir que devem preferir qualitativa e qualificativamente os direitos patrimoniais da primeira sociedade (artigo 57º da resposta); i) A isto acresceria ainda, atento o exposto na alínea a) supra, que, quer o contrato de subordinação, quer o contrato de grupo paritário, não só revelam ser meios absolutamente inidóneos para o preenchimento dos fins inerentes à constituição de um grupo pautado por uma completa integração vertical, como também demonstram ser menos eficazes e mais onerosos do que o instituto em causa, para o efeito de permitir que uma sociedade, que titule originariamente uma maioria qualificada do capital de outra, possa formar com esta um grupo societário; é que a lei interdita a formação de um grupo paritário a partir de uma relação originária de domínio parcial entre duas sociedades (cfr. n.º 1 do artigo 492º do CSC); por outro lado, se uma sociedade for titular de 90% do capital de outra e pretender com ela constituir um grupo, através da celebração de contrato de subordinação, essa mesma constituição pode ser abortada pelo voto desfavorável de uma minoria representada pelos titulares de 5%, mais um, do capital social da sociedade dependente (cfr. n.º 2 do artigo 496º do CSC); e, assim, a não existir a figura prevista no n.º 3 do artigo 490º do CSC, a formação de grupos que emergisse de uma prévia relação de dependência entre duas sociedades não só se tornaria menos eficaz em termos de aderência integrativa, mas também muito mais difícil, indo semelhante omissão contra a lógica de mercado, da iniciativa privada e da valorização diferenciada da expressão quantitativa dos direitos patrimoniais existentes entre os diversos protagonistas de uma relação societária de domínio qualificado (cfr. artigos 61º a 71º da resposta). Discutida e fixada a orientação deste Tribunal com base em memorando elaborado pelo Presidente, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, cumpre elaborar o correspondente acórdão. II. Fundamentos Por força do princípio do pedido, este Tribunal só pode declarar a inconstitucionalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida, mas – como também se preceitua no artigo 51º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada por último pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro) – pode fazê-lo 'com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada.' Segundo o requerente, a norma do artigo 490º, n.º 3 do CSC estaria ferida de inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 18º, n.º 2, e 62º, n.º
1, da Constituição. Todavia, durante a discussão dos fundamentos do pedido foi suscitada também a questão de uma eventual inconstitucionalidade orgânica do artigo 490º, n.º 3 do CSC, por violação do artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República (na redacção posterior à 1ª revisão constitucional). Porque, no entendimento do Tribunal, esta última questão não deve, portanto, deixar de ser apreciada, começar-se-á por tratar dela, só depois – e em caso de conclusão negativa – se entrando na análise dos fundamentos de inconstitucionalidade material sustentados pelo requerente (nessa parte, podendo então, em geral, acompanhar-se de perto o referido memorando). Antes disso, porém, importa analisar mais em detalhe o instituto previsto na norma em questão. A) A 'aquisição tendente ao domínio total' O artigo 490º, n.º 3 do CSC prevê a possibilidade de aquisição potestativa, por parte da sociedade que detenha mais de 90% do capital social de outra, das acções ou quotas pertencentes aos sócios livres da sociedade dependente, mediante declaração unilateral seguida da celebração da correspondente escritura. Essa possibilidade é, no próprio artigo 490º do CSC, acompanhada pelo dever da sociedade dominante, que – por si ou juntamente com determinadas outras sociedades (que daquela sejam dependentes, directa ou indirectamente, ou que com ela estejam em relação de grupo) ou pessoas (que sejam titulares de acções ou quotas por conta de qualquer dessas sociedades) – disponha de quotas ou acções correspondentes a, pelo menos, 90% do capital de outra sociedade, de comunicar este facto a esta sociedade, nos 30 dias seguintes àquele em que for atingida a referida participação (artigo 490º, n.º 1, do CSC). Nos seis meses seguintes, a sociedade dominante pode fazer uma oferta de aquisição das participações dos restantes sócios, 'mediante uma contrapartida em dinheiro ou nas suas próprias quotas, acções ou obrigações, justificada por relatório elaborado por revisor oficial de contas independente das sociedades interessadas, que será depositado no registo e patenteado aos interessados nas sedes das duas sociedades' (n.º 2 do mesmo artigo). Por outro lado, a escritura correspondente à aquisição potestativa tendente ao domínio total, prevista no n.º 3, só pode ser lavrada depois da consignação em depósito da 'contrapartida, em dinheiro, acções ou obrigações, das participações adquiridas, calculada de acordo com os valores mais altos constantes do relatório do revisor'( n.º 4 do artigo 490º). O legislador atribuiu também aos sócios ou accionistas livres o direito de exigir que a sociedade dominante lhes faça, em prazo não inferior a 30 dias, oferta de aquisição das suas quotas ou acções, mediante contrapartida em dinheiro, quotas ou acções das sociedades dominantes – ou seja, um direito de alienação forçada destas, simétrico do de aquisição (artigo 490º, n.º 5, também do CSC). Neste caso – e, dir-se-á, na falta de outro mecanismo específico para o efeito, também no caso de aquisição potestativa –, se a oferta for considerada insatisfatória, o sócio livre pode requerer que o tribunal fixe o valor em dinheiro das acções ou quotas, e condene a sociedade dominante a pagar-lho (n.º
6 do artigo 490º do CSC). A fim de se compreender cabalmente o sentido do regime de aquisição forçada previsto no artigo 490º do CSC, importa, ainda, por um lado, determinar as origens históricas do instituto e situá-lo em face do direito comparado, bem como, por outro lado, proceder à respectiva inserção sistemática no contexto dos fenómenos de transmissão ou extinção compulsiva de participações sociais previstos no direito português. Segundo o autor do respectivo projecto, o artigo 490º, n.º 3, do CSC ter-se-á inspirado no artigo 209º do Companies Act britânico, de 1948, vigente ao tempo da preparação do CSC (Raúl Ventura, Estudos vários sobre sociedades anónimas, cit., p. 161, Participações Dominantes: Alguns Aspectos do Domínio de Sociedades por Sociedades, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 39, 1979, II, pp. 283 e ss), o qual, previsto no contexto geral das ofertas públicas de aquisição, conferia a uma sociedade que lançasse uma oferta pública de aquisição sobre as acções de uma outra sociedade anónima, em consequência da qual passasse a ser titular de 90% ou mais do capital social desta última, o direito de obrigar os restantes accionistas minoritários, que recusaram ou não aceitaram a oferta, a transmitir-lhes as respectivas acções, mediante notificação a estes accionistas, efectuada no prazo de dois meses, e o pagamento de uma contrapartida patrimonial fixada na respectiva proposta adrede elaborada, a qual era ainda susceptível de fiscalização judicial. Considera-se, na doutrina, que o regime do artigo 490º do CSC é 'fortemente inspirado na chamada ‘compulsory acquisition’ do direito inglês e nas operações de ‘squeeze out’ e ‘freeze out’ do direito norte-americano', guardando igualmente 'significativo parentesco com a ‘Eingliederung’ alemã, a
‘intégration’ francesa e a ‘déclaration unilatérale’ da directiva comunitária'
(José Engrácia Antunes, Os grupos de sociedades: estrutura e organização jurídica da empresa plurissocietária, Coimbra, 1993, p. 726; idem, A aquisição tendente ao domínio total – da sua constitucionalidade, Coimbra, p. 41 e ss., p.
14, nota 7; o autor refere-se ao Projecto de 9º Directiva comunitária sobre as coligações entre empresas e os grupos de sociedades, na sua versão de 1984). No direito norte-americano, a operação dita de 'freeze out' é aquela através da qual os sócios dominantes de uma sociedade utilizam o seu poder de controlo para forçar os sócios detentores de pequenas fracções de capital à venda das respectivas participações e ao abandono da sociedade. Através da operação de
'squeeze out', o sócio controlador procura induzir os sócios minoritários a voluntariamente desinvestirem na sociedade (v. g., tornando desinteressante a respectiva participação, mediante exclusão de lugares na empresa, política de reservas exacerbada, etc.). Por sua vez, através da 'Eingliederung' do direito alemão, prevista já no §320 da lei das sociedades por acções de 1965 (Aktiengesetz), a assembleia geral de uma sociedade por acções pode deliberar a incorporação da sociedade noutra sociedade por acções com sede em território nacional, se se encontrarem em poder da futura sociedade principal acções da sociedade a incorporar no valor nominal global de 95% do capital social. Após a inscrição do domínio no registo comercial, todas as acções que não se encontrem na titularidade da sociedade principal passam para ela, mediante o pagamento de uma compensação adequada aos ex-accionistas. No direito francês, as ofertas de exoneração (offres de retrait) permitem a qualquer pessoa singular ou colectiva (ou conjunto de pessoas singulares ou colectivas), que detenha 95% ou mais dos direitos de voto relativos ao capital de uma outra sociedade cujas acções estejam cotadas em mercado regulamentado, lançar uma oferta pública de aquisição dos títulos detidos pelos accionistas minoritários desta última, exigindo aos accionistas dissidentes ou desconhecidos a transmissão forçada, mediante o pagamento de uma contrapartida pecuniária determinada. Por último, a 'déclaration unilatérale instituant le groupe de subordination', prevista no referido Projecto de 9ª Directiva comunitária, permite que uma sociedade que detenha 90% ou mais do capital de outra sociedade possa, por acto da sua exclusiva vontade e mediante declaração unilateral, constituir com esta um grupo de subordinação, dispondo, ainda, que perante os sócios minoritários tal declaração deverá prever a aquisição obrigatória das respectivas acções e fixar as condições dessa aquisição. Há, aliás, quem refira que foi sobre este Projecto que 'se moldou fundamentalmente o nosso artigo 490º' (Francisco Brito Pereira Coelho, Grupos de sociedades: anotação preliminar aos arts. 488º a 508º do Código das Sociedades Comerciais, in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, vol. LXIV, 1988, p. 340, nota 111; segundo outra posição, o regime em causa teria origem na Eingliederung do direito alemão, na intégration da Proposta Cousté – proposta de lei francesa sobre grupos de sociedades apresentada em 1974-1975 pelos deputados Cousté, Bas, Bichat e outros –,
'assente em pressupostos muito semelhantes aos da Lei alemã', e na 'anexação' do Projecto de Directiva – assim, Maria da Graça Trigo, Grupos de sociedades, in O Direito, ano 123, 1991, I, p. 78). Seja como for – embora podendo concordar-se com que, 'objectivamente, a solução portuguesa parece próxima da alemã ou da do projecto de 9ª directriz', como refere A. Menezes Cordeiro, Da constitucionalidade das aquisições tendentes ao domínio total (artigo 490º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais), in BMJ, n.º 480, Novembro, 1998, p. 22 –, importa acrescentar que, para além dos exemplos indicados, de institutos que poderão estar historicamente na origem da figura prevista no artigo 490º, n.º 3, do CSC, é ainda possível apontar no direito comparado outras consagrações de soluções idênticas. Assim, para além da já referida lei sueca sobre sociedades anónimas, é possível apontar exemplos na legislação societária da generalidade dos países europeus
(para isto, v. José Engrácia Antunes, ult. ob. cit., pp. 60-62). Registe-se, apenas, que também a recente lei alemã sobre ofertas públicas de aquisição de títulos e sobre aquisições de empresas' (Gesetz zur Regelung von öffentlichen Angeboten zum Erwerb von Wertpapieren und von Unternehmensübernahmen, de 20 de Dezembro de 2001) veio prever um mecanismo equivalente ao que se contém no artigo 490º, n.º 3 do CSC, introduzindo na 'Lei sobre sociedades por acções' um novo § 327a, segundo o qual 'a assembleia geral de uma sociedade por acções ou de uma sociedade em comandita por acções pode, a pedido do accionista ao qual pertençam acções da sociedade na percentagem de 95% do capital (accionista principal), deliberar a transmissão das acções dos restantes accionistas
(accionistas minoritários), com atribuição de uma contrapartida adequada em dinheiro' (cfr. J. Sieger/K. Hasselbach, Der Ausschluss von Minderheitsaktionären nach den neuen §§ 327a ff AktG, in Zeitschrift für Unternehmens- und Gesellschaftsrecht, 2002, pp. 120 e segs, e, para discussão das questões de constitucionalidade levantadas, pp. 126-7). A 'aquisição tendente ao domínio total' prevista no artigo 490º, n.º 3, do CSC integra o regime dos grupos de sociedades, sendo concebida como um mecanismo que permite às sociedades maioritariamente participantes reorganizarem a sua própria estrutura jurídica, por forma a constituírem grupos de direito – ou seja, por forma a passarem da estrutura unissocietária à plurissocietária. É também com este sentido que foram pensados alguns dos exemplos de direito comparado atrás apontados, como a 'Eingliederung' e a nova possibilidade de 'exclusão dos accionistas minoritários' do direito alemão, o mecanismo previsto no artigo 9º da lei sueca sobre as sociedades anónimas, ou, ainda, no plano do direito a constituir, a déclaration unilatérale do direito comunitário. Mas, para além desta função de organização jurídica da empresa plurissocietária, própria dos grupos de sociedades, a aquisição tendente ao domínio total pode ainda servir como instrumento coadjuvante da aquisição do controlo societário obtido através de ofertas públicas de aquisição, como acontece com a compulsory acquisition do direito inglês, com as operações de freeze out e de squeeze out do direito norte-americano e com a offre de retrait do direito francês. Especificamente neste segundo plano (não directamente em causa no presente pedido), a aquisição tendente ao domínio total – e não só em casos em que o sócio dominante é uma sociedade – foi, também, recentemente consagrada no direito português, através do disposto nos artigos 194º a 197º do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de Novembro, cujo artigo 13º, n.º 5, aditou um n.º 7 ao artigo 490º do CSC, com a seguinte redacção: 'A aquisição tendente ao domínio total de sociedade com o capital aberto ao investimento do público rege-se pelo disposto no Código dos Valores Mobiliários'. Como se lê no preâmbulo deste Código, tal 'direito de aquisição potestativa (artigo 194.º), a que corresponde um direito simétrico de alienação potestativa dos accionistas minoritários (artigo 196.º), tem como ónus o lançamento prévio de oferta pública de aquisição'. A doutrina nacional tem-se interessado pelo regime do artigo 490º, n.º 3, do CSC, quer tratando da questão da sua conformidade constitucional, quer analisando a justeza do modo como esse regime tutela os interesse em presença. Há, assim, quem aproxime o regime do n.º 3 do artigo 490º do CSC de um
'verdadeiro acto de expropriação por utilidade particular, sem subordinação às regras gerais que estas regulam (...) uma transmissão forçada das acções que, por exclusiva vontade da dominante, deixam a titularidade dos pequenos accionistas para passarem para a sua' (João Labareda, Das acções das sociedades anónimas, Lisboa, 1988, p. 276, defendendo também que aos accionistas minoritários deve 'ser reconhecido o direito de impugnar judicialmente o valor fixado pelo revisor e de obter da adquirente a diferença que se apurar'). E comparam-se também os regimes de transmissão forçada previstos nos números 3 e 5 do artigo 490º do CSC: 'na primeira hipótese assinalada a transmissão é forçada para o próprio transmitente, enquanto que na segunda ela o é para o adquirente; daí que além estejamos em presença de uma situação paralela à da expropriação, o que aqui não ocorre' (João Labareda, ob. cit., p. 279). Noutra perspectiva, salienta-se que o instituto em questão 'é, como a exclusão ou a amortização, um sucedâneo da dissolução total da sociedade', pois, com tão grande maioria na sociedade dependente, a sociedade dominante 'poderia dissolver aquela e liquidá-la, recebendo os sócios minoritários o valor correspondente às suas quotas ou acções', sendo que a lei se mostra 'avessa à dissolução total, que desperdiça o valor económico da sociedade'. E diz-se que
'Não se trata, no nosso caso, de retirar aos sócios minoritários um bem para dele fazer beneficiar os sócios maioritários, mas sim de permitir que a sociedade siga a sua vida sem os potenciais conflitos entre tão larga maioria e tão fraca minoria, designadamente que os interesses específicos desta minoria não se oponham à conjugação de interesses entre a sociedade dominante e a sociedade dependente. Acresce que, como a seguir se verá, o artigo 490º confere aos sócios minoritários o direito de se apartarem da sociedade, impondo à sociedade dominante a aquisição das suas acções. Mal se compreenderia que este direito não tivesse contrapartida no direito de afastamento por parte do sócio maioritário'
(assim Raúl Ventura, Estudos vários sobre sociedade anónimas, cit., pp.
168-169). Aproximando o instituto em questão da fusão e cisão de sociedades, da transformação e da dissolução, salienta-se que o artigo 490º, n.º 3, do CSC consagra um tipo de conversão patrimonial, decidido por maioria, o qual se apresenta como bastante comum no direito das sociedades comerciais, podendo aquelas vicissitudes, todas elas, ser deliberadas por maioria: 'em todos estes casos encontramos conversões patrimoniais, em termos que garantem, em certos moldes, o valor detido pelos sócios, mas não a sua imutabilidade qualitativa'
(cfr. A. Menezes Cordeiro, Da constitucionalidade das aquisições tendentes ao domínio total..., cit., pp. 26-27, sustentando ainda que a norma em causa procede a uma ponderação adequada: 'ambos os intervenientes – maioria e minoria
– recebem o poder de provocar a aquisição da posição minoritária. Qualquer das partes que se decida, nesse sentido, irá, automaticamente, defender o interesse geral e o interesse empresarial'). E encontra-se, também, defendida esta perspectiva conjugada com a análise – que seria pressuposto da discussão sobre a afectação da garantia da propriedade pelo instituto em causa – da questão de saber com que sentido e alcance se pode considerar a participação social como uma forma de propriedade. Salienta-se, assim, que 'a participação social (‘Mitgliedschaft’, ‘socialité’, ‘membership’)
– enquanto posição jurídica complexa e sui generis inerente à qualidade de membro de uma corporação social (designando genericamente o conjunto de direitos, obrigações, expectativas jurídicas, ónus e faculdades em que cada sócio é investido no seio e em face daquela) – constitui sempre uma propriedade mediatizada pela interposição de uma entidade corporativa dotada de personalidade e organização jurídicas próprias' (cfr. José Engrácia Antunes, A aquisição tendente ao domínio total, cit., Coimbra, 2001, pp. 62 e ss. e 147). A participação social apareceria, pois, configurada como objecto de uma propriedade inevitavelmente ('visceralmente', na expressão do autor citado) mediatizada ou pela interposição do ente social, com a sua organização própria, comportando-se de modo diametralmente diverso no plano das relações jurídicas externas e internas. No plano destas últimas, o poder de disposição poderá ter apenas o alcance que resulta do próprio quadro legal-estatutário instituinte da corporação social que está na sua génese. Designadamente, sendo a corporação organizada, no caso das chamadas sociedades de capitais, com base em princípios estruturantes da maioria (artigos 250º, n.º 3, e 386º, n.º 1, do CSC), o exercício e o conteúdo das faculdades inerentes à titularidade de acções ou quotas jamais poderão deixar de se conformar com as concretas vicissitudes emergentes da vontade colectiva maioritariamente formada, e, consequentemente, com as particulares extensões ou compressões que daí possam resultar. Existem, assim, inúmeras operações jurídico-societárias que podem conduzir, directa ou indirectamente, a uma afectação substancial, ou mesmo à eliminação, dessa
'propriedade corporativa' – como acontece nos casos de aumento e redução de capital, fusão, cisão, transformação, dissolução –, pelo que, se aquela devesse ser concebida à imagem realista dos direitos de propriedade, é óbvio que o funcionamento destas organizações e a conformação da vontade colectiva estariam condenados necessariamente à regra do consentimento unânime de todos os sócios
(autor e ob. cits., pp. 74-81 e 147-148). Antes de passar ao tratamento das questões de constitucionalidade, cumpre, na verdade, salientar que o regime do artigo 490º do CSC convive com outros casos de transmissão ou extinção forçada de participações sociais, previstos no direito das sociedades comerciais. Na doutrina, como se viu, afirma-se mesmo que o instituto previsto no artigo
490º, n.º 3 do CSC, no aspecto técnico, é, 'como a exclusão ou a amortização, um sucedâneo da dissolução total da sociedade'. Diversamente, segundo o requerente, não se poderia considerar a situação em apreço um sucedâneo da dissolução total, pois com esta não se verificam as vantagens decorrentes da manutenção da personalidade jurídica da sociedade dominada propiciadas pelo instituto da aquisição forçada. Sem prejuízo, porém, de outras considerações que este argumento pode suscitar, não parece que ele ponha em causa a existência de outros institutos jurídico-societários que conduzem à transmissão ou extinção compulsivas de participações detidas por sócios minoritários, os quais, dessa forma, podem também ser encarados como expedientes de exclusão de sócios minoritários. O mesmo resultado prático – ou equivalente, sob o ponto de vista económico – que é visado pelo regime do artigo
490º do CSC pode, na verdade, ser também alcançado por outros institutos, que conduzem igualmente, ou à extinção das participações detidas pelos sócios minoritários contra a vontade destes, como acontece com a dissolução (artigo
141º, n.º 1, al. b)), com a 'liquidação por transmissão global' (artigo 148º), com a amortização (artigos 233º e 347º) e ainda com a fusão (artigos 94º e seguintes) e a cisão (artigos 118º e seguintes), ou, mesmo, à transmissão forçada das mesmas participações, como sucede com a transformação (artigos 130º e seguintes, todos do CSC). E é ainda reconhecido à maioria dos sócios o poder de alterar unilateral e radicalmente o núcleo essencial da posição de socialidade dos sócios minoritários, celebrando contratos de subordinação, previstos nos artigos 494º e seguintes do CSC. Esta equivalência funcional não apaga – é certo – uma distinção entre estas situações e o regime em apreço, quanto ao respectivo alcance, pois enquanto neste caso o direito de aquisição integra o regime típico e geral da organização de toda e qualquer sociedade comercial que tenha outra sociedade como sócio, as referidas possibilidades constituem elementos eventuais e particulares da organização de uma concreta sociedade comercial. Antes, porém, de apurar se estes traços do regime do artigo 490º, n.º 3 do CSC relevam para o juízo sobre a sua conformidade material com a Constituição, importa analisar, como se disse, a questão da eventual inconstitucionalidade orgânica daquela norma. B) Questão de inconstitucionalidade orgânica A norma cuja constitucionalidade é questionada consta de um diploma – o Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro – que foi aprovado pelo Governo, nos termos da alínea a) do n.º 1 do
(então) artigo 201.º da Constituição. Pode, pois, perguntar-se se a norma do artigo 490º, n.º 3 desse Código padece de inconstitucionalidade orgânica por, constando de um decreto-lei aprovado sem autorização legislativa, tratar matéria de direitos, liberdades e garantias, em violação do disposto no (também então) artigo 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República. Existe já uma vasta jurisprudência constitucional em matéria, quer de direito de propriedade, quer de reserva de lei em relação a 'direitos fundamentais de natureza análoga' a direitos, liberdades e garantias. Sem que o Tribunal Constitucional se tenha já alguma vez pronunciado sobre a constitucionalidade do artigo 490º do CSC, alguma desta jurisprudência afigura-se, porém, relevante para a questão sub judicio. Quanto ao objecto da garantia constitucional da propriedade privada, conforme se decidiu no Acórdão n.º 257/92, de 13 de Julho (in Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], 22º vol., 1992, p. 753), o artigo 62º, n.º 1, da Constituição garante, 'tanto o direito de propriedade – a propriedade stricto sensu e qualquer outro direito patrimonial – como o direito à propriedade, ou direito de acesso a uma propriedade'. Resulta, assim, claro que o direito de propriedade a que se refere aquele artigo da Constituição não abrange apenas a proprietas rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os 'direitos sociais' – incluindo, portanto, partes sociais como as acções ou as quotas de sociedades
(na doutrina, no sentido de que o conceito constitucional de propriedade tem de ser equivalente a património, cfr. Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998, pp. 548 e 559). Relevante para o caso dos autos é, ainda, apurar em que medida a garantia constitucional da propriedade privada reveste a natureza de direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. A este propósito salientou-se no recente Acórdão n.º 187/01 (in DR, II série, de
26 de Junho de 2001):
'O Tribunal Constitucional tem, na verdade, salientado repetidamente, já desde
1984, que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa medida, nos termos do artigo 17º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18º e estando o respectivo regime sujeito a reserva de lei parlamentar (v., na jurisprudência mais antiga, por exemplo, os Acórdãos n.ºs
1/84, 14/84 e 404/87, in ATC, respectivamente vol. 2.º, pp. 173 e ss. e pp. 339 e ss. e vol. 10º, pp. 391 e ss., sobre a extinção da colonia; e vejam-se também os Acórdãos n.ºs 257/92, 188/91 e 431/94, respectivamente in ATC, vol. 22º, pp.
741 e ss.; vol. 19.º, pp. 267 e ss. e vol. 28.º, pp. 7 e ss.). Importa, porém, discernir, dentro do direito de propriedade privada, o núcleo ou conjunto de faculdades que revestem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, uma vez que nem todas elas se podem considerar como tal (para a exclusão dos direitos de urbanizar, lotear e edificar, v. os Acórdãos n.ºs
329/99 e 517/99, publicados na II série do DR, respectivamente de 20 de Julho e
11 de Novembro de 1999). Desse núcleo, dessa dimensão que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte (como se diz, por exemplo, nos arestos por
último citados e no também já referido Acórdão n.º 431/94; v. ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 267/95, in ATC, vol. 31º, pp. 305 e ss.) o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública – e, ainda assim, tão só com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, n.ºs 1 e 2, da Constituição). Trata-se, aqui, justamente de um aspecto verdadeiramente significativo do direito de propriedade e determinante da sua caracterização também como garantia constitucional – a garantia contra a privação –, autonomizada no n.º 2 do artigo 62º (assim, com referência à remição da colonia, o Acórdão n.º 404/87). Para além disso, a outras dimensões do direito de propriedade, 'essenciais à realização do Homem como pessoa' (nestes termos, o citado Acórdão n.º 329/99), poderá também, eventualmente, ser reconhecida natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando do seu regime.' No mesmo sentido, pronunciaram-se ainda os Acórdãos n.º 341/86, de 10 de Dezembro, n.º 115/88, de 1 de Junho, e n.º 131/88, de 8 de Junho (in ATC, respectivamente, 8º vol., 1986, p. 519; 11º vol., 1988, p. 895; 11º vol., 1988, p. 472). Inversamente, pode também considerar-se como assente, em face da jurisprudência do Tribunal Constitucional sumariada, que nem todas as faculdades abrangidas pelo direito de propriedade privada integram o núcleo do mesmo que reveste natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Assim, no citado Acórdão n.º 329/99 escreveu-se:
'(...) apesar de o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nem toda a legislação que lhe diga respeito se inscreve na reserva parlamentar atinente a esses direitos, liberdades e garantias. Desta reserva fazem apenas parte as normas relativas à dimensão do direito de propriedade que tiver essa natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Como, embora a outro propósito, se sublinhou no acórdão n.º 373/91 (publicado no Diário da República, I série-A, de 7 de Novembro de
1991), cabem na reserva legislativa parlamentar ‘as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos ‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias’.' Este Tribunal tem, por outro lado, afirmado que a reserva de lei parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias abrange 'tudo o que seja matéria legislativa, e não apenas as restrições do direito em causa', e que abrange,
'não apenas os direitos, liberdades e garantias do título II da parte I da Constituição (direitos, liberdades e garantias de carácter pessoal; direitos, liberdades e garantias de participação política; e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores), como também os direitos fundamentais de natureza análoga (...), ao menos, naquela dimensão em que tais direitos assumem a natureza de uma verdadeira garantia' (Acórdão n.º 128/00 (publicado no Diário da República [DR], II série, de 25 de Outubro de 2000), ou que contendam com o seu núcleo essencial. Assim, no Acórdão n.º 373/91 (publicado no DR, I série-A, de 6 de Novembro de 1991, e seguido depois, por exemplo, no Acórdão n.º 161/99, in DR, II série, de 16 de Fevereiro de 2000), escreveu-se, em relação à reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República quanto aos direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, (nos termos do artigo 17º e do, à data, artigo 168º, n.ºs 1, alínea b) da Constituição):
'Nela se compreendem os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores – Constituição da República, artigo 17º e capítulo III do título II da sua parte I
–, já se discutindo se, também, os «direitos fundamentais de natureza análoga», a que alude aquele artigo 17º
(...) Neste ponto já a doutrina não se mostra consensual.
(...) Ora, entende o Tribunal que, de qualquer modo, cabem necessariamente na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por força das disposições combinadas dos artigos 17º e 168º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República, as intervenções legislativas que contendam com o núcleo essencial dos
‘direitos análogos’, por aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actuação legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias.' Importa, pois, averiguar se a norma em análise contende com essa dimensão, ou núcleo, essencial do direito de propriedade, ou com uma particular garantia contra a ablação daquele direito, aos quais se reconhece natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, para o efeito de a aprovação dessa norma dever ser considerada incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República. Se a norma em questão for qualificada como configurando uma 'desapropriação' ou de 'expropriação' (decerto, por utilidade particular) – por o exercício da faculdade nela prevista redundar num efeito 'ablativo' da propriedade –, dificilmente se negará que o instituto ora em causa toca em cheio a 'garantia' constitucional da propriedade privada. Não se estaria, nessa óptica, ao cabo e ao resto, perante situação estruturalmente diferente da que ocorre na
'expropriação por utilidade pública' ou da que ocorria na remição da colonia. E, na verdade, há quem – como já se referiu – afirme que o artigo 490º, n.º 3, do CSC dá azo a 'um verdadeiro acto de expropriação por utilidade particular'. Nesta perspectiva, pôr-se-ia esta norma em causa na sua constitucionalidade orgânica, por tratar daquele núcleo essencial, ou daquela específica garantia, do direito de propriedade, aos quais é de reconhecer natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, e que estão, consequentemente, integrados na reserva relativa de competência legislativa parlamentar. Afigura-se, porém, que esta primeira perspectiva – porventura mais imediata e directa – da normação sub judicio não pode, sem mais, ser acolhida. A situação ou o regime legal em apreço requerem, na verdade, para a sua qualificação – e, desde logo, também para efeitos de constitucionalidade orgânica –, uma abordagem mais ampla e diversa do que a precedente, que atenda à especial natureza do direito em questão. Na verdade, é bom de ver que só a partir da caracterização do objecto sobre que incidem os efeitos previstos na norma em questão – a participação social –, e da avaliação desses efeitos no quadro do regime da organização societária, se pode concluir algo sobre a qualificação da matéria sobre a qual essa norma incide como relativa ao direito de propriedade, em aspectos ou dimensões constitucionais em que este há-de ser considerado um 'direito fundamental de natureza análoga' aos direitos, liberdades e garantias (matéria, portanto, reservada à competência legislativa parlamentar). Nesta perspectiva, tudo está em que, se a 'garantia' constitucional da propriedade abrange, não apenas o direito de 'propriedade', no sentido técnico e preciso do conceito, mas qualquer direito patrimonial, há-de, porém, ser em função de cada tipo de direito dessa natureza que se pode apreciar o significado e o alcance, do ponto de vista daquela 'garantia', de uma determinada regulamentação que diga respeito ao mesmo direito. O que vale por dizer – limitando a questão ao que ora importa – que há-de ser também em função do tipo de direito de que são titulares os accionistas minoritários, perante os restantes sócios, que caberá averiguar se uma norma que implica uma qualquer consequência relativa a esse direito, diz afinal respeito
àquele conteúdo essencial, ou àquela garantia, 'de natureza análoga' aos direitos, liberdades e garantias. Pois bem: sem dúvida que, tal como outros direitos patrimoniais, as 'partes sociais' são abrangidas pela tutela constitucional da propriedade privada. Mas esta circunstância não significa – como decorre do que acaba de ser referido – que o correspondente direito, ou os correspondentes direitos, sejam vistos à imagem e semelhança da proprietas rerum, para avaliar do significado dos
'condicionamentos' ou 'restrições' de que sejam objecto. Esta avaliação tem de ser feita tendo em conta a especificidade da titularidade desse tipo de direitos, e a partir da sua natureza própria, considerando, designadamente, a específica natureza de direitos corporativos, isto é, de direitos incindivelmente ligados (desde a sua génese até à sua extinção, passando por diversas vicissitudes que os podem atingir) a uma organização ou ente social. Retomando aqui considerações já atrás referidas, e salientadas na doutrina, a titularidade da participação social não pode ser configurada simplesmente como uma propriedade real, mas apenas como uma propriedade corporativa, no sentido de propriedade necessariamente mediatizada pela organização própria da corporação social ou pela interposição do ente social.
É certo que o sócio dispõe, nas relações externas, erga omnes, de um poder de livre disposição das respectivas acções ou quotas, em homenagem ao seu interesse individual, gozando de faculdades jurídico-reais de fruição e transmissão, bem como de defesa, restituição e indemnização em caso de violação ou usurpação. E é também certo que, nessas relações externas – ou seja, sem que tal seja decorra de circunstâncias da vida interna da corporação –, a garantia contra a ablação do direito de propriedade integra o núcleo constitucionalmente protegido com natureza análoga a direitos, liberdades e garantias. É, aqui, pois, visível uma proximidade entre o direito social e o direito real de propriedade. Esta proximidade tende, a desaparecer, no entanto, logo que se considera o plano das relações internas, em que o poder de disposição sobre a participação social, terá, como se viu, necessariamente o conteúdo e o alcance que resultam do próprio quadro instituinte da corporação social, que está logo na sua génese. A corporação é organizada, no caso das chamadas sociedades de capitais, a partir do princípio da maioria (artigos 250º, n.º 3, e 386º, n.º 1, do CSC), o que implica que o exercício e o conteúdo das faculdades inerentes à propriedade corporativa de acções ou quotas não poderão deixar de se conformar com as concretas vicissitudes emergentes da vontade colectiva maioritariamente formada. Isto é assim, aliás, quer se adopte uma perspectiva institucionalista, quer uma perspectiva tendencialmente contratualista da corporação societária. No primeiro sentido, salientar-se-á a importância que adquire a concepção da sociedade comercial como entidade ou instituição, expressa na possibilidade, quer de alteração das regras de vida da entidade sem, ou contra, a vontade de sujeitos que foram partes no pacto social, mediante o jogo do processo deliberativo institucional, quer da subsistência da sociedade sem a presença de alguns de tais sujeitos, afectando, pois, por circunstâncias provenientes da vida interna da sociedade, o valor e, mesmo a titularidade das participações – cfr. salientando este aspecto, Vasco Lobo Xavier, 'Sociedade (Contrato de)', in Enciclopédia Polis, vol. 5, 1987, p. 920. Numa perspectiva contratualista, dir-se-á que o sócio adere ao quadro legal-estatutário instituinte da corporação social, e do seu funcionamento, quando adquire a qualidade de sócio, limitando logo esse quadro ab intro os direitos sobre as participações sociais relativas à sociedade. Não sendo o sentido em que a participação social pode ser considerada como propriedade, à luz do texto constitucional, o mesmo de uma 'propriedade real', cuja conformação está confiada, em primeira mão, à vontade do respectivo titular, mas o de uma 'propriedade corporativa', cujos conteúdo e exercício se encontram necessariamente balizados pelas regras legais e estatutárias próprias da organização corporativa, cumpre notar que é da própria essência ou natureza daquela propriedade um congénito estado de vulnerabilidade face a vicissitudes do funcionamento da sociedade. Entendidas as coisas deste modo, torna-se claro que o instituto previsto no artigo 490º, n.º 3, do CSC não deve ser concebido como uma medida
'expropriativa'. O que está em causa é, antes, a conformação pelo legislador do próprio alcance da titularidade de participações (da 'propriedade corporativa'), no plano das relações privadas entre os accionistas – ou seja, algo que, afinal, ainda respeita àquele mesmo conteúdo e natureza, e deve ser visto no 'interior' dele. O regime do artigo 490º, n.º 3, do CSC, constitui, pois, um elemento conformador do alcance da titularidade sobre participações sociais – um elemento definidor dos limites dessa titularidade –, que, por outro lado, apenas toca a configuração qualitativa da específica 'propriedade' em questão, e não o seu lado de valor patrimonial. Ora, será que estamos aqui perante matéria relativa àquele núcleo essencial, ou
àquela garantia, do direito de propriedade que são de considerar análogos aos direitos, liberdades e garantias, e aos quais é aplicável o regime destes? Entende-se que é de responder negativamente a esta questão. Na verdade – e independentemente da sua exacta qualificação –, entende-se que não se verificam em relação à matéria sobre que incide a norma em causa as mesmas razões materiais que justificam a analogia, já que os efeitos da regulamentação nela contida sobre a titularidade de participações sociais constituem mero reflexo do regime interno da corporação – isto é, da resolução de questões atinentes ao controlo sobre a sociedade, relativas à organização e à formação de grupos de sociedades. O direito afectado é, como se disse, um direito patrimonial cujo conteúdo é necessariamente mediatizado pela organização e pelas decisões internas da corporação, contendo o artigo 490º, n.º 3, do CSC, a previsão de um instituto definidor do regime da titularidade de participações sociais – e não que a suprime como algo que exista independentemente dele –, salvaguardando, porém, o seu valor para o titular. Ora, da mesma forma que a regulamentação de outras vicissitudes internas à vida societária, que podem igualmente afectar qualitativamente a titularidade, ou, mesmo, afectar substancialmente o valor, de partes sociais – pense-se nos regimes da amortização de quotas, da cisão, da fusão, da transformação ou da dissolução de sociedades – não estão sujeitas a reserva de lei parlamentar, entende-se que também a previsão desse instituto o não está. Não é despiciendo, na verdade, notar a equivalência funcional entre o regime da aquisição forçada previsto no artigo 490º, n.º 3, do CSC e estes outros institutos jurídico-societários que conduzem à transmissão ou extinção compulsivas de participações detidas por sócios minoritários, surgindo, nesta perspectiva, o instituto previsto na norma em causa, como um meio de 'conversão patrimonial' (como refere Menezes Cordeiro) decidida internamente, 'bastante comum no direito das sociedades comerciais'. A diferença salientada em relação a outros institutos não contraria o denominador comum de fundo, consistente na existência de outras situações de transmissão ou extinção forçada de participações sociais, enquanto reflexo de vicissitudes internas à sociedade, provocadas por vontade exclusiva do sócio maioritário, com um correspectivo estado de sujeição dos sócios minoritários ou individuais. Aliás, se o exercício dessas restantes situações de transmissão ou extinção compulsiva de participações sociais dos sócios minoritários pode - ao contrário do que sucede com o exercício do direito potestativo previsto no artigo 490º, n.º 3, do CSC - ser moldado, em maior ou menor grau, pelo pacto social, já a maioria de 90% do capital social exigida pela norma impugnada é sempre superior
às maiorias, ainda que supletivas, previstas, nos artigos 270º e 464º do CSC, para a dissolução das sociedades anónimas e por quotas, podendo a amortização forçada de quotas e de acções ter lugar, quando prevista em cláusula estatutária, por mera deliberação maioritária (cfr. artigos 233º e 347º do CSC). E tão larga disparidade de participação no capital da sociedade como a exigida no artigo 490º, n.º 3 do CSC, que permitiria a realização destas outras operações, torna a possibilidade de aquisição potestativa, no quadro de uma decisão de transição de uma estrutura empresarial unissocietária para uma estrutura plurissocietária (como acontece com a formação de grupos por domínio total), numa regulamentação verdadeiramente residual (considerando as limitadas possibilidades de influência e controlo, em regra, de participações inferiores a
10%, perante outro sócio que detém mais de 90% do capital), e que é, de qualquer modo, como se disse, mero reflexo do regime interno da corporação. Pode concluir-se, pois, pela inexistência de inconstitucionalidade orgânica na norma em causa, não integrando a sua aprovação da norma em causa a competência legislativa reservada à Assembleia da República. C) Questões de inconstitucionalidade material Alcançada a conclusão referida, pode passar-se a apreciar os fundamentos de inconstitucionalidade material defendidos pelo requerente. Neste contexto, não pode, porém, ignorar-se que também o Supremo Tribunal de Justiça, através do seu Acórdão de 2 de Outubro de 1997 (proferido no Processo n.º 695/96 e publicado in BMJ, n.º 470, pp. 619 e ss.) se pronunciou já no sentido da inconstitucionalidade material, recusando a aplicação da norma do artigo 490º, n.º 3, do CSC. Segundo esse aresto,
'Permite o artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais que o sócio numa sociedade comercial que disponha de 90% do capital desta se volva em sociedade dominante e possa, só por isso, impor a sua vontade de aquisição das participações dos restantes sócios mediante uma contrapartida em dinheiro ou nas suas próprias quotas, acções ou obrigações. Pode, em suma, pela mera expressão da sua grandeza económica eliminar os outros sócios por terem débil expressão no capital social. Só por ser minoritário pode, segundo aquele normativo, ser eliminado e corrido da sociedade. Só por isso ele perde esse direito de propriedade das participações, ele perde o direito a poder transmitir em vida ou por morte esse mesmo direito e também lhe
é retirado, sem qualquer justificação, o direito a contribuir para a formação do preço correspectivo, segundo as leis do mercado que regem o direito à iniciativa privada.' Assim, o artigo 490º do CSC violaria os artigos 62º, n.º 1, 61º, n.º 1, 13º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República, 'pois que não salvaguarda na sua previsão e imposição a adequação, o equilíbrio e o justo no sacrifício do sócio minoritário' – esta norma 'não se modela[ria] no princípio da concordância prática e despreza[ria] em absoluto o princípio da igualdade perante a lei e o princípio da proporcionalidade'. O aresto que tem vindo a ser citado afasta ainda argumentos que poderiam ser aduzidos em contrário do entendimento nele consagrado. Quanto ao argumento segundo o qual, à semelhança do que acontece com o mecanismo previsto no artigo
490º do CSC, também nas expropriações por utilidade pública o preço não é livre, diz-se que '[t]al já não é assim hoje, pelo menos em absoluto, face ao que se dispõe nos artigos 22º e seguintes do Código das Expropriações, Decreto-Lei n.º
438/91, e artigo 62º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e na expropriação por utilidade pública o interesse dominante surge sempre dirigido à realização de um fim maior que é o da satisfação de necessidades, e não de um, mas do todo social'. Entendeu também o Supremo Tribunal de Justiça que a 'lógica de grupo' não deve justificar, nem justifica que só a expressão do capital social salvaguarde os valores constitucionais atrás mencionados. Por último, quanto ao argumento que poderia ser extraído da dissolução da empresa, afirma-se nesse Acórdão que 'na liquidação da sociedade, os sócios, maioritários e minoritários, seriam todos tratados do mesmo modo, inclusive quanto ao valor ou
«preço das suas quotas», pois estão todos do mesmo lado. Este não seria encontrado muito fora dos princípios da economia de mercado. Na concentração, pelo contrário, o artigo 490º do Código das Sociedades Comerciais põe os sócios maioritários contra os sócios minoritários. Na concentração, pelo contrário, aquele valor é imposto e encontrado à margem dessas regras e por uma forma que de todo escapa ao controlo do seu titular. Este é absolutamente marginalizado na operação e na formação do preço do seu sacrifício. É constitucionalmente injusto.' Ora, sendo certo que, no presente caso, apenas está em questão o n.º 3 do artigo
490º – e não as normas contidas noutros n.ºs deste artigo, como a(s) relativa(s)
à fixação (e controlo) da contrapartida –, na análise da questão da constitucionalidade material dessa norma haverá igualmente que considerar a argumentação expendida neste aresto. Importa, justamente, antes de prosseguir, definir quais são os parâmetros constitucionais a considerar no tratamento da conformidade material da norma em apreço com a Constituição. O requerente considera que a norma do artigo 490º, n.º 3, do CSC, viola os artigos 18º, n.º 2, e 62º, n.º 1, da Constituição – ou seja, que se está aí perante uma 'restrição' a este direito – enquanto direito análogo aos 'direitos, liberdades e garantias – que é 'desproporcionada'. É isto mesmo que o Primeiro Ministro, em definitivo, contesta, colocando-se, assim, no mesmo plano do pedido. A verdade, porém, é que esta argumentação e contra-argumentação dão como pressuposto ou como assente um ponto prévio, a saber, que a norma do artigo
490º, n.º 3, do CSC afecta um aspecto, e representará mesmo uma 'restrição' da garantia constitucional da propriedade privada, consignada no artigo 62º da Constituição, que reveste natureza análoga aos 'direitos, liberdades e garantias'. Na verdade só assim fará sentido, no caso, invocar, em ligação com esse, o artigo 18º, n.º 2, da Constituição (ex vi, explícita ou implicitamente, do artigo 17º). Quer isto dizer que o primeiro parâmetro constitucional a considerar será justamente o do artigo 62º da Constituição da República. Ou seja: que a primeira questão a que importa responder – e cuja resposta decorre já do que se disse no supra, no ponto B) – é novamente a de saber como se perfila a norma do artigo
490º, n.º 3, do CSC perante esse preceito constitucional e a 'garantia' nele incorporada (toca-a ou 'afecta-a' mesmo? E em que termos: como uma verdeira
'restrição', e uma restrição 'ablativa' ab extra?) Embora o Provedor de Justiça não tenha invocado a violação do princípio da igualdade por parte da norma impugnada, o Primeiro Ministro sustenta, ainda,
'que, na nossa ordem constitucional improcederia qualquer hipotética alegação favorável à violação do artigo 13º da Constituição, por parte da norma sindicada' (cfr. artigo 39º da resposta). Ora, o facto de o Provedor de Justiça não ter solicitado o confronto da norma impugnada com o princípio constitucional da igualdade não impede o Tribunal de o fazer, em face do disposto no artigo
51º, n.º 5, da LTC. Assim sendo, no caso dos autos, o facto de na própria resposta do órgão autor da norma se abordar o problema da conformidade da mesma com o princípio da igualdade, e de a generalidade da doutrina que se pronunciou sobre o problema analisar a norma à luz desse outro parâmetro constitucional, é motivo suficientemente justificativo para se utilizar a faculdade prevista no citado artigo 51º, n.º 5, da LTC, e se proceder também à análise da norma impugnada na perspectiva do princípio da igualdade. O que acaba de ser dito vale também para a análise da norma do artigo 490º, n.º
3, do CSC à luz do princípio da proporcionalidade, independentemente do que se conclua no tocante à sua relação com a garantia constitucional do direito de propriedade, análoga aos 'direitos, liberdades e garantias'. Na verdade, ainda que se conclua que essa garantia não chega a ser posta em causa pelo preceito questionado, sempre se poderá perguntar se ele respeita as exigências do princípio da proporcionalidade decorrentes, já não especificamente do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, mas do princípio geral do Estado de direito, consignado no artigo 2º da mesma. Como se disse, o Tribunal Constitucional já por várias vezes se pronunciou sobre o objecto da garantia constitucional da propriedade privada e sobre a qualificação desta garantia como 'direito fundamental de natureza análoga' a direitos, liberdades e garantias. Para a questão de constitucionalidade material, importa considerar, ainda, a jurisprudência deste Tribunal sobre a admissibilidade de limitações à garantia do direito de propriedade – sobre a questão de saber se e em que medida, para além da expropriação e requisição por utilidade pública (expressamente previstas no artigo 62º, n.º 2, da Constituição), são legítimas à luz da Constituição outras formas de privação da propriedade (ou situações em que possam produzir-se efeitos idênticos ou semelhantes aos decorrentes da expropriação por utilidade pública, embora dela diferenciadas). Este ponto foi versado em abundante jurisprudência sobre remição da colonia, e que, com uma primeira expressão ainda na Comissão Constitucional (Parecer nº 32/92, em Pareceres da Comissão Constitucional, 21º vol., e Acórdãos nºs 460 e outros, em apêndice ao DR,
23.VIII.83), se iniciou com o Acórdão nº 14/84 (ATC, 2.º vol., p. 339 ss.). Logo neste último aresto disse-se, quanto ao ponto que ora importa (p. 344 ss.):
'Toda a argumentação (...) arranca da exclusiva e isolada consideração do artigo
62º da Constituição, sobre a garantia da propriedade privada e do entendimento de que ele só admite a perda forçada da propriedade em caso de expropriação por utilidade pública, com o sentido restrito que este conceito assume no direito infraconstitucional. Trata-se porém de uma leitura insustentável do texto constitucional. Esse mesmo preceito constitucional afirma que o direito de propriedade é garantido ‘nos termos da Constituição’. Esta cláusula remete, directamente, entre outras coisas, para as normas do capítulo constitucional sobre a organização económica. E é nessa sede precisamente que se encontra o artigo 101º, que na sua primitiva redacção impunha a extinção da colonia e que na redacção actual proíbe pura e simplesmente a sua existência. Qualquer que seja a leitura que haja de fazer-se do artigo 62º da Constituição, quando se trate da propriedade em geral, a verdade é que, quando se trate de propriedade de meios de produção considerados nessa qualidade, o artigo 62º abre-se às normas pertinentes da ‘constituição económica’, entre as quais cumpre salientar, (...) em particular, os artigos 101º e 96º do capítulo referente à reforma agrária. Quando se trate de matérias especificamente sediadas na âmbito da constituição económica, o artigo 62º não é obstáculo a restrições do direito de propriedade, se nessa sede existir norma constitucional que dê cobertura suficiente a tais limitações. Ora é precisamente o que sucede no caso (...).' Por sua vez, no Acórdão n.º 404/87 (in ATC, 10º vol., 1987, pp. 401-402) entendeu-se e escreveu-se o seguinte:
'Relembrar-se-á, em todo o caso, no tocante à pretensa violação da garantia do direito de propriedade [pela remição da colonia], que a mesma é afastada quando se considere tal garantia, consignada no artigo 62º da Constituição, não isoladamente, mas no contexto global da lei fundamental. Na verdade, se essa garantia exclui em princípio, atenta a sua mesma natureza e o seu núcleo essencial (cf., de resto, artigo 62º, n.º 2), a possibilidade de um particular obter coactivamente de outro a alienação em seu favor de coisa pertencente ao primeiro (e a uma hipótese deste tipo, há-de reconhecer-se, se reconduz o direito de remição em causa), ela não pode, todavia, deixar de compaginar-se com os princípios constitucionais dos quais decorrem mais ou menos extensos limites, ou a possibilidade de mais ou menos extensas restrições, ao seu conteúdo e alcance – e tais princípios dão suficiente cobertura à restrição ou limite em que se traduz o direito de remição da terra concedida ao colono-rendeiro. Por outras palavras: o direito de propriedade só se acha garantido, como se diz no próprio artigo 62º, n.º 1, «nos termos da Constituição», mas estes termos autorizam aquela restrição ou limite a esse direito. Que é assim resulta logo do sentido geral das normas e princípios constitucionais relativos à reforma agrária, apontando eles, como apontam, para um profunda «transformação das estruturas fundiárias» e para a transferência progressiva da posse útil da terra para aqueles que a trabalham [alínea a) do artigo 96º, agora do artigo 96º, n.º 1], e resulta depois, especificamente, do artigo 101º, n.º 2, que na sua redacção primitiva determinou a extinção do regime de colonia e na actual redacção o proíbe [cfr., respectivamente, artigos
93º, n.º 1, alínea b), e 96º, n.º 2, da Constituição, na sua versão actual]. Nesta disposição, atenta aquela ideia genérica inspiradora da reforma agrária e a natureza das situações constituídas através do contrato de colonia, não pode, com efeito, deixar de ver-se, no mínimo, uma base constitucional bastante para o legislador conceder aos colonos-rendeiros o direito de porem termo ao contrato de colonia através da remição da propriedade da terra onde implantaram benfeitorias, o que vale dizer, a «expropriarem» a terra em seu proveito. Que aí se verifica uma excepcional restrição do direito de propriedade do senhorio é inquestionável; só que se trata, atento o que fica dito, de uma restrição que, porque «prevista na Constituição», cabe no elenco daquelas que a mesma consente, nos termos do seu artigo 18º, n.º 2' (itálico e parêntesis rectos acrescentados). Na jurisprudência que se vem citando – e para além de alguma diferença de matiz, na abordagem do problema, levada a cabo num e noutro acórdão –, este Tribunal, mais ou menos explicitamente, analisou numa dupla perspectiva a conformidade material do regime da remição da colonia com a Constituição: primeiro, procurando saber se esse instituto configurava uma medida ablatória do direito de propriedade que punha em causa um segmento deste, com natureza análoga aos direitos liberdades e garantias; e depois, concluindo-se pela afirmativa, procurando saber se uma tal restrição do direito de propriedade encontrava suporte na lei fundamental. Assentou-se, assim, em que a remição da colonia se revestia, efectivamente, daquele alcance – e, embora sem afirmações peremptórias quanto à sua qualificação (cfr. os Acórdãos n.º 194/89, de 9 de Fevereiro, e n.º
327/92, de 8 de Outubro, in ATC, 13º vol., 1989, p. 713, e 23º vol., 1992, pp.
400-402, respectivamente), chegou-se mesmo a admitir que ela pudesse 'ser considerad[a], do ponto de vista constitucional, (...) como expropriação' (cfr. Acórdão n.º 327/92, citado), naturalmente 'por utilidade particular'. Não obstante isso, julgou esse acto ablativo constitucionalmente admissível, por estar coberto por uma disposição expressa da lei fundamental. O Tribunal Constitucional tem, pois, afastado a ideia de que os únicos actos
'ablativos' do direito de propriedade (os quais naturalmente configuram a restrição máxima que esse direito pode sofrer) consentidos pela Constituição sejam os previstos no artigo 62º, nº 2, desta última. Pode haver outros, inclusive no interesse de privados: ponto é que encontrem cobertura ou justificação constitucional. No mesmo sentido, pode, ainda, invocar-se o Acórdão n.º 205/2000 (publicado no DR, II série, de 30 de Outubro de 2000 ), no qual não se julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1340º do Código Civil. Nele se afirmou que 'o artigo
62.º, n.º 2, da Constituição não pode, portanto, ser visto como um obstáculo ao funcionamento do mecanismo da acessão, ainda que nele se verifique a extinção forçada do direito de propriedade'. E isto, para além de a acessão também não dever, a nenhum outro título, ser 'qualificada como uma restrição do direito de propriedade, subsumível ao n.º 2 do artigo 18.º e, portanto, aos requisitos de admissibilidade aí previstos, nomeadamente ao princípio da autorização constitucional expressa.' A propósito justamente da perda da titularidade de participações sociais, importa ainda referir o Acórdão n.º 391/02 (ainda inédito), pelo qual se não considerou inconstitucional a norma do artigo 108º, n.º 2, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que prevê a alienação de participações sociais no quadro da gestão controlada, como medida de recuperação da empresa, mesmo contra a vontade dos seus titulares. Afirmou-se aí que a Constituição admite limitações ao direito à propriedade para além do caso de expropriação por utilidade pública, e que, no caso, seria antes a não concretização da alienação, impedindo a recuperação económica da empresa, que
'implicaria uma afectação do próprio direito de propriedade dos titulares das acções (no caso, o seu valor económico).' Outro aspecto da jurisprudência constitucional relevante para o caso dos autos é o da relação a estabelecer entre a garantia constitucional de propriedade privada e a liberdade de iniciativa económica, previsto no artigo 61º da Constituição. Com efeito, o requerente entende que 'a liberdade económica privada surge como o valor constitucionalmente relevante em que o legislador se terá suportado para estabelecer o direito à aquisição forçada de participações sociais nos casos em que a sociedade dominante detenha mais de 90% da sociedade dominada' (cfr. artigo 22º do pedido). Por seu turno, na resposta do Primeiro Ministro afirma-se que 'não podem deixar de merecer concordância algumas das premissas utilizadas pelo requerente para fundamentar o seu pedido', designadamente a premissa segundo a qual o reforço dos grupos societários constitui um valor constitucionalmente relevante para operar a restrição do direito de propriedade privada (cfr. artigo 17º, alínea c), da resposta). Ora, este Tribunal tem entendido, por um lado, que a Constituição estabelece 'uma clara distinção entre o direito de propriedade e a iniciativa privada', e, por outro lado, que 'os limites constitucionais estabelecidos para a iniciativa económica privada implicam uma autorização constitucional para as necessárias restrições ao uso e fruição da propriedade' (cfr. Acórdão n.º 257/92, citado; sobre o direito de iniciativa económica privada, cfr., ainda, o Acórdão n.º 328/94, de 13 de Abril, in ATC, 27º vol., 1994, p. 975, e o já citado Acórdão n.º 187/01). Finalmente, o caso dos autos convoca ainda a jurisprudência do Tribunal relativa aos princípios da igualdade e da proporcionalidade. O requerente invoca este último a propósito dos limites às restrições dos direitos, liberdades e garantias a que se refere o artigo 18º, n.º 2, da Constituição. O seu pressuposto é o de que o artigo 490º, n.º 3, do CSC configura uma restrição inadmissível, porque violadora da exigência de proporcionalidade prevista na citada norma constitucional, de um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias. A verdade, porém, é que, ainda que este pressuposto não se tenha por verificado quanto a estar em causa um direito análogo, não deixam, só por isso, de ser constitucionalmente relevantes as exigências do princípio de proporcionalidade no caso dos autos. A este propósito, entendeu-se no citado Acórdão n.º 187/01:
'Aliás, também quem considere que, embora o direito de propriedade, na dimensão em questão, não beneficie do regime dos direitos, liberdades e garantias, configurando-se como mero direito económico, as suas limitações se encontram ainda – designadamente, por aplicação do princípio geral do Estado de Direito – vinculadas a exigências de proporcionalidade, não dispensará a apreciação das normas em questão à luz deste princípio.' No plano da jurisprudência relevante, por incidir sobre casos semelhantes ao dos autos, importa referir a decisão da Comissão Europeia dos Direitos do Homem de
12 de Outubro de 1982 (caso Lars Bramelid e Anne-Marie Malmström contra a Suécia; decisão publicada in Documentação e Direito Comparado, n.º 27/28, 1986, pp. 360 e ss.). Neste caso, dois cidadãos suecos questionaram a conformidade do artigo 9º da lei sueca sobre as sociedades anónimas (Aktiebolagslagen), entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1977, com, designadamente, o artigo 1º do Protocolo Adicional n.º 1, concluído em Paris em 20 de Março de 1952, à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, concluída em Roma em 4 de Novembro de 1950 (aprovada para ratificação através da Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro). De acordo com a citada norma da lei sueca sobre as sociedades anónimas, quando uma sociedade possui, por si mesma ou através de uma filial, mais de 90% das acções e dos votos numa outra sociedade, aquela tem o direito de adquirir os 10% das acções restantes desta. Os accionistas cujas acções sejam susceptíveis de serem adquiridas nos termos expostos têm também o direito a que essas acções sejam adquiridas. Por ua vez, o artigo 1º do Protocolo Adicional n.º 1 dispõe o seguinte:
'Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais de direito internacional. As condições precedentes entendem-se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas.' Os referidos cidadãos suecos, cujas participações numa sociedade anónima foram adquiridas nos termos previstos no referido artigo 9º da Aktiebolagslagen, entenderam que a referida norma violava o artigo 1º do Protocolo Adicional n.º
1, uma vez que, contrariamente ao nele disposto, haviam sido vítimas de uma expropriação desprovida de utilidade pública e desacompanhada de justa indemnização. A Comissão Europeia dos Direitos do Homem entendeu, no entanto, que muito embora a argumentação dos requerentes se tivesse fundamentado na segunda frase do primeiro parágrafo do citado artigo 1º, relativo à expropriação por utilidade pública, a verdade é que a legislação sueca por eles posta em crise é de uma natureza diversa. Segundo a Comissão, tal legislação constitui
'a expressão e a aplicação de uma política geral em matéria de regulamentação das sociedades comerciais e diz respeito, antes de mais, às relações dos accionistas entre eles. Significa isto que, ao adoptar uma legislação deste tipo, o legislador tem por objectivo geral alcançar uma regulamentação favorável aos interesses que entende serem mais dignos de protecção, o que nada tem a ver com a noção de «utilidade pública», tal como esta é utilizada no domínio da expropriação'. Com base nesta argumentação, a Comissão concluiu que 'a segunda frase do primeiro parágrafo do artigo 1º do Protocolo adicional não se aplica à pretensão dos requerentes'. Nesta sequência, a Comissão passou a examinar se a obrigação que impendia sobre os requerentes de cederem as suas acções à sociedade que detinha a maioria do capital social, nos termos previstos na lei sueca, violava o seu direito ao respeito dos seus bens, tal como garantido pela primeira frase do parágrafo primeiro do artigo 1º do Protocolo adicional. A este propósito, entendeu a Comissão o seguinte:
'Em todos os Estados partes da Convenção, as leis que regem as relações de direito privado entre particulares, incluindo as pessoas colectivas, contêm disposições que determinam, quanto aos bens, os efeitos de tais relações jurídicas e, em certos casos, obrigam uma pessoa a ceder a outra um bem de que era proprietária. Podem ser citados, a título de exemplos, as partilhas sucessórias, designadamente em matéria agrícola, as liquidações de certos regimes matrimoniais e sobretudo as vendas de bens em execução forçada'. Entendendo não existir também qualquer violação da primeira frase do parágrafo primeiro do artigo 1º do Protocolo adicional, a Comissão, com base nas considerações precedentes, julgou a pretensão dos requerentes manifestamente mal fundada, no sentido do artigo 27º, n.º 2, da Convenção (cfr. Documentação e Direito Comparado, n.º 27/28, 1986, p. 373). Também o Tribunal Constitucional alemão teve já ocasião de se pronunciar, por várias vezes, sobre casos semelhantes ao dos autos. Fê-lo, pela primeira vez, no acórdão de 7 de Agosto de 1962 (caso Feldmühle, in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, vol. 14, Tübingen, 1963, pp. 263 e ss.) no qual estava em causa a conformidade do § 15 da lei relativa às transformações das sociedades (Umwandlungsgesetz), então vigente, com o princípio da igualdade e com a garantia constitucional da propriedade da Lei Fundamental alemã. Esse § 15 previa a fusão por incorporação de uma sociedade dominada na dominante, desde que esta, detendo pelo menos 90% do capital social daquela, assim o decidisse, e o princípio da igualdade e a garantia constitucional da propriedade encontram-se consagados na Lei Fundamental alemã em termos que não divergem significativamente, no que ora importa, dos da Constituição da República. Ora o Tribunal entendeu não se verificar qualquer inconstitucionalidade do § 15 da Umwandlungsgesetz, uma vez que o regime previsto em tal disposição não configura nenhuma expropriação, que apenas pode ser levada a cabo pelo Estado ou por uma entidade pública, mas uma simples reconversão das posições patrimoniais dos accionistas decididas por maioria. Entendeu, também, esse Tribunal que o §
15 da Umwandlungsgesetz não violava a garantia constitucional da propriedade consagrada no artigo 14, § 1, da Lei Fundamental, uma vez que o direito de propriedade implicado nas acções das sociedades anónimas não fica incondicionalmente protegido contra deliberações da maioria, como acontece com os casos em que esta delibera a dissolução da sociedade. Paralelamente, o direito das sociedades concede às minorias uma protecção eficaz contra os abusos das maiorias, através dos fundamentos da nulidade e da anulação das acções. Por outro lado, decidiu-se que a norma em questão não era inconstitucional em face do princípio da igualdade, uma vez que este não impede que maioria e minoria possam ser tratadas de maneira diferente pelo direito das sociedades comerciais. Segundo o acórdão mencionado,
'uma diferenciação seria apenas inadmissível aí onde os respectivos interesses fossem à partida valorados diversamente: ora esse limite não foi aqui ultrapassado (...). Não se pode assim afirmar que o legislador conformou arbitrariamente a relação entre maioria e minoria – a regulamentação resulta antes como consequência da sua concepção fundamental do próprio sistema societário' (cfr. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, cit., p. 285). Por sua vez, a admissibilidade constitucional da 'integração', prevista na lei alemã das sociedades por acções quando a sociedade dominante detenha mais de 95º do capital social de outra – com o efeito, nos termos do § 320a de todas as acções que não forem detidas pela sociedade dominante serem transmitidas para esta –, foi afirmada mais recentemente, na decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão de 27 de Abril de 1999 (in Entscheidungen..., cit., vol. 100, pp.
289 e ss. esp. 303 – caso DAT/ Altana), por confronto com a garantia constitucional da propriedade e com o princípio da igualdade. Como se afirma nesta decisão, citando a referida decisão de 1962, a garantia constitucional da propriedade
'não exclui a integração de uma sociedade por acções num grupo contra a vontade de uma minoria accionista, apesar de esta sofrer com ela uma redução significativa ou mesmo uma perda da sua posição jurídica, incorporada na acção. Antes o legislador pode, por razões ponderosas de bem comum, considerar adequado que se façam ceder os interesses dos accionistas minoritários na conservação da substância do seu património perante os interesses num livre desenvolvimento da iniciativa empresarial no grupo de sociedades' E à mesma conclusão de inexistência de inconstitucionalidade se chegou, mais recentemente, na decisão de 23 de Agosto de 2000 (publicada em Die Aktiengesellschaft, 2001, p. 42 – caso Moto Meter), para uma hipótese de liquidação da sociedade por transmissão global do seu património, afirmando-se que 'o artigo 14, n.º 1 da Lei Fundamental não exclui em princípio o afastamento, contra a sua vontade, de uma minoria accionista de uma sociedade por acções'. Salientou-se, a esse propósito, que
'o aspecto de direito de domínio da propriedade accionista está já, de todo o modo, limitado para os pequenos accionistas, pois estes não podem, em regra, exercer influência relevante sobre a política empresarial. A propriedade accionista possibilita-lhes, através do investimento de capital, uma esfera de liberdade individual em termos financeiros (...). A maior liquidez das acções permite aos pequenos accionistas não se vincularem com o seu capital a longo prazo, e, se for o caso, investi-lo de novo livremente (...). Ora, é certo que, sendo os accionistas minoritários afastados da sociedade por acções através da
‘liquidação por transmissão’, isto afecta a componente de domínio e de gestão que se liga a toda a socialidade, a qual, no entanto, é tão-só limitadamente relevante nos accionistas minoritários. Porém, em primeiro plano fica a componente patrimonial do investimento, nomeadamente a decisão de escolha do seu investimento pelo titular da acção (...) Esta desvantagem deve ser ponderada, à luz do artigo 14º da Lei Fundamental, com a possível lesão, proveniente dos accionistas minoritários, dos interesses juridicamente protegidos do accionista dominante. Não é constitucionalmente censurável se a desvantagem dos accionistas minoritários quanto ao seu investimento de capital não for especialmente valorada, à luz deste direito, desde que esses accionistas recebam uma compensação correspondente ao valor das suas acções.' Estas considerações, e a jurisprudência constitucional referida, não deixaram, aliás, de ser postas em relevo, recentemente, também pelo legislador alemão, para, na exposição de motivos do anteprojecto que serviu de base à discussão da referida 'Lei sobre ofertas públicas de títulos e aquisições de empresas' – a qual veio a entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2002 –, afastar obstáculos constitucionais à introdução desse novo instituto jurídico na ordem jurídica alemã, próximo do 'squeeze-out' (assim, pp. 75 a 77 dessa exposição, Ministério Federal das Finanças, Julho de 2000). Na posse dos elementos jurisprudenciais acabados de referir, pode passar-se a tratar da compatibilidade da norma em causa com o artigo 62º da Constituição da República. A primeira questão a dilucidar, também na perspectiva da constitucionalidade material, é, como se disse supra, a de saber como se posta a norma do artigo
490º, n.º 3, do CSC face à garantia constitucional da propriedade privada, enquanto garantia análoga aos 'direitos, liberdades e garantias'. E isto porque, como também se viu, da jurisprudência do Tribunal Constitucional não se retira – ao contrário – que todas as dimensões ou todos os aspectos do 'direito de propriedade' integrem tal 'garantia', entendida ela com a mencionada natureza. Ora, o conceito de 'expropriação', relevante para efeitos dessa garantia, contida no artigo 62º da Constituição – um conceito 'constitucional' de expropriação, se se quiser – há-de ser um conceito relativo, dependente também, na sua extensão, do tipo de direito que estiver em causa. E se, como se disse, a norma do artigo 490º, n.º 3 do CSC prevê consequências jurídicas que ainda respeitam – porque o conformam – ao mesmo conteúdo e natureza dos direitos dos titulares de participações sociais, estas devem ser vistas no 'interior' dele. Não se está, assim, como se viu, perante uma consequência atinente à garantia do direito de propriedade considerada análoga aos direitos desse direito, nem, verdadeiramente, perante uma 'expropriação', vinda de fora (isto é, sem ligação ao próprio conteúdo e natureza do direito), que importasse assim uma 'restrição' ab extra da 'garantia' da 'não desapropriação', Como já se disse, a participação social deve ser configurada como objecto de uma propriedade necessariamente mediatizada pela organização própria da corporação social – no plano das relações internas, o poder de disposição terá o conteúdo e o alcance que resultam do próprio quadro legal-estatutário instituinte da corporação social que está na sua génese. E este quadro poderá implicar, perante determinadas vicissitudes da vida da sociedade – ou, no limite, perante a extinção desta –, não só compressões como, mesmo, consequências para a titularidade das participações, que para aquela possam resultar. Em sentido semelhante, diz-se, aliás, na doutrina, que 'afirmar a essencialidade do direito
à manutenção da posição social não significa declarar a existência absoluta do direito do sócio a manter essa qualidade', antes 'significa dizer que o sócio só pode ser afastado da sociedade contra a sua vontade quando a lei ou o contrato social especificamente o autorizem' (João Labareda, Das acções das sociedades anónimas, cit., pp. 202-203). Entendidas as coisas deste modo, também não deve o instituto previsto no artigo
490º, n.º 3, do CSC ser concebido como uma medida 'expropriativa', no sentido preciso do conceito. Para que se pudesse falar de verdadeira expropriação, seria, antes necessário que sobre a propriedade, configurada como realidade a se, incidisse, provinda do exterior, uma medida ablatória. Ora, o que está em causa é antes – repete-se – a conformação pelo legislador do próprio alcance da
'propriedade corporativa' no plano das relações privadas entre os accionistas. mas o regime do artigo 490º, n.º 3, do CSC – um instituto que integra e define o regime da titularidade de participações em sociedades que integrem grupos, e não um instituto que suprime a propriedade como algo que exista independentemente dele. Não se afigura, pois, correcto caracterizar o regime da aquisição forçada previsto no artigo 490º, n.º 3, do CSC como 'expropriação', pelo menos no sentido em que tal categoria adquire um relevo constitucional específico. O entendimento exposto pode ainda ser confirmado, também para efeitos da análise da conformidade material do artigo 490º, n.º 3, com a Constituição, à luz do contexto sistemático e normativo em que ocorre a consagração pelo legislador do instituto ou da norma impugnada. Por um lado, e como foi atrás dito, verifica-se uma equivalência funcional entre o regime da aquisição forçada previsto no artigo 490º, n.º 3, do CSC e outros institutos jurídico-societários que conduzem à transmissão ou extinção compulsivas de participações detidas por sócios minoritários, tendo em comum 'a legitimação pelo sistema jurídico-societário vigente de situações de transmissão ou extinção forçada de participações sociais por vontade exclusiva do sócio maioritário e o correspectivo estado de sujeição dos sócios minoritários ou individuais' (J. Engrácia Antunes, Da aquisição..., cit., pp. 88-89). Aliás, como se disse, a maioria de 90% do capital social exigida pela norma impugnada é sempre superior às maiorias, ainda que supletivas, previstas, nos artigos 270º e
464º do CSC, para a dissolução das sociedades anónimas e por quotas, e a amortização forçada de quotas e de acções pode ter lugar, quando prevista em cláusula estatutária, por mera deliberação maioritária – cfr. artigos 233º e
347º do CSC (e veja-se também, no artigo 148º, n.º 1, desde diploma, a possibilidade de 'liquidação por transmissão global' determinada pelo contrato de sociedade ou por uma deliberação dos sócios, segundo a qual todo o património, activo e passivo, da sociedade dissolvida será transmitido para algum ou alguns sócios, inteirando-se os outros a dinheiro). Ora, como se salienta também na doutrina, o domínio protectivo da norma do artigo 62º, n.º 1, da Constituição da República jamais poderá ser estendido, no caso da propriedade corporativa em sociedades comerciais, 'até aí onde se reconheçam aos respectivos titulares faculdades ou direitos que descaracterizem de tal forma o próprio bem concreto objecto da tutela a ponto de colocarem em causa as próprias características ‘naturais’ da entidade corporativa que a gerou' (J. Engrácia Antunes, ob. cit., pp. 104-114 e 150-151). Por outro lado, o instituto da aquisição forçada de partes ou participações sociais consagrado pela norma impugnada não foi introduzido de forma isolada no sistema jurídico-societário português. Tal instituto foi consagrado pelo legislador no contexto da previsão dos grupos de sociedades como novo modelo de organização empresarial, e, mesmo, como uma decorrência quase necessária do regime legal dos grupos de sociedades. Conforme preceitua o artigo 491º do CSC, aos grupos de sociedades constituídos por domínio total 'aplicam-se as disposições dos artigos 501º a 504º e as que por força destes forem aplicáveis'. Significa isto que a constituição de uma relação de domínio total, inicial ou superveniente, implica, para a sociedade dominante, a responsabilidade para com os credores da sociedade dominada, a responsabilidade por perdas desta última, o direito de dar instruções e ainda a adopção, pelos membros do seu órgão de administração e relativamente ao grupo, da diligência exigida por lei quanto à administração da própria sociedade dominante. Em face deste regime, o instituto da aquisição forçada previsto no artigo 490º, n.º 3, ora em questão, visa precisamente favorecer a consolidação do domínio total e a não ocorrência de situações em que uma sociedade, havendo atingido uma participação muito elevada no capital de outra, possa evitar, não obstante, a aplicação do regime previsto nos artigos 501º a 504º, através do expediente de prescindir de deter a titularidade de 100% do capital social dessa outra sociedade. Logra-se esse efeito porque o legislador, permanecendo no campo das relações privadas entre os sócios, atribuiu ao sócio maioritário um direito potestativo de adquirir as participações minoritárias, mas, simultaneamente, reconheceu, através do artigo 490º, n.º 5, do CSC, a cada sócio minoritário, o direito potestativo de forçar a aquisição das suas participações pela sociedade dominante (neste sentido, Maria da Graça Trigo refere mesmo que o objectivo do regime do artigo 490º é o de evitar a fraude à lei – cfr. Grupos de sociedades, cit., p. 77).
É este, pois, um outro conjunto de considerações que confirmam a natureza específica, que logo a qualificação das participações ou partes sociais como
'propriedade corporativa' indicia, do instituto do artigo 490º, n.º 3, do CSC, e que justificam o afastamento de uma qualificação 'expropriativa' para a sua consequência jurídica.
À mesma conclusão, de que se não está perante uma verdadeira expropriação, se chegará, aliás, noutra perspectiva, considerando existir uma colisão ou conflito
(pelo menos potencial) entre, por um lado, a sociedade que detém mais de 90% do capital social de outra, e pretende formar um grupo por domínio total, e os restantes sócios, para salientar que a possibilidade de 'conversão' dos direitos destes em dinheiro – e a consequente alteração da substância patrimonial concreta – é, apenas, resultado de uma forma de solução deste conflito, tal como, por exemplo, a que se verifica entre os proprietários de duas coisas em casos de 'comunhão forçada' ou de acessão. Frisar-se-ia, assim – sempre nesta perspectiva e prosseguindo um tal paralelo –, o que, ainda recentemente, no citado Acórdão 205/2000, este Tribunal salientou, justamente sobre a acessão:
'A acessão, da mesma maneira que a usucapião ou as servidões legais (para dar apenas os exemplos mais importantes), resulta de disposições genéricas do ordenamento, destinadas, como já se salientou, a conseguir a harmonização de direitos potencialmente conflituantes. A sua causa ou razão determinante não é o interesse do sujeito em favor do qual se verifica a aquisição do direito, o qual não é objecto de qualquer avaliação concreta, mas sim o interesse abstracto da ordem jurídica na prevenção ou resolução daquele conflito. A vantagem criada para o sujeito adquirente constitui uma simples consequência da arbitragem de interesses privados contrapostos, podendo mesmo não existir, dentro da interpretação do Acórdão recorrido, se ao autor da incorporação não convier a aquisição que a lei lhe impõe. Se a acessão não é determinada pela necessidade de proporcionar certa vantagem ao sujeito adquirente, mediante o aproveitamento dos bens em que incide a acessão, nenhum sentido faz a afirmação de que ela constitui uma expropriação por utilidade particular. A acessão e a expropriação são figuras colocadas em planos diferentes, sujeitas a pressupostos e condições totalmente distintos. O artigo 62.º, n.º 2, da Constituição não pode, portanto, ser visto como um obstáculo ao funcionamento do mecanismo da acessão, ainda que nele se verifique a extinção forçada do direito de propriedade.
7. Além de não consubstanciar um acto de expropriação, no sentido e para os efeitos do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, a acessão também não deve, a nenhum outro título, ser qualificada como uma restrição do direito de propriedade, subsumível ao n.º 2 do artigo 18.º e, portanto, aos requisitos de admissibilidade aí previstos, nomeadamente ao princípio da autorização constitucional expressa.' E concluir-se-ia que, tal como em muitas outras situações reguladas pelo direito civil – pense-se, por exemplo, na 'usucapião', nas situações de 'comunhão forçada' e na 'acessão' (e, sobre a qualificação da situação que se verifica nesta, à luz do artigo 62º da Constituição, cfr., novamente, o citado Acórdão n.º 205/2000)–, não estaremos perante 'expropriações', stricto sensu, mas perante 'sujeições inerentes aos status de proprietário, que delimitam o seu direito', sujeições essas que 'não devem ser valoradas de modo isolado, mas apenas no seu conjunto' (A. Menezes Cordeiro, Da constitucionalidade das aquisições tendentes ao domínio total, cit., p. 28, que sailenta que o status de sócio, tal como o próprio status de proprietário, pode dar lugar a situações ablativas). Seja como for, pode concluir-se – em suma – que o instituto em causa não comprime, a partir do exterior, a 'propriedade corporativa' em que se traduz o direito sobre participações sociais, mas antes surge como um aspecto da sua conformação interna pelo legislador. A norma do artigo 490º, n.º 3, do CSC não
é, assim, regulativa - no sentido de regulamentação de uma realidade
'antecedente' – da 'propriedade corporativa' do sócio das sociedades de capital, mas constitutiva dessa mesma propriedade. Ora, tanto bastará para assegurar a compatibilidade da norma do artigo 490º, n.º
3, do Código das Sociedades Comerciais com o artigo 62º da Constituição da República, sem que seja mesmo necessário encontrar para ela um fundamento
(específico) noutro princípio ou norma constitucional – como sucede no caso da
'expropriação por utilidade pública' ou da 'remição' da colonia. A situação é, agora, estruturalmente diversa dessas outras – e isso porque nela não se verifica uma 'autonomização' do tipo de 'propriedade' ou direito patrimonial em causa (a 'propriedade corporativa') relativamente ao acto ablativo a que o direito está sujeito (ou ao invés). O instituto da aquisição forçada do artigo 490º, nº 3, do CSC surge antes – como tem vindo a dizer-se – como uma 'sujeição' inerente ao estatuto da 'propriedade corporativa', tal como (acabou de referir-se) a acessão e a usucapião, por exemplo, constituem 'sujeições' próprias do estatuto da proprietas rerum. Tais
'sujeições', apresentando-se como inerentes ao tipo de 'propriedade' em que se integram e conformativas do respectivo estatuto, não podem ser havidas como constitucionalmente inadmissíveis – sendo, aliás, que a lei assegura o pagamento de uma 'justa indemnização' (fixada, se for caso disso, pelo juiz), quando a faculdade prevista em tal norma for accionada. Sublinhe-se, aliás – quanto a outro princípio constitucional que, na situação, vem especialmente ao caso: o princípio da liberdade de 'iniciativa económica privada' –, que a norma em apreço, não só seguramente o não afecta, como pode mesmo dizer-se que se inscreve no quadro da sua efectivação e concretização. Está-se perante uma norma que procede à conformação da 'propriedade corporativa' numa zona de articulação entre o direito de propriedade e a liberdade de iniciativa económica privada, e que se insere no quadro de uma política legislativa – certamente admissível – visando a introdução no nosso ordenamento jurídico da figura do 'grupo de sociedades' ou da 'empresa plurissocietária', como novo modelo de organização empresarial. Uma expressão, 'indirecta' embora, da previsão ou fundamento constitucional de tal conformação – embora não indispensável – sempre se poderia, pois, encontrar no direito à livre iniciativa económica privada (artigo 61º, nº 1, Constituição da República), já que é a
'dinâmica' mesma de tal direito, e dos institutos em que ele se concretiza e exprime, que é susceptível de 'justificar' – ou mesmo de requerer – um regime como o do artigo 490º, n.º 3, do CSC (relevância que, aliás, o próprio requerimento inicial aponta, no art. 22º). Sobre a ligação deste às necessidades da dinâmica societária é, aliás, bem clara a fundamentação da proposta pela qual o legislador introduziu um tal regime no ordenamento alemão (Exposição de motivos, cit., p. 75). Afirma-se, assim, que
'do sector económico foi feita valer a necessidade de uma tal regulamentação' pelas seguintes razões:
'Antes de mais, notou-se que a permanência de minorias muito pequenas em sociedades por acções não tem sentido económico. A participação de accionistas minoritários representaria um significativo – e custoso – esforço em matéria de forma, resultante da observância de normas imperativas protectoras das minorias. E este esforço manter-se-ia idêntico, ainda que a par do accionista maioritário só existisse um resto de socialidades dispersas. A prática mostraria que as participações mais pequenas são muitas vezes usadas abusivamente, para perturbar o accionista maioritário na condução da empresa e para o motivar a concessões financeiras. Tal perturbação poderia designadamente ocorrer pela via da anulação de deliberações sociais. Por isso, frequentemente não se conseguiria de todo – ou só com muitas delongas – impor reformas estruturais necessárias contra a vontade de accionistas individuais. Por último, existiriam casos em que um certo número de acções não poderia ser adquirido porque não se consegue descobrir os respectivos titulares, e/ou estes mesmos não tinham conhecimento de acções que haviam herdado.' Acompanhem-se ou não individualmente todas estas considerações, não pode, porém, ignorar-se a ligação do instituto em causa ao direito à livre iniciativa económica privada, previsto no artigo 61º, n.º 1, da Constituição da República. Numa observação final, poderá, ainda, dizer-se, relativamente às dimensões do artigo 62º da Constituição da República que avultam relativamente à definição desta espécie de elementos 'conformativos' de cada tipo de 'propriedade', que, de entre as várias nele discerníveis, a que sobressai como atingida não é (ou não será tanto) a 'garantístico-subjectiva' (expressa, máxima e nuclearmente, no direito à não desapropriação), mas, antes, a de 'garantia de instituto' – dimensão, esta outra, que redunda na imposição, dirigida ao legislador e a todos os poderes constituídos, de assegurarem a existência da 'propriedade privada', nas suas múltiplas manifestações, enquanto elemento necessariamente integrante e determinante da ordem jurídica infraconstitucional, e na imposição, dirigida especificamente ao legislador ordinário, no sentido de assegurar que a conformação da 'propriedade' se há-de fazer 'em obediência aos valores que [a Constituição] ela própria inscreve 'nos [seus] termos’' (cfr., neste preciso sentido, Maria Lúcia Amaral, ob. cit., p. 559; e cfr., ainda, Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, 4ª ed., Coimbra, 2000, pp.
391-392, e Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, tomo IV, 2ª ed.,
1993, pp. 69 e 467). Só que, nesta outra dimensão, agora posta em relevo, o artigo 62º Constituição da República – se bem que não desligando o legislador do dever de respeito pelos valores constitucionais a que genericamente se acha vinculado – deixa-lhe, de todo o modo, uma larguíssima margem de escolha e definição de soluções. Ora, não se vê em que a norma do artigo 490º, n.º 3, do CSC ultrapasse essa margem – ou seja, em que ponha em causa qualquer desses (outros) valores e princípios constitucionais.
É o que se passará a mostrar a seguir, algo mais detidamente, quanto aos princípios da igualdade e da proporcionalidade. Embora no pedido do requerente não seja suscitada a questão da conformidade da norma do artigo 490º, n.º 3, do CSC, com o princípio do artigo 13º da Constituição da República, essa questão foi já abordada na doutrina, e sobre ela se pronunciou também o Supremo Tribunal de Justiça, no seu citado aresto de 2 de Outubro de 1997. Acresce que o Primeiro Ministro, na sua resposta, sustenta a conformidade da norma impugnada com o princípio constitucional da igualdade. Como se disse, estas são circunstâncias que mais justificam que se proceda também à análise dela norma a esta outra luz. O princípio da igualdade não consiste, como tem sido sucessivamente reiterado pela jurisprudência do Tribunal, em proibir ao legislador que faça distinções, mas em proibir diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes
(Acórdão nº 44/84, in ATC, 3º vol., p. 133; Acórdão n.º 39/88, in ATC, 11º vol., pp. 233 e ss.; Acórdão n.º 325/92, in ATC, 23º, pp. 369 e ss.; Acórdão n.º
210/93, in ATC, 24º vol., pp. 549 e ss.; Acórdão n.º 786/96, ATC, 34º vol., p.
41; Acórdão n.º 302/97, in ATC, 36º vol., pp. 793 e ss.; Acórdão n.º 12/99, in ATC, 42º vol., p. 99; Acórdão n.º 683/99, in DR, II Série, de 3 de Fevereiro de
2000). Deste modo, ao impor ao legislador que trate igualmente aquilo que é igual e desigualmente o que é desigual, esse princípio pressupõe uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. A perspectiva a partir da qual se vai proceder à comparação de situações e, consequentemente, a justificação do tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Tais perspectiva e justificação têm de apresentar-se como razoáveis e, nessa medida, constitucionalmente adequadas. No caso dos autos, as situações que devem ser comparadas, à luz do princípio constitucional da igualdade, são a da sociedade que detém 90% do capital de outra sociedade – à qual é atribuída, por essa razão, o direito potestativo de adquirir os restantes 10% aos demais sócios –, e a destes últimos, que assim se veêm colocados num estado de sujeição quanto à transmissão das respectivas participações sociais. Posta a questão nestes termos, não parece, no entanto, que se possa invocar um tratamento desigual arbitrário entre o sócio maioritário e os minoritários, pois, desde logo, trata-se aqui de sócios de sociedades de capitais (sociedades anónimas e por quotas) – quer dizer de sociedades cujo funcionamento interno assenta no princípio da maioria definido em função e na proporção das fracções detidas no capital social. O funcionamento de tais sociedades assenta numa 'lógica legitimadora plutocrático-censitária', que perspectiva o relacionamento entre os sócios, não
à luz de uma 'pressuposta igualdade ‘pessoal’ e ‘absoluta’', mas de uma
'inevitável (des)igualdade de natureza ‘patrimonial’ e ‘relativa’ aferida por critérios capitalísticos que têm por referência, em última análise, a
‘propriedade corporativa’', sem que tal seja, de alguma forma, constitucionalmente censurável (v. J. Engrácia Antunes, ob. cit., p. 154). Aliás, a norma do artigo 490º, n.º 5, confere ao accionista minoritário o poder simétrico do concedido ao maioritário pela norma do artigo 490º, n.º 3, do CSC. Não pode, assim, falar-se de arbítrio no tratamento da posição dos sócios minoritários, mas apenas de tratamento diferenciado fundado no próprio modelo legal das sociedades de capitais. A questão não está, na verdade, em tratar os sócios no mesmo plano sempre e em quaisquer circunstâncias, pois é de ter em atenção a respectiva participação social quando a medida de direitos e deveres dos sócios é aferida em vista dela
– do que se trata é de tratar os sócios sem discriminação 'em tudo o que não pressuponha essa destrinça' (assim, João Labareda, ob. cit., pp. 215-216). Em função do que acaba de ser dito poderia, quando muito, falar-se de violação do princípio da igualdade se a lei permitisse à sociedade dominante fazer uso da faculdade prevista no n.º 3 do artigo 490º em relação a apenas um, ou alguns, dos sócios minoritários. Mas essa é justamente uma solução que a interpretação sistemática do preceito não permite, em homenagem ao princípio da igualdade de tratamento consagrado, por exemplo, no artigo 321º do CSC e no artigo 197º do Código dos Valores Mobiliários. Interessa, ainda, confrontar a norma em causa com o princípio da proporcionalidade. Conforme se escreveu no Acórdão n.º 634/93 (in ATC, 26º vol., p. 211):
'o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).' Todavia, previamente à apreciação da norma impugnada à luz destes critérios, torna-se necessário fazer uma precisão sobre o alcance do princípio da proporcionalidade como parâmetro de controlo jurisdicional da actividade legislativa, em contraposição com o alcance do mesmo princípio quando encarado como parâmetro da actividade administrativa. A este propósito, afirmou-se, com amplos desenvolvimentos, no citado Acórdão n.º
187/01, o seguinte:
'Não pode contestar-se que o princípio da proporcionalidade, mesmo que originariamente relevante sobretudo no domínio do controlo da actividade administrativa, se aplica igualmente ao legislador. Dir-se-á mesmo – como o comprova a própria jurisprudência deste Tribunal – que o princípio da proporcionalidade cobra no controlo da actividade do legislador um dos seus significados mais importantes. Isto não tolhe, porém, que as exigências decorrentes do princípio se configurem de forma diversa para a actividade administrativa e legislativa – que, portanto, o princípio, e a sua prática aplicação jurisdicional, tenham um alcance diverso para o Estado-Administrador e para o Estado-Legislador. Assim, enquanto a administração está vinculada à prossecução de finalidades estabelecidas, o legislador pode determinar, dentro do quadro constitucional, a finalidade visada com uma determinada medida. Por outro lado, é sabido que a determinação da relação entre uma determinada medida, ou as suas alternativas, e o grau de consecução de um determinado objectivo envolve, por vezes, avaliações complexas, no próprio plano empírico (social e económico). É de tal avaliação complexa que pode, porém, depender a resposta à questão de saber se uma medida é adequada a determinada finalidade. E também a ponderação suposta pela exigibilidade ou necessidade pode não dispensar essa avaliação. Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma 'prerrogativa de avaliação', como que um 'crédito de confiança', na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos quadros constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação (com o referido 'crédito de confiança' – falando de um 'Vertrauensvorsprung', v. Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte. Staatsrecht II, 14ª ed., Heidelberg,
1998, n.ºs 282 e 287) afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer. Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do legislador. Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso concreto, e à luz do princípio da proporcionalidade, ou existe violação – e a decisão deve ser de inconstitucionalidade – ou não existe – e a norma é constitucionalmente conforme. Tal objecção, segundo a qual apenas poderia existir 'uma resposta certa' do legislador, conduz a eliminar a liberdade de conformação legislativa, por lhe escapar o essencial: a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa.' As considerações que precedem afiguram-se especialmente relevantes no caso dos autos, na medida em que não está, aqui, em causa a avaliação da proporcionalidade do regime contido na norma impugnada, enquanto 'restritivo' de um direito de propriedade existente à margem dessa norma. Como atrás se referiu, o artigo 490º, n.º 3, do CSC, é uma norma conformadora e não meramente
'restritiva' da 'propriedade corporativa' dos sócios das sociedades de capitais. Deste modo, não faz, desde logo, sentido perguntar se o objectivo visado pela norma impugnada podia ser prosseguido através de outro meio menos lesivo, porque a pergunta traria implícito um pressuposto que não pode admitir-se: qual fosse o de que a norma imporia uma restrição propriamente dita à propriedade corporativa. O sentido da pergunta posta pelas exigências do princípio da proporcionalidade teria, pois, no caso dos autos, de ser outro: poderia o legislador prosseguir o objectivo de favorecer a formação de grupos de sociedades constituídos por relações de domínio total conformando a propriedade corporativa dos sócios das sociedade por quotas e anónimas de outro modo, sem envolver uma transmissão forçada de participações sociais?
É claro que a simples viabilidade desta pergunta assenta, porém, na possibilidade de demonstrar um erro particularmente grave e manifesto na escolha do meio que o legislador escolheu para atingir o fim por si visado. Não pode, porém, deixar de concluir-se que a existência de tal erro particularmente grave e manifesto está por demonstrar. Designadamente, não se logra tal demonstração no pedido, quando, a propósito da análise dos critérios da adequação e da necessidade, se entra em considerações de política legislativa sobre maior ou menor eficácia dos meios ao alcance do legislador para obter o desiderato da formação de grupos de sociedades suficientemente coesos. E tal demonstração também não é conseguida, quando a propósito do requisito da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito, se pretende afastar o contra-argumento segundo o qual o instituto do artigo 490º, n.º 3, do CSC, seria, como a dissolução e a amortização, um sucedâneo da dissolução total da sociedade, com base na consideração segundo a qual na dissolução não se verificariam as vantagens decorrentes da manutenção da personalidade jurídica da sociedade dominada, vantagens, essas, que no caso do mecanismo previsto no artigo 490º, n.º 3, do CSC irão beneficiar apenas a sociedade dominante em detrimento dos sócios minoritários (artigos 52º a 56º do pedido). Como é bom de ver, estas considerações não são já pertinentes no caso da amortização, em que se verifica também a manutenção da personalidade jurídica da sociedade dominada. Por outro lado, a tentativa de afastar o contra-argumento referido não considera, mesmo para o caso da dissolução, a diferença essencial entre a posição do sócio maioritário e a do sócio minoritário: para este último a perda da qualidade de sócio configura uma situação de perda que lhe é também imposta por vontade alheia, enquanto para o primeiro representa um efeito voluntariamente produzido (assim J. Engrácia Antunes, ob. cit., p. 84). Acresce, ainda, não se afigurar correcto afirmar que não existe qualquer nexo normativo necessário entre as soluções contidas nos n.ºs 3 e 5 do artigo 490º do CSC. É que, justamente, a solução prevista no citado n.º 3 não seria adequada e equilibrada na ausência da solução consagrada no n.º 5 do mesmo artigo. Neste ponto, a posição contrária assentará frequentemente numa petição de princípio: porque se parte da inconstitucionalidade do artigo 490º, n.º 3, admite-se que o mecanismo do n.º 5 possa subsistir sem o instituto da aquisição forçada. Simplesmente, o legislador não teria, com toda a probabilidade, adoptado tal mecanismo caso não tivesse adoptado também a solução do referido n.º 3. Por último, não pode deixar de salientar-se que o legislador respeitou os ditames de um outro subprincípio do princípio do Estado de direito, o princípio da tutela da confiança, ao adoptar a norma do artigo 490º, n.º 3, do CSC. Tal respeito é atestado pela norma do artigo 541º do CSC, de acordo com a qual 'o disposto no artigo 490º não é aplicável se a participação de 90% já existia à data da entrada em vigor desta lei'. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 490º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro.
Lisboa, 26 de Novembro de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos e com os fundamentos constantes da declaração de voto junta) Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmº Conselheiro Luis Nunes de Almeida) Maria Fernanda Palma (vencida, no essencial pelas razões expendidas na declaração de voto do Senhor Conselheiro Luís Nunes de Almeida) José Manuel Cardoso da Costa Declaração de voto
Votei vencido, por entender que a norma impugnada – constante do artigo 490º, nº 3, do Código da Sociedades Comerciais – se encontra ferida de inconstitucionalidade orgânica, violando o preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (versão de 1982), que inscreve a matéria atinente aos direitos, liberdades e garantias na esfera da reserva de competência legislativa parlamentar.
Segundo se preceitua no artigo 17º da Constituição, o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se não só aos que se encontram enunciados no título II da Lei Fundamental, mas também «aos direitos fundamentais de natureza análoga». E esse regime dos direitos, liberdades e garantias, igualmente aplicável aos direitos análogos, abrange seguramente, para além do regime material, o regime orgânico que se traduz na inclusão dessa matéria na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Cumpre, assim, apenas determinar em que medida o direito de propriedade, consagrado no artigo 62º da Constituição, assume natureza análoga à dos «direitos, liberdades e garantias», para o efeito de a sua regulamentação jurídica depender de lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada.
Ora, em minha opinião, a dimensão do direito de propriedade que tem natureza análoga à dos «direitos, liberdades e garantias» consiste, precisamente, na garantia de se não ser arbitrariamente privado da sua propriedade – e, ainda assim, tão-só mediante o pagamento de justa indemnização e com base na lei.
Assim sendo, todos os aspectos relacionados com a regulamentação da privação da propriedade, bem como com a forma e os critérios da correspondente indemnização, se inscrevem necessariamente no âmbito daquilo que, no quadro do direito de propriedade, assume verdadeiramente natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias. E isto, tanto no que respeita à proprietas rerum como no que respeita à titulariedade de outros direitos patrimoniais – designadamente, direitos de crédito ou direitos a partes sociais.
Ora, nesta perspectiva, ainda que se considere que a «propriedade corporativa» - entendida, como no acórdão que obteve vencimento, «no sentido de propriedade necessariamente mediatizada pela organização própria da corporação social ou pela interposição do ente social» - apresenta especificidades na sua natureza, no seu conteúdo e no seu regime, a verdade é que se tal pode ser utilizado para justificar que, in casu, não ocorre uma privação arbitrária da propriedade, já não pode, porém, afastar a regra segundo a qual a sua ablação só pode ocorrer em conformidade com o disposto na Constituição, inclusivamente no que se refere à exigência de previsão em lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada. Caso contrário, proceder-se-á a um indevido deslocamento da questão, já que, no direito de propriedade, o que partilha a natureza dos direitos, liberdades e garantias não é a definição das concretas faculdades de contéudo em que ele se pode concretizar ou manifestar, mas a garantia constitucional do não desapossamento arbitrário e sem indemnização.
Não vale, portanto, pretender argumentar com a circunstância de o conteúdo e o exercício da «propriedade corporativa» se encontrarem
«necessariamente balizados pelas regras legais e estatutárias próprias da organização corporativa», sendo «da própria essência ou natureza daquela propriedade um congénito estado de vulnerabilidade face a vicissitudes do funcionamento da sociedade». Por um lado, porque o que está exactamente em causa
é saber se tais vulnerabidades, quando determinem a ablação ou privação da mesma propriedade, não devem encontrar-se previstas em lei parlamentar; e, por outro lado, porque outras vulnerabilidades – como a cisão, a fusão, a transformação ou a dissolução da sociedade – não traduzem uma realidade idêntica à do caso vertente, em que alguém se apropria potestativamente, para seu benefício, de algo que pertencia a outrem.
Na minha visão das coisas, a norma do artigo 490º, nº 3, do Código das Sociedades Comerciais institui «um mecanismo de resolução de um conflito de direitos», «mediante a fixação abstracta de um critério de prevalência» (cfr. Acórdão nº 205/00), sendo certo que «a harmonização, a concordância prática, se faz entre bens jurídicos, implicando normalmente que, em cada caso, haja um interesse que acaba por prevalecer e outro por ser sacrificado» (cfr. Acórdão nº
288/98, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40º vol., pág. 60).
No caso dos autos, as razões invocadas no acórdão – e, muito particularmente, a circunstância de, por um lado, um pleno funcionamento da lógica do grupo económico se não poder frequentemente harmonizar, pelo menos integralmente, com os interesses e direitos societários dos pequenos accionistas, e de, por outro lado, o mecanismo só poder funcionar quando a sociedade dominante detenha mais de 90% da sociedade dominada, tudo associado ao entendimento de que ainda aqui é aplicável o disposto no nº 6 do artigo 490º do Código – levam a concluir pela inexistência de uma privação arbitrária da propriedade.
Mas precisamente a indispensável ponderação de interesses a que se procedeu, reveladora de uma idêntica ponderação e harmonização dos interesses e direitos em conflito por parte do legislador, demonstra inequivocamente que o que se pretendeu foi determinar se a medida ablatória prevista na lei é proporcionada relativamente aos interesses económicos que a determinam. A situação, do ponto de vista da inconstitucionalidade orgânica, seria idêntica se acaso a lei permitisse a operatividade do mesmo mecanismo quando a sociedade dominante detivesse mais de 55% da sociedade dominada, caso em que seguramente se concluiria também pela sua inconstitucionalidade material.
Ou seja: ao definir-se em que casos e condições uma sociedade dominante pode adquirir potestativamente as partes sociais de sócios minoritários da sociedade dominada, o que corresponde a determinar quando e como pode ocorrer uma ablação ou privação da propriedade dessas partes sociais, regulou-se matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, exactamente porque se determinou em que medida um determinado interesse constitucionalmente protegido podia limitar o direito de propriedade, na vertente em que ele é análogo aos direitos liberdades e garantias.
Luís Nunes de Almeida