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Proc. nº 56/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A.. foi pronunciado, por despacho do Tribunal Judicial de Torres Vedras, como autor material de um crime de corrupção passiva para acto lícito previsto e punido pelo artigo 373º, nº 1, do Código Penal. No despacho de pronúncia considerou-se o seguinte:
'(...) O Juízo de indiciação subjacente ao despacho de pronúncia apoia-se nos elementos de prova recolhidos, quer no inquérito quer na instrução, quando se constata que estes são suficientes para gerar a convicção da probabilidade do arguido poder vir a ser condenado em julgamento pela infracção que lhe foi imputada. Na apreciação de tais elementos de prova não entra o princípio 'in dubio pro reo', que só se torna actuante e relevante no momento da decisão final e quando nesta se tem de optar pela absolvição ou pela condenação (cfr. Ac RE de
15/10/01, in BMJ 410, pg. 903), nem se exige a força e solidez da valoração concreta da prova em julgamento, obtida com recurso ao contraditório e ao princípio da imediação, os quais permitem estabelecer com mais rigor a ocorrência dos pressupostos da condenação do arguido, na apreciação de tais elementos de prova não entra o princípio in dubio pro reo' e que 'basta apenas nesta fase processual a formulação do juízo que com a submissão do arguido a julgamento não resulte daí um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto A suficiência indiciária constitui, pois, pressuposto, não da decisão sobre o mérito da causa, mas apenas da decisão de prossecução dos autos para julgamento, que não visa, obviamente, alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas apenas e tão só espelhar os indícios de que os factos foram praticados pelo arguido. In casu dir-se-á que a apreciação crítica da prova produzida na fase do inquérito não foi posta em causa pela prova produzida na fase de instrução. Por conseguinte, considero que se encontram reunidos os indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, pelo que nos termos do artº 308º nº 1 do Código de Processo Penal e considerando a prova indiciária produzida, cumpre decidir'
O arguido interpôs recurso de constitucionalidade do despacho de pronúncia, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas dos artigos 286º, nº 1, 298º, 303º e 308º do Código de Processo Penal, com a interpretação acolhida no despacho de pronúncia.
O recurso não foi admitido.
Deduzida reclamação, ao abrigo dos artigos 76º, nº 4, e 77º da Lei do Tribunal Constitucional, o Acórdão nº 411/2001 deferiu parcialmente a reclamação, ordenando a prolação de despacho que recebesse o recurso de constitucionalidade 'na parte em que o recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 286º, nº 1, 298º, e 308º do Código de Processo Penal'.
2. O recorrente produziu alegações junto do Tribunal Constitucional que concluiu do seguinte modo:
1° - O princípio da presunção de inocência, que vem consagrado no artº 32 nº 2 da Constituição da República Portuguesa, é elevado à garantia de direito fundamental, e constitui um verdadeiro princípio de prova, directamente vinculante para todas as autoridades e com projecção no processo penal em geral.
2° - Neste entendimento, o princípio da presunção de inocência identificado em termos adjectivos como o princípio 'in dubio pro reo', tem incidência na motivação de todas as decisões processuais, sejam elas a abertura do inquérito, o despacho de acusação, a abertura de instrução, o despacho de pronúncia, o julgamento e a prolacção da sentença.
3° - Assim enunciado e com este conteúdo, o princípio da presunção de inocência impõe que, em matéria de apreciação da prova, se decida sempre a favor do arguido, não o sujeitando a julgamento se, logo no decurso da instrução; se concluir pela insuficiência de elementos de prova relativamente à existência dos pressupostos que determinaram a elaboração da acusação.
4° - A lei adjectiva penal criou a fase de instrução para que o juiz tivesse o poder/dever de reexaminar os pressupostos que determinaram a acusação, confrontando-os com os novos elementos de prova trazidos nesta fase processual e apurando se estes elementos de prova alteram aqueles de modo a formular ou não um juízo indiciário de culpabilidade em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
5° - O Recorrente requereu a abertura de instrução e apresentou prova testemunhal e prova documental que pôs em causa as meras suspeitas - que não indícios sobre os quais se alicerçou a acusação contra si formulada, e estava convicto e tinha uma justificada expectativa constitucional de que a sua situação processual seria analisada à luz dos princípios que informam os direitos, liberdades e garantias constitucionais.
6° - Sucede que no Despacho de Pronúncia foi invertido o ónus de prova, presumindo-se a culpa do arguido, quando se refere que 'a apreciação crítica da prova produzida na fase de inquérito não foi posta em causa pela prova produzida na fase de instrução', como se estivéssemos num processo de partes, numa interpretação dos artigos 286° nº 1, 298° e 308° da lei penal adjectiva, que evidencia flagrante desconformidade com os normativos que informam a lei fundamental, e, por via disso, violação do princípio constitucional da presunção de inocência consubstanciado no artigo 32° nº 2 da CRP.
7° - Acresce que a Mma. Juiz de Instrução ao valorar a prova apresentada pelo Recorrente em sede de instrução, em termos de equacionar a prolacção do despacho de pronúncia, pôs em causa a existência de indícios suficientes ao afirmar que
'basta nesta fase processual a formulação do juízo que com a submissão do arguido a julgamento não resulte daí um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto', acrescentando que a fase de instrução 'não visa, obviamente, alcançar a demonstração da realidade dos factos', mas por entender que nesta fase processual não pode nem deve fazer uso do princípio 'in dubio pro reo' que só se torna '... actuante e relevante no momento da decisão final', pronunciou o Recorrente.
8° - A doutrina e jurisprudência apontam claramente no sentido de que, em processo penal, o princípio 'in dubio pro reo' se aplica a todas as fases processuais, pelo que a entender-se o contrário, seriam postergados todos os princípios fundamentais que constituem a consagração das garantias de defesa do arguido enunciados na Lei Fundamental, violando-se desta forma o disposto no nº
2 do artº 32° da Constituição.
9° - Assim, ao interpretar as normas contidas nos artigos 286° nº 1 e 289° e
308°, todos do Código de Processo Penal, no sentido de que, na fase de instrução, o Juiz de Instrução ao valorar a prova em termos de equacionar a prolacção de um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, não pode nem deve fazer uso do princípio 'in dubio pro reo', a Mma Juiz 'a quo' violou normas e princípios constitucionais, nomeadamente aquele que se encontra consagrado no nº
2 do artº 32° da Constituição da República Portuguesa.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
1° - Por força dos princípios constitucionais das garantias de defesa e da presunção de inocência do arguido, o despacho de pronúncia - e a consequente submissão daquele a julgamento - pressupõe a existência de indícios suficientes do facto que lhe vinha imputado, implicando para o juiz de instrução, no momento do encerramento desta fase do processo, a formulação de um juízo de prognose acerca das possibilidades de - com o material probatório coligido - o arguido vir a ser condenado.
2° - Tal 'probabilidade razoável' da condenação não pode ser equiparada à formulação de um mero juízo de manifesta insuficiência ou ostensiva infundamentação da imputação penal feita ao arguido, implicando antes uma mais aprofundada análise ou valoração crítica e racional das provas, coligidas no decurso das fases de inquérito e da instrução, de modo a formular um juízo global - não acerca da 'certeza prática' dos factos imputados ao arguido - mas sobre a consistência lógica e prática das provas globalmente adquiridas no processo, tomando sustentável e plausível a sua suficiência para uma provável condenação em julgamento.
3° - Não se compadece com tais princípios constitucionais o critério normativo, consistente em dever o juiz de instrução não pronunciar o arguido apenas quando tais provas tomem a acusação manifestamente infundada, em termos de a sua submissão a julgamento traduzir um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto.
4° - Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Cumpre decidir.
II Fundamentação
3. O problema de constitucionalidade suscitado é o de saber se é inconstitucional a interpretação das normas que definem a função e finalidades da instrução em processo penal e os requisitos legais do despacho de pronúncia
(artigos 280º, nº 1, 298º e 308º, nº 1, do Código de Processo Penal), no sentido de que a valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia não exige a subordinação ao princípio in dubio pro reo mas somente a 'formulação do juízo que com a submissão do arguido a julgamento não resulte daí um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto'. É, com efeito, esse o problema suscitado pelo recorrente no recurso de constitucionalidade e é essa a dimensão normativa que constitui ratio decidendi da decisão recorrida (cf. fls 370).
4. Não é, obviamente, objecto do presente recurso senão esta questão normativa, não tendo o Tribunal Constitucional poderes para controlar a correcta valoração dos elementos probatórios constantes dos autos pelo Juiz de Instrução.
Mas, por outro lado, também é verdade que o Tribunal Constitucional não tem o mero poder de controlar se afirmações teóricas de um critério pela decisão recorrida se compatibilizam com a Constituição ou se exprimem a doutrina compatível com a Constituição.
Não está, realmente, neste domínio em causa um mero problema de formulação doutrinária, mas necessariamente a possibilidade de a norma (ou interpretação normativa) que fundamentou a decisão conduzir, na valoração da prova, a consequências inaceitáveis segundo os princípios constitucionais.
Ora é esta mesma possibilidade que se divisa no caso sub judicio, na medida em que o Tribunal recorrido rejeita considerar na valoração da prova, na fase da instrução, qualquer ponderação suportada pelo princípio in dubio pro reo, mesmo que adequada às finalidades dessa fase.
Saber se a valoração que se fundamentaria num critério normativo que integrasse o princípio in dubio pro reo, aplicado ao juízo de probabilidade de condenação do arguido, conduziria exactamente ao mesmo resultado a que o Tribunal recorrido chegou é, porém, uma questão a que o Tribunal Constitucional não pode efectivamente responder, pois isso implicaria sindicar a concreta aplicação do Direito. O Tribunal Constitucional não deve, todavia, deixar de se pronunciar sobre a constitucionalidade do referido critério normativo, na medida em que ele suscita um parâmetro de valoração da prova que, naturalmente, pode conduzir a resultados diversos daqueles a que é susceptível de conduzir o critério normativo efectivamente aplicado, afectando, consequentemente, a posição processual do arguido. Com efeito, a consideração do princípio in dubio pro reo condicionará, necessariamente, o próprio resultado da prognose, na medida em que poderá não bastar uma reduzida possibilidade de condenação do arguido para ser pronunciado, nem as probabilidades de absolvição poderão ser superiores às de condenação quando o Tribunal pronuncia. Há, portanto, seguramente, uma afectação das possibilidades de valoração da prova devido à alteração do parâmetro normativo. Tem, assim, pleno cabimento o conhecimento da presente questão como questão de constitucionalidade normativa, como ficou decidido na reclamação.
5. O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre conteúdos normativos idênticos ao das normas agora questionadas, embora geralmente de modo indirecto apenas a propósito da interpretação do conceito de indícios suficientes dos factos que poderão conduzir à responsabilidade criminal dos agentes.
Apesar de não ter concluído pela inconstitucionalidade da irrecorribilidade do despacho de pronúncia, nos casos do artigo 310º do Código de Processo Penal, não deixou o Tribunal Constitucional de reconhecer um direito do arguido de não ser submetido a julgamento no caso de não existirem indícios suficientes, como manifestação do princípio da presunção de inocência (cf. Acórdão nº 226/97, em BMJ nº 465, p. 140 e ss.). Assim, a exacta interpretação do conceito de indícios suficientes e das exigências normativas quanto à fundamentação em que se apoia o despacho de pronúncia é de essencial relevância para a orientação seguida pelo Tribunal Constitucional. Com efeito, a não recorribilidade do despacho de pronúncia que confirma a acusação é compensada no plano das garantias de defesa pela possibilidade prévia de uma clara sujeição a contraditório da prova dos factos carreados para o processo através do inquérito pela acusação e pela consequente possibilidade de o arguido demonstrar ao Tribunal que a acusação é infundamentada. Mas tais possibilidades só se concretizam efectivamente realizando aquele efeito garantístico se o Tribunal, ao decidir sobre a aceitação da acusação no termo da instrução, tiver que fundamentar explicitamente, numa concreta ponderação do valor probatório dos factos, a viabilidade de os mesmos conduzirem à condenação do arguido.
6. Bastará, para a efectivação daquele plano garantístico, a não manifesta infundamentação da acusação para dar conteúdo à suficiência dos indícios e a um juízo de razoável possibilidade de que a acusação proceda no julgamento? Será suficiente invocar a preservação da presunção da inocência no julgamento para que as garantias de defesa sejam plenamente asseguradas na fase instrutória? As mesmas garantias de defesa serão suficientemente respeitadas com a mera possibilidade de o arguido demonstrar que a acusação é manifestamente infundada? Tal colocação da questão não converterá uma concreta presunção de inocência numa presunção meramente teórica da inocência, que na prática não redunda em qualquer posição processual vantajosa para o arguido, mas o coloca ilimitadamente à disposição da acusação, a qual pouco terá de demonstrar para que o julgamento se realize?
A resposta a estas questões impõe uma exigência de fundamentação para o despacho de pronúncia superior ao de um juízo de manifesta não improcedência da acusação, em que a ultrapassagem das dúvidas razoáveis sobre a possibilidade futura de condenação não terá de ser demonstrada. Se o Tribunal que pronunciar não demonstrar que ultrapassou as dúvidas sobre uma efectiva possibilidade de condenação através de um juízo probabilístico apoiado nos factos concretos constantes da acusação, estará a enfraquecer intensamente de conteúdo a garantia processual, suportada pelo contraditório, consistente em poder infirmar a sustentabilidade da acusação e anulará, na prática, a possibilidade de o arguido impedir a sua submissão a julgamento.
A ulterior possibilidade de, no julgamento, se infirmar a acusação e a garantia de respeito pela presunção da inocência nessa última fase do processo não são suficientes para dar conteúdo à garantia de não ser submetido a julgamento em face de uma acusação que provavelmente não conduzirá a uma condenação. É a expressão concreta, nessa fase, da presunção de inocência que impõe uma tal conclusão.
7. Por outro lado, também não obsta à anterior conclusão a perspectiva de que o Juiz no despacho de pronúncia não estaria obrigado a desempenhar um papel diferente do que é conferido ao juiz do julgamento nos termos do artigo 311º do Código de Processo Penal - o de um 'saneamento' do processo e de uma apreciação liminar das acusações 'manifestamente infundadas'.
Com efeito, tal perspectiva não é sequer sufragável em face do Código de Processo Penal português, após a revisão operada pela Lei nº 59/98, de
25 de Agosto, a partir da qual se tornou pelo menos duvidoso que o juiz de julgamento possa rejeitar a acusação por ser manifestamente infundada em todos os casos de mera insuficiência da prova indiciária. Por outro lado, não é equiparável a função do juiz de julgamento, a quem cabe aceitar ou não aceitar a acusação, à do juiz que pronuncia no termo da instrução. A instrução serve exactamente para evitar uma precipitação do processo na fase do julgamento somente com fundamento na acusação; isto é, para permitir ao arguido, em contraditório, um debate sobre as provas da acusação e um julgamento sobre a sua força indiciária.
Sendo assim tão diferente a sua natureza, estas duas decisões nunca se poderiam identificar na sua função e conteúdo.
Não é, por todas estas razões, aceitável o argumento segundo o qual o despacho de pronúncia poderia reconduzir-se a uma decisão sobre a infundamentação manifesta da acusação, descaracterizando a sua função de decisão sobre um debate contraditório sobre provas.
8. Finalmente, a perspectiva de uma específica exigência de fundamentação do despacho de pronúncia orientada pelo princípio in dubio pro reo, aplicado no contexto da fase instrutória e na lógica dos respectivos fins, não está em conflito com a jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional quanto à não inconstitucionalidade da irrecorribilidade do despacho de pronúncia nos termos do artigo 310º do Código de Processo Penal ou até mesmo a relativa à constitucionalidade dos despachos que indeferem diligências probatórias, nos termos do artigo 291º, nº 1, do Código de Processo Penal. Na verdade, a irrecorribilidade daquelas decisões, cuja não inconstitucionalidade o Tribunal asseverou, não implica, antes numa certa perspectiva contraria, a aceitabilidade do esvaziamento das exigência de fundamentação da decisão instrutória ou de um seu aligeiramento no que respeita à plenitude das garantias de defesa. A ser assim, as garantias de defesa estariam reduzidas excessivamente naquela fase processual, de modo a ser descaracterizado o próprio sentido da instrução. Requerer a instrução ou não a requerer equivaler-se-iam no seu efeito garantístico, o que não só seria absurdo como restringiria, desproporcionadamente, as garantias de defesa.
9. Em face do exposto, impõe-se a conclusão de que a interpretação normativa dos artigos citados que exclui o princípio in dubio pro reo da valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia reduz desproporcionada e injustificadamente as garantias de defesa, nomeadamente a presunção de inocência do arguido, previstas no artigo 32º, nº 2, da Constituição. III Decisão
10. Pelos fundamentos anteriores, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucionais os artigos 286º, nº 1, 298º, e 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de um juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil. Consequentemente, concede-se provimento ao recurso.
Lisboa, 23 de Outubro de 2002 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra (com declaração de voto junta) Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei o acórdão, embora, de um ponto de vista de lógica do sistema adjectivo penal, em que a instrução se perfila como uma fase que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não causa a julgamento, me sobrem muitas dúvidas quanto ao juízo de inconstitucionalidade a que se chegou no presente aresto.
Na verdade, a formulação de um juízo indiciário do cometimento dos factos delituosos pelo agente, base insuperável da decisão de pronunciar, não pode, como é óbvio, fundar-se num juízo de certeza quanto a esse cometimento, pois que, se assim não fosse, a fase da instrução tornaria perfeitamente inútil a efectivação da fase do julgamento.
Aquela formulação, pela própria natureza das coisas (pois que repousa em indícios) acarreta, necessariamente, uma natural margem de dúvida.
Ora, é justamente neste ponto que se funda a minha perplexidade, já que se me antolha de difícil compatibilidade aceitar-se, de um lado, a ocorrência de uma margem de dúvida e, de outro, a primaridade de um princípio segundo o qual, a existir dúvida, a inocência do arguido deverá conduzir à sua não perseguição penal.
Esta minha perplexidade, todavia, não me levou a dissentir do juízo de inconstitucionalidade formulado no vertente acórdão em face da literalidade da primeira parte do nº 2 do artigo 32º da Constituição. Por isso, e só por isso, votei a decisão. Bravo Serra