Imprimir acórdão
Processo nº 366/2002
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, de fls. 175, A. (é o único dos arguidos que agora interessa considerar) foi condenado como co-autor material de um crime de fraude fiscal, 'pº e pº pelo artigo 23º, nº 1, nº 2, als. a) e c), nº 3, als. a) e e) e 4 do RJIFNA, na pena de multa de 4,267.712$00
(...) a que corresponde, em alternativa, a pena de 140 dias de prisão'. Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, pelo acórdão de fls. 290, negou provimento ao recurso. Para o que agora releva, o Tribunal da Relação do Porto desatendeu a alegação de inconstitucionalidade da norma do nº 4 do artigo 23º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 394/93,de 24 de Novembro), julgando nos seguintes termos:
«B) -Questão da medida da pena: Entende o recorrente que:
– A aplicação do art. 23° n.º 4 do RJIFNA (elevação da pena de multa para a quantia de 4.267.712$00 envolve a violação de um dos princípios estruturantes do Estado de Direito – o princípio da culpa como medida da pena – e os princípios
'NULLA POENA SINE CULPA', da proporcionalidade, da necessidade e da adequação plasmados na CRP e no art. 40° nº 2, do CP de 95;
– A aplicação ao arguido da multa de 4.267.12$00, mau grado as débeis condições económicas, traduz-se, na prática, numa pena alternativa à pena de prisão de 210 dias, atenta a impossibilidade de pagar aquela, devendo tal multa ser suspensa na sua execução;
– Subsidiariamente entende o arguido que face à sua débil situação económica, deve ser-lhe concedido o pagamento da multa de 420.000$00 em 24 prestações mensais, ao abrigo do art. 11º n.º 8, do RJIFNA. Sendo certo que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa concreta do agente – art. 71º, do C. Penal –, na sua graduação o Tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele – art. 71° n.º 2, do C. Penal. As referidas circunstâncias, como elementos de individualização concreta da pena têm a ver com a gravidade da ilicitude; a culpa do agente, influência da pena sobre o delinquente ( v.g. Prof. Eduardo Correia – D. Criminal, ed. de 1971, II vol., pags. 315 a 338). O crime de fraude fiscal é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa não inferior ao valor da vantagem patrimonial pretendida, nem superior ao dobro, sem que esta possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido – art. 23º e seu n.º 4, do RJIFNA. A pena de multa é fixada entre 10 a 360 dias para as pessoas singulares; de 20 a
1000 dias para as pessoas colectivas, correspondendo a cada dia de multa, para as primeiras, a quantia entre 2.000$00 e 100.000$00 e, para as segundas, entre
5.000$00 e 500.000$00 art. 11° nºs 2 e 3, do RJIFNA. Tendo-se optado e bem, pela pena de multa, ponderou-se o grau de ilicitude dos factos, a culpa do agente, as necessidades de prevenção geral, a falta de antecedentes criminais do arguido; também à data já relativamente longínqua da prática dos factos. Assim se chegou à pena de multa de 420.000$00 para cada arguido, sendo a empresa condenada na pena de multa de 1.500.000$00, o que não nos merece qualquer censura. No entanto e como a pena de multa foi elevada para a quantia de 4.267.712$00, ex vi do art. 23° n.º 4, do RJIFNA, ( por a multa não poder ser superior [inferior] ao da provada vantagem patrimonial pretendida), o recorrente vem questionar a constitucionalidade de tal preceito legal. No entanto e a nosso ver, sem razão. Vejamos: No caso das infracções fiscais, a publicação em 1988 e 1989 dos regimes jurídicos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), da contribuição autárquica (CA) e do estatuto dos benefícios fiscais induziu a reforma do tratamento normativo das infracções fiscais não aduaneiras, tendo o Governo solicitado e obtido autorização da Assembleia da República para legislar em tal matéria, relativamente a todos os impostos, contribuições parafiscais e demais prestações tributárias e, bem assim, quanto aos benefícios fiscais. A autorização concedida permitia ao Governo, em matéria penal, adaptar os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas do crime e as causas de suspensão do procedimento e extinção da responsabilidade criminal, podendo tipificar novos ilícitos penais e definir novas penas, tomando como referência o Código Penal, mas podendo alargar ou restringir a respectiva dosimetria. Define-se, em seguida, o sentido da autorização através da definição dos tipos de ilícito e dos respectivos elementos do tipo, bem como dos valores máximos e mínimos das penas e coimas. Seguidamente, prevê-se na lei de autorização legislativa a adequação do processo penal aos novos tipos de ilícito ( penal e contra-ordenacional) criados. A Lei n° 89/89, de 11/9, de autorização, veio a dar origem ao DL n.º 20-A/90, de
15/01, posteriormente alterado (na parte ora em causa), pelo DL 394/93, de
24/11, aprovado na sequência da Lei n.º 61/93, de 20/8. Este tratamento sistemático da punição das infracções fiscais não aduaneiras mostra bem o relevo que o legislador pretendeu atribuir à defesa dos interesses subjacentes a tal normação e cuja violação a mesma pretende evitar –os interesses da Fazenda Nacional.
(Neste sentido. V.g., AC. do Tribunal Const., n° 312/2000– Proc. n° 442/99– DR. II s., de 17/10/00 ). Estas considerações enformam a afirmação de que (como bem anota o MP na 1ª instância, ...'esta especialidade prevista no RJIFNA não colide com nenhum dos princípios constitucionais invocados pelo arguido. Trata-se tão somente, de mais uma concretização da intenção legislativa já patente no art. 10°, do RJIFNA quando se refere ao prejuízo patrimonial sofrido pelo Estado decorrente da prática de ilícitos fiscais, ou seja, atenta a especialidade dos delitos fiscais, o legislador determinou quantias mínimas e máximas a partir das quais e até às quais o bem jurídico deve ser protegido e as exigências de prevenção acauteladas...'. Finalmente e quanto à questão do pagamento da multa em prestações, como bem anota o Ilustre PGA, tal questão não é de formular em sede de recurso, pois não foi objecto de qualquer decisão em 1ª instância, mas para ser, eventualmente, formulada e decidida pelo Tribunal 'a quo'. De tudo exposto resulta que para além da já decidida rejeição do recurso, na parte atinente à prescrição do procedimento criminal, no mais, o recurso improcede.»
2. De novo inconformado, A recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, 'para apreciação da inconstitucionalidade do nº 4 do art. 23º do Regime Jurídico das Infracções não Aduaneiras (redacção do Dec-Lei nº 394/93, de 24.11), na interpretação sufragada, segundo a qual a elevação da pena de multa de 420.000$00 (determinada em função da medida da culpa e das demais circunstâncias atendíveis na fixação da pena) para 4.267.712$00 – valor correspondente à vantagem patrimonial pretendida pelo arguido – não viola os princípios da culpa, da proporcionalidade, da necessidade e da adequação (...)', por violação 'dos princípios constitucionais plasmados nos artigos 1º e 18º, nºs 1 e 2, da CRP'.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações, tendo A concluído da seguinte forma:
«CONCLUSÕES:
1ª O TRP confirmou a sentença da 1ª instância que, com fundamento no art. 23°, n° 4, do RJIFNA, elevou para 4.267.712$00 a pena de multa fixada em 420.000$00 e que resultou da ponderação do grau de ilicitude dos factos, da culpa do agente, das necessidades de prevenção geral e especial e das suas condições económico-financeiras.
2ª À data dos factos, mas não do acórdão recorrido, estava em vigor o art.23°, n° 4, do RJIFNA, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei n° 394/93, de 24.11, no qual se cominava para o crime de fraude fiscal a pena de prisão até 3 anos ou a de multa não inferior ao montante da vantagem pretendida com a prática do crime.
3ª Com a entrada em vigor do RGIT aprovado pela Lei n° 15/2001, de 5.6., foi revogado o RJIFNA, tendo a moldura penal do crime de fraude fiscal sido modificada mediante a eliminação do segmento do citado n° 4 relativo à pena de multa e a inclusão no articulado respectivo de uma moldura em que a multa é fixada em dias, num número variável entre 1 e 360 dias (fraude simples), ou entre 240 dias e 1200 dias (fraude qualificada).
4ª Porque à data do acórdão recorrido já estava em vigor a Lei n°15/2001, de
5.6., que não fixava um valor mínimo para a multa, impunha-se desaplicar a norma do n° 4 do art. 23° do RJIFNA por se configurar, no caso concreto, como lei mais desfavorável ao arguido.
5ª Porque assim se não fez, e porque o princípio da aplicação da lei mais favorável se integra no elenco dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, violou-se a norma do art. 29°, n° 4.
6ª A medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa, sendo este um princípio incindivelmente ligado à garantia da dignidade da pessoa humana que recebeu consagração no art.1 ° da CRP .
7ª Entre a medida da pena e a culpa interage o princípio da proporcionalidade ou princípio da proibição do excesso na sua subespécie de princípio da necessidade ou de exigibilidade plasmado no art. 18°, n° 2, da CRP .
8ª A elevação da multa de 420.000$00 para 4.627.712$00, com fundamento no n° 4 do art. 23° do RJIFNA, sem a imprescindível mediação da culpa do arguido prévia e concretamente determinada e extravasando dos limites adstritos pela medida da culpa, violou os princípios constitucionais 'nulla poena sine culpa' e da proporcionalidade, rectius, da exigibilidade ou da necessidade, plasmados nos arts 1° e 18°, n° 2, da CRP . Termos em que, deve a norma do art. 23°, n° 4, do RJIFNA, no que especificamente concerne ao segmento atinente à pena de multa, ser julgada inconstitucional quando interpretada e aplicada sem atender à medida da culpa do arguido ou apesar de se reconhecer que de acordo com a medida da culpa, prévia e concretamente determinada, a pena de multa seria substancialmente (cerca de dez vezes) menor).»
Quanto ao Ministério Público, apresentou as seguintes conclusões:
«Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1°- Face à corrente jurisprudencial, firmada nos acórdãos 548/01,
307/02 e 432/02, não é inconstitucional a norma constante do artigo 23°, n° 4, do RJIFNA (na versão emergente do Decreto-Lei n° 394/93, de 24/11) na parte em que coliga o montante da multa aplicada ao autor do crime fiscal à vantagem patrimonial indevidamente auferida pelo agente.
2°- Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
4. Cumpre, antes de mais, começar por observar que não tem cabimento no recurso interposto a afirmação, feita pelo recorrente, de que o Tribunal Constitucional tem de se confrontar 'com a questão (em sede da determinação da pena concretamente aplicável) da relevância jurídico-criminal do princípio da aplicação da lei mais favorável consagrado nos arts 29º, nº 4, da CRP, e 2º, nº
4, do Código Penal. E isto, no que especificamente ao Tribunal Constitucional respeita, também por força do disposto no art. 282º, nº 3, da CRP (...)'.' Com efeito, tal questão não cabe na competência do Tribunal Constitucional, restrita ao conhecimento de questões de inconstitucionalidade normativa (cfr. artigo 71º da Lei nº 28/82); e não se entende a referência ao nº 3 do artigo
282º da Constituição, relativo aos efeitos das declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Note-se, aliás, que o acórdão recorrido ponderou a eventualidade da aplicação aos autos do novo regime, chegando à conclusão de que o anterior – constante, precisamente, do nº 4 do artigo 23º do RJIFNA – era mais favorável ao recorrente. Esta conclusão não pode, naturalmente, ser questionada no âmbito do recurso agora em apreciação, não obstante o recorrente afirmar que foi violado pelo referido acórdão o nº 4 do artigo 29º da Constituição, já que nenhuma inconstitucionalidade normativa é apontada no requerimento de interposição de recurso (nem, acrescente-se, nas próprias alegações). Assim, e porque o acórdão recorrido aplicou o nº 4 do artigo 23º do RJIFNA, na versão impugnada pelo recorrente perante o Tribunal Constitucional, passa-se ao conhecimento do objecto do recurso.
5. Como observa o Ministério Público nas suas alegações, a questão de constitucionalidade colocada no presente recurso já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, seja com referência ao abuso de confiança fiscal (artigo 24º do RJIFNA), seja com referência à mesma norma agora em causa, constante do nº 4 do artigo 23º, cujo texto é o seguinte: Artigo 23º
(Fraude fiscal
(...)
4. A pena aplicável à fraude fiscal é de prisão até três anos ou multa não inferior ao da vantagem patrimonial pretendida, nem superior ao dobro, sem que esta possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido, salvo se, tratando-se de pessoas singulares, na ocultação ou alteração dos factos ou valores ou na simulação se verificar a acumulação de mais de uma das circunstâncias referidas nas alíneas c) a f) do número anterior, caso em que é exclusivamente aplicável a pena de prisão de um até cindo anos.
Tal como sucedeu no recurso julgado pelo acórdão nº 432/2002 (não publicado), esta norma só constitui objecto do presente recurso, como resulta dos termos do requerimento de interposição, na parte em que fixa para o limite mínimo da pena aplicável o 'valor da vantagem patrimonial pretendida'.
Assim, também aqui se vai remeter, no que toca à questão da alegada violação do princípio da culpa, para os termos em que o acórdão nº 548/2001
(Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 2002) a julgou, relativamente ao nº 1 do artigo 24º do RJIFNA; a mesma remissão fora, aliás, feita já pelo acórdão nº 307/2002 (Diário da República, II Série, de de 8 de Outubro de 2002):
«[...]
5. O julgamento de inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 24º do RJIFNA, na parte em que determina que a multa a aplicar será «não inferior ao valor da prestação em falta», assentou, em síntese, na ideia de que tal estatuição levaria a desconsiderar «na pena os princípios elementares que regem a sua determinação concreta» e a «situação financeira de cada arguido», desta forma violando «princípios fundamentais do Estado de Direito como sejam o princípio da culpa, corolário do princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, e o princípio da igualdade, reconhecidos constitucionalmente». Vejamos sucessivamente as invocadas violações do princípio da culpa e do princípio da igualdade.
6. O princípio da culpa «significa que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo» (José de Sousa e Brito, «A lei penal na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 1978, págs.
199-200). Implica tal princípio que «não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, nem medida da pena que exceda a da culpa»
(aut. e ob. cit., pág. 200). O princípio da culpa tem assento constitucional, decorrendo da dignidade da pessoa humana (art. 1º) e do direito à liberdade (nº 1 art. 27º), como tem reconhecido a doutrina (neste sentido, José de Sousa e Brito, ob. cit., pág. 199 e Maria Fernanda Palma, «Constituição e Direito Penal – As questões inevitáveis», in Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de
1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 234; no sentido de que o princípio da culpa é
«consequência da exigência incondicional de defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos arts. 1º, 13º-1 e 25º-1 da CRP», v. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, Lisboa,
1993, pág. 84; cf. também Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, Lisboa, 1999, pág. 25, para quem este princípio se funda «no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal, que a Constituição consagra logo no artigo
1º») e a jurisprudência constitucional (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 426/91, in Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º, pág. 423 e segs., nº
524/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional , 40º, pág. 623 e segs., nº
663/98, in Diário da República, II Série, de 15 de Janeiro de 1999, nº 89/2000, in Diário da República, II Série, de 4 de Outubro de 2000, nº 202/2000, in Diário da República, II Série, de 11 de Outubro de 10/2000 e nº 95/2001, não publicado). São consequências desta consagração constitucional, entre outras, a exigência de uma culpa concreta (e não ficcionada) como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, e inerente proscrição da responsabilidade objectiva; a proibição de aplicação de penas que excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa; a proibição das penas absoluta ou tendencialmente fixas
(cf. os acórdãos nº 202/2000 e nº 95/2001). Segundo a decisão recorrida, a norma que constitui objecto do presente recurso é violadora do princípio da culpa, na medida em que «poderá conduzir a que a pena de multa concretamente aplicada a cada arguido exceda os limites impostos pela sua culpa concreta». O nº 1 do artigo 24º em análise dispõe, como já se deixou registado, que «Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido». A eventual procedência do julgamento de inconstitucionalidade por violação da proposição segundo a qual a pena não pode exceder a medida da culpa depende da averiguação do exacto alcance da disposição transcrita. Ora, esse exacto alcance parece não ter sido devidamente tido em consideração pela decisão recorrida, como se vai ver.
7. Antes de mais, importa sublinhar que o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decidiu tipificar como crimes (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na «Constituição da República Portuguesa anotada», 3a edição, Coimbra, 1993, pág. 197, para quem
«resta um amplo campo à discricionariedade legislativa em matéria de definição das penas») embora respeitando os princípios constitucionais, entre os quais se destacam o da necessidade das penas, o da proporcionalidade e o da igualdade. Dentro do âmbito dessa liberdade do legislador cabe – sempre no respeito pelos princípios constitucionais – a escolha da pena ou penas aplicáveis aos diferentes crimes, quer na sua identidade e regime, quer na sua medida abstracta
(penalidade, pena aplicável ou «moldura penal»). Optou o legislador por cominar, relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, em alternativa, a pena de prisão até três anos ou a pena de «multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido». Assim, os limites da pena de multa são estabelecidos tendo por referência o valor da prestação em falta: o limite mínimo corresponde a tal valor, enquanto o limite máximo corresponde ao dobro desse valor (salvo se o limite máximo legalmente estabelecido for inferior, caso em que este será o limite máximo da multa prevista para o crime de abuso de confiança). Deste modo, e sem prejuízo da intervenção, nos termos gerais, de institutos que permitam atenuar a responsabilidade (atenuação especial, dispensa de pena), é dentro da margem fornecida pelos referidos limites mínimo e máximo (e não fora deles) que o grau de culpa do agente é objecto da devida ponderação. A decisão recorrida apenas pôde considerar que o limite mínimo previsto na parte final do nº 1 do artigo 24º era violador do princípio da culpa porque optou por um diferente enquadramento dogmático. Em vez de apurar os limites mínimo e máximo da pena de multa aplicável em função do montante da prestação tributária em dívida e do dobro desse montante, preferiu aplicar, sem reservas, o artigo
11º, como se esta última disposição não fosse afastada, em grande medida, pela norma especial do artigo 24º. É verdade que o Tribunal a quo se deu conta do carácter «inconciliável» da aplicação simultânea dos artigos 11º e 24º. Todavia, em lugar de, nos termos gerais, fazer prevalecer a regra especial do artigo 24º sobre a regra geral do artigo 11º, insistiu na aplicação integral desta, recusando, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação do limite mínimo previsto naquela. Do exposto se conclui que a adopção de um limite mínimo da pena de multa do crime de abuso de confiança fiscal correspondente ao montante da prestação em dívida, acompanhada pela fixação de um montante máximo correspondente ao dobro daquela soma, não viola o princípio da culpa.
8. Pode, no entanto, suscitar-se a dúvida sobre se o modo de fixação dos limites da pena de multa, atendendo à necessidade de respeitar o limite máximo legalmente estabelecido para a pena de multa, pode provocar a cominação de uma pena de multa fixa. Tal sucederia se o montante de prestação tributária em dívida, que determina o limite mínimo da pena de multa, pudesse igualar o limite máximo legalmente estabelecido. A esta dúvida deve responder-se negativamente. Com efeito, a cominação da pena de prisão até 3 anos ou de multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro (sem que possa exceder o máximo abstractamente estabelecido), nos termos do nº 1 do artigo 24º, não vale para infracções em que a quantia em dívida é inferior a 250.000$00 (caso em que o nº 4 prevê uma multa até 120 dias), ou superior a 5.000.000$00 (hipótese em que o nº 5 comina uma pena de prisão de 1 a 5 anos). Relativamente às quantias que se encontrem entre 250.000$00 e 5.000.000$00, não
é possível ultrapassar o máximo abstractamente estabelecido, já que tal máximo corresponde, por força dos nºs 2 e 3 do artigo 11º, respectivamente, a
36.000.000$00 ou a 500.000.000$00, respectivamente no caso de pessoas singulares ou de pessoas colectivas. Esta conclusão poderia ser posta em causa, se se entendesse que «o limite máximo abstractamente estabelecido», a que se refere o nº 1 do artigo 24º, pressupõe, para cada arguido, a fixação do montante correspondente a cada dia de multa, nos termos do artigo 11º, o que levaria a que o limite mínimo da pena de multa pudesse igualar o limite máximo legalmente estabelecido. Neste sentido deporia a falta de sentido útil de tal limite – já que ele nunca limitaria o montante decorrente do nº 1 do artigo 24º –, se assim não fosse entendido. Apesar deste argumento, porém, não pode deixar de se entender o «limite máximo abstractamente estabelecido» no sentido de verdadeiro limite abstracto, isto é, independente do caso concreto, e, por isso, a implicar a multiplicação do montante máximo previsto para cada dia de multa (cf. nº 3 do artigo 11º) pelo número máximo de dias de multa previstos (nº 2 do mesmo artigo). É que seria valorativamente contraditório estabelecer um sistema de limites da pena de multa no nº 1 do artigo 24º a partir de quantias fixadas por referência à quantia em dívida, e ao mesmo tempo pressupor a necessidade de fixação do montante correspondente a cada dia de multa, para o efeito da determinação do limite máximo abstractamente estabelecido. Tanto mais que tal entendimento conduziria, justamente, à solução absurda de o limite máximo legalmente estabelecido poder ser igual ou inferior ao limite mínimo previsto no nº 1 do artigo 24º.
9. Pelo que toca à alegada violação do princípio da igualdade (art. 13º da Constituição), por impossibilidade de ponderação da situação económica e financeira do arguido, valem, em síntese, mutatis mutandis, as considerações formuladas sobre a não violação do princípio da culpa. Na verdade, nada obsta a que a situação económica e financeira do arguido seja tida em conta dentro dos limites mínimo e máximo estabelecidos no nº 1 do artigo 24º, assim se conseguindo tratar igualmente o que é igual, e desigualmente o que é desigual. Não se diga, por outro lado, que viola o princípio da igualdade a possibilidade de arguidos de situação económica e financeira semelhante virem a ser punidos de modo diferente, em função da existência de diferentes limites mínimo e máximo, determinados pelos montantes em dívida. A diferente penalidade corresponde justamente à diferente gravidade que o legislador fundou na diversa quantia em dívida. Trata-se de uma solução que tem paralelo, por exemplo, na diferenciação de penalidade para crimes contra o património em função do valor em causa [cf. as alíneas a) a c) do artigo 202º e os artigos 203º e seguintes do Código Penal].»
6. Como também se julgou no mesmo acórdão nº 432/2002, « 8. Entende-se, tal como se entendeu no citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 548/01, de 7 de Dezembro, a propósito da norma do artigo 24º, n.º 1, do RJIFNA, que a equivalência entre o limite mínimo da multa a aplicar à fraude fiscal e o valor da vantagem patrimonial pretendida pelo agente não obsta, por si, à ponderação da culpa do agente e da sua situação económica e financeira na determinação da medida da pena de multa, nos termos gerais. Na verdade, nada impede que os critérios de determinação da medida da pena de multa, constantes dos artigos 10º e 11º, n.º s 2 e 3, ambos do RJIFNA, funcionem dentro dos limites estabelecidos no artigo 23º, n.º 4, do RJIFNA, ora analisado. Assim sendo, valem no presente caso as considerações tecidas no mesmo acórdão a propósito da violação do princípio da culpa e do princípio da igualdade, para as quais se remete. Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem jurídico o que se visa e não a mera censura do agente.»
6. Nestes termos, decide-se: a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 23º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de
15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, na parte em que fixa como limite mínimo da multa a aplicar o valor da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, quando tal limite mínimo seja inferior ao limite máximo a que se refere o mesmo preceito; b) Consequentemente, e na medida em que esta condição foi respeitada na decisão recorrida, negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa,6 de Dezembro de 2002 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida