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Proc. n.º 614/02 Acórdão nº 57/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No exercício da competência que lhe havia sido conferida pelo artigo
39º do Decreto-Lei n.º 13/90, de 8 de Janeiro, o Banco de Portugal deduziu acusação num processo de contra-ordenação contra A., imputando-lhe a prática do ilícito cambial previsto e punido nos termos do artigo 36º do referido diploma legal (fls. 1042 e seguintes).
A arguida apresentou a contestação de fls. 1058 e seguintes, sustentando que a acusação era infundada.
2. Elaborada a proposta de decisão do Banco de Portugal (fls. 1101 e seguintes) e proferida a subsequente decisão de aplicação de coima pelo Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças (fls. 1124 e seguintes), veio esta a ser declarada nula pelo Tribunal de Pequena Instância Criminal, por sentença de 3 de Julho de 2001 (fls. 1159 e seguintes), na sequência da impugnação judicial apresentada pela arguida (fls. 1134 e seguintes).
3. Foi, então, proferida nova decisão pelo Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças (fls. 1169 e seguintes), na qual se aplicou à arguida, a título de dolo, a coima de 28.007.617$00 (vinte e oito milhões e sete mil e seiscentos e dezassete escudos), nos seguintes termos:
'[...]
5 - Quanto ao direito Assim, face ao comportamento descrito, conclui-se que a arguida cometeu uma pluralidade de violações da mesma norma, embora só tivesse havido uma única resolução delituosa, ou seja, compra e venda de moeda estrangeira, de forma organizada e habitual e com intuito lucrativo, pelo que estamos perante uma prática reiterada dessa mesma infracção. Com efeito, de cada vez que procedeu à realização de operações ilícitas, houve um renovar da resolução delituosa, com a consequente prática de várias infracções. Durante todo o tempo em que violou repetidamente a mesma norma, a arguida realizou-o de uma forma habitual, praticando uma multiplicidade de actos e cometendo assim a mesma infracção, tendo tido, durante todo o tempo em que durou a violação da norma, intenção de a praticar. Constituem os factos dados como provados uma infracção aos artºs 11° e 13° do Dec-Lei n° 13/90, de 8 de Janeiro, com a redacção do Dec-Lei n° 170/93, de 11 de Maio, conjugados com o disposto no art° 5° nº1 a) e n° 3° e os artºs 6° e 31° do mesmo diploma, uma contra-ordenação prevista e punida nos termos do art° 36° do diploma citado, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei n° 64/91, de 8 de Fevereiro, porquanto foram efectuadas operações cambiais habitualmente, por conta própria e com intuito lucrativo, sem que existisse a devida autorização do Banco de Portugal para o efeito. Ser responsável pela prática da infracção a sociedade arguida, dando-se igualmente como provado ter a mesma actuado com dolo e com plena consciência da ilicitude dos factos praticados, porquanto – apesar de bem saber que tal conduta era legalmente proibida – foi manifesta a intenção de a realizar.
6 - Quanto à medida da sanção
6.1 - Tendo em consideração a matéria dada como provada no presente processo, atentos os graus de ilicitude dos factos constitutivos das infracções e de culpa revelados pela arguida, a natureza da contra-ordenação praticada e os montantes envolvidos, bem como a circunstância atenuante de inexistência de condenações anteriores em processo de contra-ordenação cambial, conforme quota de fls. 955, e ainda os montantes da coima e ainda os montantes da pena concreta previstos nos termos dos artºs 36° (que estabelece a sanção principal) do Dec-Lei n°
13/90, de 8 de Janeiro, na redacção do Dec-Lei n° 64/91, de 8 de Fevereiro, podendo, a arguida, ser condenada a título de sanção principal, com uma coima
«calculada entre 75% e 100% do valor dos bens ou direitos a que respeita a violação, no máximo de 500.000.000$00», deverá ser aplicada uma coima correspondente a 75% da moeda estrangeira comprada entre Março e Agosto de 1999
– 37.343.490$00 (trinta e sete milhões trezentos e quarenta e três mil e quatrocentos e noventa escudos) – a qual ascende a ESC 28.007.617$00 (vinte e oito milhões sete mil seiscentos e dezassete escudos);
[...].'
4. Notificada desta decisão, a arguida A. de novo apresentou impugnação judicial, tendo suscitado a inconstitucionalidade do artigo 36° do Decreto-Lei n° 13/90, de 8 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n° 64/91, de 8 de Fevereiro, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da igualdade e ainda por violação do disposto nos artigos 167º e 168º da Constituição (fls. 1203 e seguintes).
5. Por sentença de 5 de Abril de 2002, o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa julgou a acusação totalmente procedente por provada, condenando a arguida 'pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 11º e 13º do Decreto-Lei n.º 13/90, de 8 de Janeiro, com a redacção do Decreto-Lei n.º 170/93, de 11 de Maio, conjugado com o disposto nos artigos 5º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, 6º e 31º, todos do citado diploma legal, punível nos termos do artigo 36º do diploma citado com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 64/91, de 8 de Fevereiro, na coima de
14.005.000$00' (fls. 1247 e seguintes). Lê-se no texto da sentença, quanto às questões de inconstitucionalidade suscitadas:
'[...] Quanto à primeira questão, relativa à violação do disposto no artigo 13° e 18°, da C.R.P., importa referir: O princípio da culpa, corolário do princípio da igualdade e a proibição do excesso, o princípio da intervenção mínima, adequada e proporcional não são violados pela norma em questão. Assim, no que respeita à culpa, importa referir que a distinção entre dolo e negligência é, como refere o artigo 34°, do Dec.-Lei n° 13/90, de 08/01, a diferença entre a coima fixada e metade desse valor. Há assim espaço para tratamento diferenciado consoante a culpa – tratando-se de forma igual o que é igual e diferente o que é diferente. No âmbito do dolo, a variação estabelecida pelo legislador – entre 75% e 100% do valor dos bens ou direitos a que respeita a violação, no máximo de
500.000.000$00 – não só se nos apresenta como adequada a estabelecer as diferenças relativas entre as sua várias formas como no que respeita à sua intensidade, dentro de cada forma. Não se está perante uma coima fixa – em que se toma difícil distinguir entre comportamentos mais ou menos censuráveis – nem perante uma ausência de balizas punitivas – deixando ao bel-prazer do aplicador da lei a medida da sanção. Quanto à proporcionalidade, estamos perante um raro caso em que esta é mesmo medida da sanção. Ao contrário das normas punitivas fixas – entre x e y – este tipo de normas permite-nos ater a medida da coima e sua variação à EFECTIVA conduta – dimensão e gravidade – do ilícito – do infractor. Assim, uma proporção entre 75% e 100% do valor dos bens ou direitos a que respeita a violação, no máximo de 500.000.000$00, apresenta-se-nos como uma moldura, em abstracto, correcta e, por essa via, não nos parece que ganhasse mais consistência ou legitimidade se, nada tendo que ver com a actividade efectivamente levada a cabo e seus resultados, se cifrasse numa moldura fixa ou tradicional. Com o que a arguida se parece revoltar é com a concreta desproporção, no que a estes autos respeita, da sua punição face aos proventos que obteve. Isso é questão para discutir na medida concreta da pena mas, desde já se adianta que tal, a verificar-se, não importa na inconstitucionalidade da norma – que é geral e abstracta e que, em si, não enferma de qualquer vício mas com um conjunto de factores que, na opinião da arguida levarão a que a sua responsabilidade deva decair abaixo do limite mínimo da punição.
[...] Certo é que, no caso em apreço, não existe desproporção entre a conduta – entre Março e Agosto de 1999, a arguida cambiou ilicitamente moeda estrangeira correspondente a 37.343.490$00 de compras e 189.295$99 de vendas – e a coima aplicável – coima entre 28.007.617$00 e 37.343.490$00. Isto apesar do lucro obtido pela arguida com tais operações cambiais ter ascendido a 1.085.020$00 quanto às operações de compra e 5.085$00 quanto às operações de venda, uma vez que não se pretende com a punição contrariar apenas o beneficio económico da arguida (que é considerado o limite mínimo considerado eticamente correcto da medida da punição e, como tal, vem consagrado no artigo
18°, n° 1 e 2, do R.G.C.O.) com a sua conduta delituosa mas antes punir a gravidade da mesma – geralmente punindo-a mesmo acima de tal limite para que a sanção seja um verdadeiro sacrifício e não só uma reposição do indevidamente percebido e, assim, se possam prosseguir as finalidades retributivas e preventivas que presidem às sanções contra-ordenacionais. Assim, o lucro é apenas a medida abaixo da qual, em vez de se punir se recompensa a actividade delituosa (excepto quando, por outros motivos, a pena não seja necessária – princípio da necessidade da pena e da proporcionalidade ao caso concreto). Não é, assim, medida que importe defender como moldura de uma punição. Valores mais altos se impõem quanto a esta questão, sendo coerente, como estabelece o R.G.C.O. que o papel do beneficio económico funcione como um mínimo que se visa atingir com a punição. Não é, assim, nem desigual nem desproporcional a coima fixada no artigo 36°, do Dec.-Lei n° 13/90, de 08/01, em termos abstractos.
[...] A lei de autorização legislativa (ou Lei de Bases) foi, neste ponto, escrupulosamente cumprida. Inexiste, assim, qualquer inconstitucionalidade quanto a este aspecto.
[...].'
6. Inconformada com a referida sentença, A. dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Nas alegações que então produziu (fls. 1269 e seguintes), reiterou as considerações sobre a inconstitucionalidade do artigo 36° do Decreto-Lei n.°
13/90, de 8 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.° 64/91, de 8 de Fevereiro.
Na sua resposta (fls. 1287 e seguintes), o representante do Ministério Público junto do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa sustentou que devia negar-se provimento ao recurso.
7. Por acórdão de 3 de Julho de 2002 (fls. 1301 e seguintes), o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou a decisão impugnada, nos seguintes termos:
'[...] VII. A arguida reputa violados tais princípios [os princípios da igualdade e da proporcionalidade] chamando à colação que o crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artº 23º nº 4, do RGIFNA, é de muitíssimo maior desvalor para o Estado e comunidade do que o de ilícito cambial, todavia reclama a aplicação de uma pena menos severa do que a aplicada, em que a multa ali tem como limite mínimo a vantagem patrimonial obtida e máximo o dobro dessa vantagem, enquanto que no caso de ilícito cambiário a coima tem como limite mínimo 75 % e máximo 100% dos valores dos bens ou direitos, com o limite de 500.000.000$00. Antes de mais deve dizer-se que não cabe ao destinatário da lei fixar o que no seu entender deve integrar crime ou contraordenação, antes tudo dependendo da
«mediação criadora do legislador» [...]. Não é ao destinatário da lei que cabe, sequer deve, sobrepor-se à opção legislativa. Tão pouco os dois ilícitos se tocam na exacta medida em que as respectivas sanções (contraordenacionais) estão desligadas do «pathos» que as caracteriza e não «desqualificam o agente a quem são impostas com a mácula de uma reprovação
ético-jurídica» [...]. Elas obedecem a uma decisão necessariamente política e pragmática que, sem ser necessariamente arbitrária, comporta, apesar de tudo, um coeficiente de irredutível indeterminação e discricionaridade. Ao invés a intervenção do direito penal, na sua forma subsidária, arranca de uma conduta eticamente relevante, ou seja, de um critério repousante em características materiais ou qualitativas, não sendo, pois, uma dimensão meramente formal [...]. Nem todos [os] meios de produção de um evento danoso são crimes, reclamando a intervenção do direito penal, mas só a produção de um efeito lesivo por uma forma específica de actividade, donde o direito penal já ter sido apodado de modal. Nada existe, pois, de incoerente ou de atropelo à unidade do sistema que se regule diferentemente ilícitos distintos, concentrados, igualmente, em compêndios normativos diferenciados; o legislador move-se com liberdade nos dogmas em que repousam e nas punições que lhes competem. Por outro não se diga, para legitimar desigualdade, que o crime de fraude fiscal, por o ser é mais benevolamente sancionado do que o ilícito cambial, pois enquanto crime afecta directamente a liberdade dos seus agentes, na cominação de pena privativa de liberdade, indirectamente, na conversão subsidiária em prisão, da multa, além de comportar uma marca desvalorativa ética; uma ressonância ética que a contraordenação não repercute. Apesar disso, convenhamos em que o ilícito cambial não é um ilícito contraordenacional bagatelar (frise-se que num curto espaço de tempo ascendeu ao elevado montante de 37.343.490$00 a compra de moeda estrangeira e a 189.295$99 a sua venda, pela arguida) por quem o legislador deva mostrar complacência desmedida, distanciando situações da acção típica, tornando a sua previsão uma malha alargada. Como se fez questão de mencionar no preâmbulo do Dec.-Lei nº 64/91, de 8/2, é necessário que «o regime sancionatório seja realmente desincentivador da prática de infracções à legislação cambial. Neste sentido eleva-se, agora, de forma substancial, o valor máximo da coima a aplicar, assim como se individualiza o ilícito praticado de forma habitual e com intuito lucrativo». A prática de câmbio ilegal, fora das instituições legalmente autorizadas, é uma actividade por todos reconhecida como ilegal, e grave, corrente antes da adopção da moeda única europeia, que se presta a todos os tipos de desmandos, atropelos e arbitrariedades; é uma actividade de prática fácil, sem grandes riscos, permitindo através do «mercado negro» vultuosos lucros, impeditiva do conhecimento das disponibilidades financeiras sobre o exterior e, necessariamente o conhecimento perfeito das reservas monetárias e da situação financeira do Estado, cujo controle incumbe ao Banco de Portugal. Se, como é propósito do legislador desmotivar uma prática comercial, marginal ao controle legal, gravemente lesiva dos interesses nacionais, só a adopção de pesadas sanções se coadunaria com aquela «ratio». Donde a compreensão da severização adoptada pelo diploma em causa quando o legislador estabelece que o montante da coima será fixado entre 75% e 100% do valor dos bens ou direitos a que respeite a violação, até ao limite de
500.000.000$00, tendo sido essa a forma escolhida de combater eficazmente tal prática ilegal, não violando o legislador o princípio da igualdade, porque trata diferentemente duas situações materialmente diferentes – as infracções fiscais e as cambiais.
É, sem dúvida, uma percentagem elevada, a opção legislativa, no que respeita aos limites mínimo e máximo da coima aplicável, porém variável em função dos valores das operações cambiárias, individualizável em função da culpa, da gravidade da contraordenação e do eventual benefício alcançado, nos termos do artº 18º do Dec.-Lei nº 433/82, de 27/10, além de que, verificados os respectivos pressupostos, sempre o julgador pode lançar mão de institutos de natureza geral, como o de atenuação especial – artº 18º nº 3 daquele Dec.-Lei – cfr. Ac. do TC, nº 95/01, P. nº 626/2000, de 13/3/2001, seguindo-se de perto o entendimento perfilhado no Ac. nº 83/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.18, 493.
[...] IX. O montante da coima assim fixada não é chocante, até porque a arguida a vem praticando desde tempo indeterminado, mas não reduzido, foi até advertida pelo Banco de Portugal para a cessar, mas preferiu reiterar, desobedecer à lei, colocando-se numa atitude sobranceira a ela, não ferindo aquele montante o sentimento comunitário reinante de justiça e de proporção, nem atingindo o limite do intolerável, não excedendo aquela «justa medida», que é havida como apanágio, núcleo essencial do princípio da proporcionalidade. A sanção adoptada traduz uma adequada proporção entre a gravidade do facto e a culpa do agente, mesmo excedendo em muito o benefício económico alcançado, pois a função da coima é a inflição de um mal, traduzido em forma pecuniária, e não, como com acerto se observa na decisão recorrida, «a reposição do lucro indevidamente cobrado», devendo representar um autêntico sacrifício para o prevaricador. De outro modo a função da coima ficaria muito aquém das finalidades preventivas e repressivas que se lhe assinala.
[...] Improcedem as conclusões VIII a XIV, ao decidir-se pela conformidade à lei constitucional. X. Nas conclusão XVI e XVII observa-se que a predita norma viola o «princípio da determinabilidade das leis, não assegura enquanto moldura sancionatória, uma suficiente extensão» além de que pode converter-se «na prática de uma pena fixa ou tendencialmente fixa».
[...] A pena que consiste numa coima entre 75% e 100% do valor dos bens ou direitos obtidos, segundo o artº 36º do Dec.-Lei nº 64/91, de 8/2, não é uma pena fixa, pois a sua fixação comporta uma margem de individualização entre o mínimo de 75% e 100%, com possibilidade de intervenção das componentes legais daquela, enunciados no artº 18º nº 1, do Dec.-Lei nº 433/82, de 27/10, e a sua graduação concreta de acordo com aqueles, além de não excluir a sua atenuação especial, mesmo a aplicação de admoestação (artº 51º, daquele diploma) não violando qualquer daqueles princípios estruturantes das penas, aplicáveis de pleno ao direito contraordenacional, atento o seu carácter sancionatório, punitivo, por isso as normas do CP constituem direito penal subsidiário relativamente ao direito substantivo das contraordenações – artº 32º, do Dec.-Lei nº 433/82; de
27/10. Na definição de penas tendencialmente fixas cabem aquelas que o juiz, em princípio, não pode graduar mas em que pode «recorrer a institutos de carácter geral, como os da atenuação especial da pena ou de dispensa da pena, para adequar a sanção à personalidade do agente e às circunstâncias apuradas da infracção, na jurisprudência do Ac. nº 83/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol.18º, 493. A Constituição enuncia no artº 30º nº 1 que não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada; princípio que, no que respeita ao ilícito contraordenacional, significa que as coimas não podem ter uma duração indefinida, indeterminada. A lei constitucional respeita às penas ou medidas de segurança restritivas de liberdade, deixando a problemática em aberto quanto a outras penas, sempre que elas possam restringir ou amputar, de modo perpétuo ou indefinido, a esfera dos direitos das pessoas. Não sendo a coima pena privativa de liberdade, nem por isso ela deixa de ser visivelmente determinável, em face dos critérios legais estabelecidos, estando ao inteiro alcance, pelo uso daqueles, descontada a margem de individualização consentida ao julgador, o conhecimento do seu «quantum» pelo arguido, não estando obrigado o legislador, como princípio, forçado a recorrer a mecanismos legais da sua suavização, como forma inultrapassável de corrigir a injustiça do legislador.
É tempo de concluir que o julgador dispunha de uma moldura com amplitude bastante para individualizar a coima, dispondo de instrumentos regulativos, alternativos e não vinculados, não se subscrevendo o entendimento segundo o qual a pena consentida pelo artº 36° é fixa ou tendencialmente fixa. Improcede, também, o leque de conclusões em análise.
[...].'
8. A. interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da norma do artigo 36º do Decreto-Lei n.º 13/90, na redacção do Decreto-Lei n.º 64/91, de 8 de Fevereiro, 'por violação dos artigos
13º, 18º, 29º, 31º e 32º da Constituição da República Portuguesa e dos princípios constitucionais da proporcionalidade, igualdade e da culpa' (fls.
1326).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 1328.
Nas suas alegações (fls. 1332 e seguintes), a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'[...] VIII. O artigo 36° do Dec. Lei n° 13/90, de 8 de Janeiro, na redacção do Dec. Lei n° 64/91, de 8/02, designadamente na interpretação que conduziu ao resultados dos autos e nos termos sobreditos, viola manifestamente o princípio constitucional da proporcionalidade e, até, da igualdade – artigos 13° e 18° da CRP. IX. Os Tribunais recorridos aplicaram a atenuação especial, apenas como meio de superar a brutalidade e desproporcionalidade do mínimo da coima. X. A atenuação especial não resolve o problema, não só porque não é o meio eficaz de combater a flagrante desproporção e arbítrio a que conduz a previsão do artigo 36° em causa, porque a excessiva violência da coima se mantém, bastando observar que nem com os lucros dos próximos 15 anos conseguiria pagar a coima de 14.005 contos, sendo, na prática, irrelevante que a arguida seja condenada a pagar 14.000 ou 28.000 contos, pois não tem condições económicas para pagar uma ou outra. XI. Ao, unicamente, determinar como medida da coima, que a mesma seja calculada entre 75% e 100% do valor dos bens ou direitos a que respeita a violação, sem importar a gravidade, a culpa, a situação económica ou o beneficio económico, o artigo 36° do Dec. Lei n° 13/90 viola o princípio constitucional da igualdade.
[...] XIII. A norma do artigo 36° cuja inconstitucionalidade se vem requerendo, para além da própria violação do princípio da determinabilidade das leis, não assegura, enquanto moldura sancionatória, uma suficiente extensão. XIV. Pode mesmo transformar-se, na prática, numa pena fixa ou tendenciamente fixa, como sucedeu no caso sub judice, em que face à proporção entre a conduta da arguida e a punição ao dispôr do julgador, este não teve alternativa senão aplicar a pena mínima, transformada em pena fixa, ou seja, o julgador a quo não tinha outra alternativa senão absolver ou condenar na pena mínima e, ainda assim, cem superior à culpa que sempre deveria ser o limite da pena.
[...] XVI. O artigo 36° do Dec. Lei n° 13/90, de 8 de Janeiro, na redacção do Dec. Lei n° 64/91, de 8/02, designadamente na interpretação que conduziu ao resultados dos autos e nos termos sobreditos, viola manifestamente o princípio constitucional da culpa e da legalidade da sanção – artigos 29º, n° 1 e n° 3 e
30° da CRP.'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional produziu as alegações de fls. 1339 e seguinte, nas quais assinalou que '[s]obre questão paralela, situada no âmbito dos crimes fiscais – em que identicamente se mostrava coligado o montante da pena de multa, aplicável ao arguido, à vantagem patrimonial ilegitimamente auferida – proferiu o Tribunal Constitucional várias decisões recentes, entendendo, de forma reiterada e unânime, que tal regime sancionatório não afrontava qualquer preceito ou princípio constitucional (cfr. Acórdãos 548/01, 307/02 e 432/02)'. Consequentemente, concluiu no sentido do não provimento do presente recurso.
Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar.
II
9. Dispõe o artigo 36º do Decreto-Lei n.º 13/90, de 8 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 64/91, de 8 de Fevereiro:
'Artigo 36º Exercício de actividade não autorizada Quem, sem estar devidamente autorizado, realizar de forma habitual e com intuito lucrativo, por conta própria ou alheia, operações cambiais, operações sobre ouro ou operações de importação e exportação ou reexportação de escudos, moeda estrangeira ou de títulos, será punido com coima, calculada entre 75% e 100% do valor dos bens ou direitos a que respeita a violação, no máximo de
500.000.000$00.'
Segundo a recorrente, tal norma violaria os princípios da proporcionalidade, da igualdade, da culpa e da legalidade da sanção (supra, 8.).
Violaria o princípio da proporcionalidade, porque os limites da coima nela previstos (particularmente, o limite mínimo) são excessivos, conduzindo à aplicação de uma coima que supera, em muito, o lucro efectivamente obtido pelo arguido, e tratando a conduta deste mais severamente do que certos crimes fiscais. Violaria o princípio da igualdade, porque não pondera a gravidade, a culpa, a situação económica e o benefício económico. Violaria, finalmente, os princípios da culpa e da legalidade da sanção, porque o limite mínimo e o limite máximo da moldura da coima estão demasiado próximos, conduzindo à aplicação de uma coima tendencialmente fixa.
10. Como bem salienta o Senhor Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações
(supra, 8.), a questão que constitui o objecto do presente recurso é semelhante a uma outra que já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, nos acórdãos n.º s 548/01, de 7 de Dezembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de Julho de 2002, p. 12639), 307/02, de 3 de Julho (publicado no Diário da República, II Série, n.º 232, de 8 de Outubro de 2002, p. 16792) e 432/02, de 22 de Outubro (ainda inédito). Tal questão paralela já decidida traduzia-se precisamente em saber se era constitucionalmente conforme o estabelecimento, em sede de certos crimes fiscais, de um nexo de dependência entre o montante da pena de multa e a vantagem patrimonial ilegitimamente auferida pelo agente.
10.1. Concretamente, no mencionado acórdão n.º 548/01, de 7 de Dezembro, apreciou o Tribunal Constitucional a conformidade constitucional da norma do artigo 24º, n.º 1, do RJIFNA (sobre o crime de abuso de confiança fiscal), na parte em que impõe que o limite mínimo da pena de multa a aplicar ao arguido seja equivalente ao montante da prestação em dívida. Segundo o tribunal então recorrido, que havia recusado a aplicação de tal norma, a equivalência entre o limite mínimo da pena de multa e o montante da prestação em dívida poderia conduzir a que a pena de multa concretamente aplicada a cada arguido excedesse os limites impostos pela sua culpa concreta e se desconsiderasse a sua situação económica. Porém, o Tribunal Constitucional não perfilhou esse entendimento, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
5. O julgamento de inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 24º do RJIFNA, na parte em que determina que a multa a aplicar será «não inferior ao valor da prestação em falta», assentou, em síntese, na ideia de que tal estatuição levaria a desconsiderar «na pena os princípios elementares que regem a sua determinação concreta» e a «situação financeira de cada arguido», desta forma violando «princípios fundamentais do Estado de Direito como sejam o princípio da culpa, corolário do princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, e o princípio da igualdade, reconhecidos constitucionalmente». Vejamos sucessivamente as invocadas violações do princípio da culpa e do princípio da igualdade.
6. O princípio da culpa «significa que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo» (José de Sousa e Brito, «A lei penal na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 1978, págs.
199-200). Implica tal princípio que «não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, nem medida da pena que exceda a da culpa»
(aut. e ob. cit., pág. 200). O princípio da culpa tem assento constitucional, decorrendo da dignidade da pessoa humana (art. 1º) e do direito à liberdade (nº 1 art. 27º), como tem reconhecido a doutrina (neste sentido, José de Sousa e Brito, ob. cit., pág. 199 e Maria Fernanda Palma, «Constituição e Direito Penal – As questões inevitáveis», in Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de
1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 234; no sentido de que o princípio da culpa é
«consequência da exigência incondicional de defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos arts. 1º, 13º-1 e 25º-1 da CRP», v. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, Lisboa,
1993, pág. 84; cf. também Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, Lisboa, 1999, pág. 25, para quem este princípio se funda «no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal, que a Constituição consagra logo no artigo
1º») e a jurisprudência constitucional (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 426/91, in Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º, pág. 423 e segs., nº
524/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional , 40º, pág. 623 e segs., nº
663/98, in Diário da República, II Série, de 15 de Janeiro de 1999, nº 89/2000, in Diário da República, II Série, de 4 de Outubro de 2000, nº 202/2000, in Diário da República, II Série, de 11 de Outubro de 10/2000 e nº 95/2001, não publicado). São consequências desta consagração constitucional, entre outras, a exigência de uma culpa concreta (e não ficcionada) como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, e inerente proscrição da responsabilidade objectiva; a proibição de aplicação de penas que excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa; a proibição das penas absoluta ou tendencialmente fixas
(cf. os acórdãos nº 202/2000 e nº 95/2001). Segundo a decisão recorrida, a norma que constitui objecto do presente recurso é violadora do princípio da culpa, na medida em que «poderá conduzir a que a pena de multa concretamente aplicada a cada arguido exceda os limites impostos pela sua culpa concreta». O nº 1 do artigo 24º em análise dispõe, como já se deixou registado, que «Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido». A eventual procedência do julgamento de inconstitucionalidade por violação da proposição segundo a qual a pena não pode exceder a medida da culpa depende da averiguação do exacto alcance da disposição transcrita. Ora, esse exacto alcance parece não ter sido devidamente tido em consideração pela decisão recorrida, como se vai ver.
7. Antes de mais, importa sublinhar que o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decidiu tipificar como crimes (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na «Constituição da República Portuguesa anotada», 3a edição, Coimbra, 1993, pág. 197, para quem
«resta um amplo campo à discricionariedade legislativa em matéria de definição das penas») embora respeitando os princípios constitucionais, entre os quais se destacam o da necessidade das penas, o da proporcionalidade e o da igualdade. Dentro do âmbito dessa liberdade do legislador cabe – sempre no respeito pelos princípios constitucionais – a escolha da pena ou penas aplicáveis aos diferentes crimes, quer na sua identidade e regime, quer na sua medida abstracta
(penalidade, pena aplicável ou «moldura penal»). Optou o legislador por cominar, relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, em alternativa, a pena de prisão até três anos ou a pena de «multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido». Assim, os limites da pena de multa são estabelecidos tendo por referência o valor da prestação em falta: o limite mínimo corresponde a tal valor, enquanto o limite máximo corresponde ao dobro desse valor (salvo se o limite máximo legalmente estabelecido for inferior, caso em que este será o limite máximo da multa prevista para o crime de abuso de confiança). Deste modo, e sem prejuízo da intervenção, nos termos gerais, de institutos que permitam atenuar a responsabilidade (atenuação especial, dispensa de pena), é dentro da margem fornecida pelos referidos limites mínimo e máximo (e não fora deles) que o grau de culpa do agente é objecto da devida ponderação. A decisão recorrida apenas pôde considerar que o limite mínimo previsto na parte final do nº 1 do artigo 24º era violador do princípio da culpa porque optou por um diferente enquadramento dogmático. Em vez de apurar os limites mínimo e máximo da pena de multa aplicável em função do montante da prestação tributária em dívida e do dobro desse montante, preferiu aplicar, sem reservas, o artigo
11º, como se esta última disposição não fosse afastada, em grande medida, pela norma especial do artigo 24º. É verdade que o Tribunal a quo se deu conta do carácter «inconciliável» da aplicação simultânea dos artigos 11º e 24º. Todavia, em lugar de, nos termos gerais, fazer prevalecer a regra especial do artigo 24º sobre a regra geral do artigo 11º, insistiu na aplicação integral desta, recusando, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação do limite mínimo previsto naquela. Do exposto se conclui que a adopção de um limite mínimo da pena de multa do crime de abuso de confiança fiscal correspondente ao montante da prestação em dívida, acompanhada pela fixação de um montante máximo correspondente ao dobro daquela soma, não viola o princípio da culpa.
8. Pode, no entanto, suscitar-se a dúvida sobre se o modo de fixação dos limites da pena de multa, atendendo à necessidade de respeitar o limite máximo legalmente estabelecido para a pena de multa, pode provocar a cominação de uma pena de multa fixa. Tal sucederia se o montante de prestação tributária em dívida, que determina o limite mínimo da pena de multa, pudesse igualar o limite máximo legalmente estabelecido. A esta dúvida deve responder-se negativamente. Com efeito, a cominação da pena de prisão até 3 anos ou de multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro (sem que possa exceder o máximo abstractamente estabelecido), nos termos do nº 1 do artigo 24º, não vale para infracções em que a quantia em dívida é inferior a 250.000$00 (caso em que o nº 4 prevê uma multa até 120 dias), ou superior a 5.000.000$00 (hipótese em que o nº 5 comina uma pena de prisão de 1 a 5 anos). Relativamente às quantias que se encontrem entre 250.000$00 e 5.000.000$00, não
é possível ultrapassar o máximo abstractamente estabelecido, já que tal máximo corresponde, por força dos nºs 2 e 3 do artigo 11º, respectivamente, a
36.000.000$00 ou a 500.000.000$00, respectivamente no caso de pessoas singulares ou de pessoas colectivas. Esta conclusão poderia ser posta em causa, se se entendesse que «o limite máximo abstractamente estabelecido», a que se refere o nº 1 do artigo 24º, pressupõe, para cada arguido, a fixação do montante correspondente a cada dia de multa, nos termos do artigo 11º, o que levaria a que o limite mínimo da pena de multa pudesse igualar o limite máximo legalmente estabelecido. Neste sentido deporia a falta de sentido útil de tal limite – já que ele nunca limitaria o montante decorrente do nº 1 do artigo 24º –, se assim não fosse entendido. Apesar deste argumento, porém, não pode deixar de se entender o «limite máximo abstractamente estabelecido» no sentido de verdadeiro limite abstracto, isto é, independente do caso concreto, e, por isso, a implicar a multiplicação do montante máximo previsto para cada dia de multa (cf. nº 3 do artigo 11º) pelo número máximo de dias de multa previstos (nº 2 do mesmo artigo). É que seria valorativamente contraditório estabelecer um sistema de limites da pena de multa no nº 1 do artigo 24º a partir de quantias fixadas por referência à quantia em dívida, e ao mesmo tempo pressupor a necessidade de fixação do montante correspondente a cada dia de multa, para o efeito da determinação do limite máximo abstractamente estabelecido. Tanto mais que tal entendimento conduziria, justamente, à solução absurda de o limite máximo legalmente estabelecido poder ser igual ou inferior ao limite mínimo previsto no nº 1 do artigo 24º.
9. Pelo que toca à alegada violação do princípio da igualdade (art. 13º da Constituição), por impossibilidade de ponderação da situação económica e financeira do arguido, valem, em síntese, mutatis mutandis, as considerações formuladas sobre a não violação do princípio da culpa. Na verdade, nada obsta a que a situação económica e financeira do arguido seja tida em conta dentro dos limites mínimo e máximo estabelecidos no nº 1 do artigo 24º, assim se conseguindo tratar igualmente o que é igual, e desigualmente o que é desigual. Não se diga, por outro lado, que viola o princípio da igualdade a possibilidade de arguidos de situação económica e financeira semelhante virem a ser punidos de modo diferente, em função da existência de diferentes limites mínimo e máximo, determinados pelos montantes em dívida. A diferente penalidade corresponde justamente à diferente gravidade que o legislador fundou na diversa quantia em dívida. Trata-se de uma solução que tem paralelo, por exemplo, na diferenciação de penalidade para crimes contra o património em função do valor em causa [cf. as alíneas a) a c) do artigo 202º e os artigos 203º e seguintes do Código Penal].'
A orientação perfilhada no acórdão acabado de citar foi também adoptada pelo Tribunal Constitucional no também já referido acórdão n.º 307/02, de 3 de Julho.
10.2. Posteriormente, no acórdão n.º 432/02, de 22 de Outubro, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 23º, n.º 4, do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, na parte em que fixa como limite mínimo da multa a aplicar o valor da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, quando tal limite mínimo seja inferior ao limite máximo a que se refere o mesmo preceito. O Tribunal Constitucional disse então o seguinte:
'[...]
8. Entende-se, tal como se entendeu no citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 548/01, de 7 de Dezembro, a propósito da norma do artigo 24º, n.º 1, do RJIFNA, que a equivalência entre o limite mínimo da multa a aplicar à fraude fiscal e o valor da vantagem patrimonial pretendida pelo agente não obsta, por si, à ponderação da culpa do agente e da sua situação económica e financeira na determinação da medida da pena de multa, nos termos gerais. Na verdade, nada impede que os critérios de determinação da medida da pena de multa, constantes dos artigos 10º e 11º, n.º s 2 e 3, ambos do RJIFNA, funcionem dentro dos limites estabelecidos no artigo 23º, n.º 4, do RJIFNA, ora analisado. Assim sendo, valem no presente caso as considerações tecidas no mesmo acórdão a propósito da violação do princípio da culpa e do princípio da igualdade, para as quais se remete. Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem jurídico o que se visa e não a mera censura do agente. Quanto ao argumento do recorrente segundo o qual a norma em apreço não permitiria ponderar a culpa e as condições económicas do agente, quando este se apropriasse de um valor igual ou superior ao máximo da pena de multa aplicável, não há que discuti-lo no âmbito do presente processo, uma vez que a norma impugnada não foi aplicada nessa dimensão.'
11. As razões constantes dos arestos mencionados, no que diz respeito aos princípios da culpa e da igualdade, são plenamente transponíveis para o caso sub judice, para elas, portanto, se remetendo.
Assim, e nada obstando a que a culpa, a situação económica, o benefício económico e demais circunstâncias da infracção sejam ponderados dentro dos limites mínimo e máximo fixados no artigo 36º do Decreto-Lei n.º 13/90, de 8 de Janeiro (na redacção do Decreto-lei n.º 64/91, de 8 de Fevereiro), torna-se
óbvio que tal norma não implica qualquer violação dos princípios da culpa ou da igualdade.
Por outro lado, é também evidente que não se está perante uma sanção fixa ou tendencialmente fixa, quando se comina uma coima calculada entre 75% e
100% do valor dos bens ou direitos a que respeita a violação, pelo que também não ocorre qualquer violação do princípio da culpa ou da legalidade da sanção
(sendo, aliás, dificilmente perceptível que a recorrente invoque este último princípio a este propósito). Trata-se de variação percentual bastante significativa, pelo que à norma em apreço nunca pode ser imputado o defeito de coarctar a margem de apreciação do julgador. O único problema que, neste domínio, pode ser razoavelmente colocado é o da eventual consagração de um limite mínimo excessivamente elevado: todavia essa circunstância não suscitaria um problema relacionado com o carácter fixo ou tendencialmente fixo da pena, mas porventura apenas um problema de proporcionalidade – questão que de seguida se analisará.
No que diz respeito à alegada violação do princípio da proporcionalidade, refira-se, em primeiro lugar, que nenhum sentido tem a argumentação da recorrente, tendente a comparar o montante da coima aplicável ao ilícito cambial de que foi acusada com o montante da multa aplicável a certos crimes fiscais. Não apenas pela ampla margem de liberdade de que o legislador goza na fixação, para cada ilícito concreto, dos limites mínimo e máximo das molduras sancionatórias mas, sobretudo, porque a multa é uma pena criminal, espelhando-se a sua maior gravidade face à coima em particularidades de regime que certamente relegam o montante envolvido para segundo plano. Comparar a coima com a multa apenas em atenção ao montante envolvido implica, nesta medida, desconhecer o diferente regime que lhes é aplicável ou, o que é o mesmo, a sua diferente natureza.
Refira-se, em segundo lugar – e ainda a propósito da argumentação expendida pela recorrente a propósito do princípio da proporcionalidade –, que não se afigura excessivo calcular o montante da coima abstractamente aplicável em função do valor dos bens ou direitos a que respeita a violação cometida e não em função do lucro efectivamente conseguido pelo agente (diversamente, pois, do que sucedia, no tocante à multa aplicável, nos casos submetidos à consideração do Tribunal Constitucional, anteriormente referenciados: supra, 10.1. e 10.2.).
É que, no que diz respeito ao ilícito cambial que à arguida foi imputado (realização de operações cambiais não autorizadas), o cálculo da coima abstractamente aplicável em função do lucro efectivamente conseguido pelo agente dificilmente traduziria a perturbação causada pela conduta ao normal funcionamento do mercado cambiário (e, como tal, a gravidade social da conduta), assim como dificilmente lograria atingir o objectivo do desincentivo da prática de infracções à legislação cambial, a que se alude no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 64/91, de 8 de Fevereiro. Basta, para este efeito, reproduzir as considerações que, a este propósito, constam da sentença do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa (supra, 5.):
'[...]
[...] não se pretende com a punição contrariar apenas o beneficio económico da arguida (que é considerado o limite mínimo considerado eticamente correcto da medida da punição e, como tal, vem consagrado no artigo 18°, n° 1 e 2, do R.G.C.O.) com a sua conduta delituosa mas antes punir a gravidade da mesma – geralmente punindo-a mesmo acima de tal limite para que a sanção seja um verdadeiro sacrifício e não só uma reposição do indevidamente percebido e, assim, se possam prosseguir as finalidades retributivas e preventivas que presidem às sanções contra-ordenacionais.
[...].'
Portanto, a norma em apreço também não viola o princípio da proporcionalidade.
III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 36º do Decreto-Lei n.º
13/90, de 8 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 64/91, de 8 de Fevereiro; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que s refere à questão de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Pamplona de Oliveira José Manuel Cardoso da Costa